Rituais: Formas de Expressão do Dharma

 

O sol ainda não nasceu, um samurai acorda, fica uns minutos olhando para o teto de palha de sua cabana. Senta no tatame em seiza, acende um incenso e fica em silêncio por alguns minutos. Lava seu corpo com um pano branco, ato que está mais para Misogi¹ do que para banho. Veste sua melhor roupa. Arruma cuidadosamente seus cabelos. Retira sua Katana do Saya² e com uma solução, normalmente preparada por algum sacerdote religioso, ele purifica sua espada. Prepara uma refeição frugal. Em seu Kamiza³ faz uma oferenda de incenso e fica novamente em silêncio. No local do duelo ele se apresenta ao seu oponente, diz seu nome e recita sua linhagem. Todo esse ritual que precedia um combate entre dois Samurai no Japão antigo pode parecer-nos desnecessário ou exagerado, mas fazia parte do cerimonial de um duelo e tem um forte significado espiritual, além de mostrar o estado mental do Samurai. O Samurai não se apresentava para um duelo com má aparência, seria uma falta de respeito com seu oponente e se fosse morrer naquele dia, ele não queria entrar no outro mundo malvestido. Na maioria das vezes um duelo não estava envolto numa atmosfera de ódio, não havia rancor ou motivos pessoais, era uma Escola tentando provar sua superioridade. Por isso o vencedor carregava consigo o nome do Samurai morto e sempre orava por ele nos templos.

Nossa vida, quer estejamos ligados a uma religião ou não, esta permeada de rituais e cerimônias, que vão desde pequenos atos como apertar a mão de uma pessoa, abrir uma porta para que alguém passe, puxar uma cadeira para que alguém sente, inclinar-se para cumprimentar até rezar antes das refeições. Para cada pessoa o ritual tem um significado e é importante que assim seja, pois cada um carrega sua própria carga de experiências. Quando fui Uchi Deshi*, de Kawai Sensei, ele resolveu que deveria reabrir seu pequeno Dojo e dar aulas para poucas pessoas, o Dojo da Academia Central já estava sendo administrado pelo seu genro e era muito grande, ele desejava um espaço menor e um contato mais próximo com as pessoas. Algumas vezes sentávamos no tatame com Dôgi e Hakama** e ficávamos em silêncio esperando. Quando passavam alguns minutos do horário e os alunos não apareciam ele dizia, “Ok, vamos tomar chá e vamos embora”. Nenhuma reclamação, nenhuma lamentação, nenhuma preocupação, apenas se vestir, sentar, esperar, tomar chá e voltar para casa. Ele fazia pelos alunos e mesmo que nenhum deles jamais soubesse, ele estava lá, no dia e horário marcado. Todo o ritual de preparar-se para dar aula fazia parte do treinamento dele e dos alunos, mesmo que estes não estivessem presentes. Quando observamos nosso dia a dia percebemos que estamos constantemente em treinamento.

A cultura japonesa, fortemente influenciada pelo Zen, está repleta de exemplos de etiquetas e formalidades que transformam as relações interpessoais. Quando uma pessoa vai entregar um cartão de visitas, por exemplo, existe uma série de protocolos como a maneira correta de entregar o cartão, quem entrega primeiro, como receber e como agradecer. O próprio Zen contém uma série de ritos em suas rotinas, sejam elas formais como as cerimônias oficiais, ou nas práticas mais informais como encontros em comunidades. Como deixar os sapatos, como entrar na sala, como sentar, como se portar, para que lado girar e quando fazer reverência podem parecer apenas gestos vazios e realmente o são, se estes não estiverem imbuídos de um sentimento profundo e verdadeiro, não de veneração, mas de respeito pelo ambiente e pelo que representa o ensinamento. Uma prostração à imagem de Buda, por exemplo, para os budistas, não é uma forma adoração, mas de respeito à uma pessoa que nos apresentou um caminho espiritual para escapar do sofrimento.

Na minha opinião um ritual não deveria ser explicado, pois ele precisa ser vivido, praticado e interiorizado e com o passar do tempo entendido, assim como são a maioria dos ensinamentos orientais. Mas nossa cultura ocidental não se dá muito bem com lacunas ou com perguntas seguidas de silêncio e podemos facilmente nos sentirmos ofendidos em nossa individualidade se pensarmos que estamos fazendo uma série de coisas erradas e aparentemente sem sentido. Nosso ego se sente particularmente insultado. Os rituais são descritos no Budismo como “meios hábeis”, são instrumentos úteis para que descortinemos os véus da obscuridade. Acender uma vela, oferecer incenso, colocar flores e água no altar não dará força ou poderes mágicos para o praticante, colocar os chinelos alinhados e fazer uma reverência de forma correta não fará o budista despertar, mas mostrará o estado de sua mente, poderá mostrar ao professor em que fase do caminho seu aluno se encontra. Quando os ritos estão devidamente corporificados no praticante, poderão assumir um papel importante também no dia-a-dia onde é muito comum pessoas próximas perceberem mudanças significativas mesmo em pequenos atos.

Quando penso numa prática japonesa com requinte e primor pelos detalhes, logo me vem à mente a Cerimônia do Chá. Já tive oportunidade de participar de algumas cerimônias, uma em particular e as outras para grupos de duas ou três pessoas e me impressionou a quantidade de detalhes e precisão do anfitrião. Os conceitos básicos da Cerimônia são a harmonia, respeito, pureza e tranquilidade. Tudo no Chádô (茶道) é milimetricamente pensado e projetado para oferecer ao convidado uma experiência única e transformadora. A Casa de Chá, Sukiya (数寄屋), deve estar localizado num jardim e conter uma casa de espera com um caminho de pedras ligando à casa principal. Um bom anfitrião é uma pessoa que possui profundo treinamento em outras artes tradicionais como Ikebana (生け花), Shôdô (書道), Cerâmica e arquitetura, e além de dar atenção especial ao Kimono que será usado ele também é responsável pela seleção dos chás. Todos esses detalhes que podem parecer inúteis para um ocidental, somados ao silêncio e aos movimentos impecáveis do anfitrião emprestam à Cerimônia uma atmosfera de treinamento espiritual sem precedentes, não somente para quem oferece o Chá, mas também para o convidado. Esse encontro deve ser marcante e singular para ambos, um encontro que possa ficar na memória, um instante de felicidade que não se deseje o final, um encontro que simbolize uma vida, I Chi Go Ichi Ê (一期一会).

Existe nos mosteiros Zen Budistas um momento de igual excepcionalidade, as refeições formais com Ôryôki (応 量器). A riqueza de detalhes, os movimentos delicados e harmoniosos que obedecem aos comandos de um oficiante conferem à refeição um maravilhoso momento de meditação. Esse momento é tão valioso para o Zen que Dôgen Zenji disse “Que o Dharma seja o mesmo que a comida e a comida seja o mesmo que o Dharma”. Para o Mestre Dôgen cada movimento é a própria expressão do Dharma. Todo o processo que envolve a refeição, desde a preparação do alimento, passando pela escolha dos ingredientes até fechar e amarrar o Ôryôki é tão precioso que Mestre Dôgen escreveu um tratado sobre isso, o Tenzo Kyôkun, onde ele descreve todo o ritual que deveria ser observado para plantar, colher, lavar, preparar, servir e comer os alimentos.

Quando encararmos os rituais e cerimônias como um treinamento, como uma oportunidade de permanecer no momento presente, poderemos realizar o entendimento de que todos nossos pensamentos, falas e atos podem, eles próprios, ser o Dharma de Budha. No Shobugenzo Dôgen Zenji dizia que a prática é a iluminação e que a iluminação é a prática, e que separar os dois não é o verdadeiro Budismo. Minha interpretação é que toda nossa vida ordinária é ela mesma desperta. Basta que tenhamos mente de Budha.

 

Texto de Monge Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

  • Ritual de purificação, pode ser do corpo ou de um local.
  • Local onde é guardada a Katana, bainha.
  • Local onde são colocadas as imagens de deuses e entidades religiosas.

*Literalmente aluno interno, aluno do lar. Aluno que mora na casa do mestre e trabalha em troca dos ensinamentos.

**Espécie de saia calça, parte da vestimenta tradicional e cerimonial japonesa, usada por algumas artes marciais como Aikido.

 

 

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