Os Quatro Bhumis do Bodhisattva

 

Depois das Seis Paramitas

 

Um Tathagata nasce no mundo e em sua compaixão absoluta transmite seus conhecimentos a todos os seres, então, um ser comum, em sua simples existência e em sua profunda confiança ouve e intui sua própria natureza.  Este ser, tão simples e qualquer, adquire a bondade como marca de sua conduta, passa sua vida contido em seus impulsos e diligentemente guarda as portas de seus sentidos [indriya-samvara] de forma profundamente consciente. Então, pronto a abandonar o que lhe é mais caro, seu apego por si mesmo, sua maior ilusão, sente a confiança na bondade tomar todo seu coração e surgir a compaixão.  Ao surgir a compaixão, surge também sua aspiração mais genuína; ajudar todos os seres sencientes.  Ainda é uma aspiração, mas este voto já vislumbra a realização do Boddhisatva.

 

“Apesar de haver ilimitados seres sencientes, faço voto de salvá-los;

Apesar de haver ilimitadas paixões, faço voto de extingui-las;

Apesar de haver ilimitados ensinamentos, faço o voto de conhecê-los;

Apesar de o caminho de Buddha ser supremo, faço voto de me tornar esse caminho”

 

SHIGU-SEIGAN-MON

Shu-jô mu-hen sei-gan do.

Bom-nô um-jin sei-gan dan.

Hô-man um-ryô sei-gan gaku.

Butsu-dô um-jô sei-gan  jô.

 

Entrar no caminho, na correnteza das águas turbulentas do samsara é seu primeiro ato, mas seu coração é Nobre e Verdadeiro, pronto para extinguir todos os obstáculos. Segue a descrição do caminho, seus obstáculos e sua superação.

Pañca nīvarranãni são os obstáculos que se apresentam à mente em seus estágios de concentração [jhanas], cristalizam fixações e tornam-se impedimentos contundentes ao seu esvaziamento e apaziguamento.  O desejo sensorial [Kãma cchanda], que busca todos os prazeres através dos cinco sentidos; da visão, audição, olfato, paladar e toque. A má vontade [vyãpada] que se traduz em sentimentos de hostilidade, ressentimento, ódio e amargura.  A preguiça e o torpor [thīna-middha] que marcam as ações por ausência de entusiasmo, esforço ou concentração.  O quarto obstáculo, a inquietação e a preocupação [uddhacca- kukkucca], são estados que impõem a incapacidade da mente se acalmar e encontrar sua energia vital. O último obstáculo é a dúvida [vicikiccha], expressa numa profunda ausência de convicção ou confiança nas próprias habilidades. No Sangãrava Sutta, Buddha compara cada um dos cinco obstáculos com uma imagem metafórica da água.  Compara o desejo dos sentidos com a mistura da água com a resina espessa produzida pela secreção escarlate de insetos; a má vontade com a água fervente; preguiça e torpor com água coberta de plantas e algas; inquietação e preocupação com a água agitada pelo vento; e o último obstáculo com a água turva, inconstante, lamacenta, colocada no escuro.

Para ultrapassar estes cinco obstáculos é preciso equilibrar a mente pelo cultivo do que seriam a antítese destes obstáculos, fatores supramundanos que levam à liberação. Além disso cada um desses fatores são acompanhados pelas quatro qualidades incomensuráveis; bondade, compaixão, alegria e equanimidade.  No “Discurso do Fogo” de Samyutta Nikaya, Buddha afirma que ao buscar ultrapassar os obstáculos que se impõem àquele que aspira em ajudar os seres, a atenção plena é imperativa; orienta ainda que quando a mente esta lenta [thīna-middha], deve-se desenvolver os fatores de iluminação; de investigação, energia e alegria; por outro lado quando a mente está agitada e impaciente [uddhacca-kukkucca], deve-se desenvolver os fatores de iluminação, de tranquilidade, concentração e equanimidade.

Os textos do Deshabhumika Sutra “Sutra dos dez Estágios” e de Rajaparikhatha Ratnamala, descrevem as dez terras, solos ou estágios que um Bodhisattva deve percorrer até atingir a liberação e alcançar o estado de Buddha. Esses estágios são traduzidos em sânscrito como Bhūmi significando literalmente base ou fundação.  No budismo Mahayana cada estágio representa um nível de realização que serve como base para o próximo nível.  Cada fase representa um avanço significativo na formação do bodhisattva que é acompanhada de aumento progressivo sabedoria.  Os seis primeiros estágios correspondem a realização de cada uma das seis Paramitas, as perfeições. Os Bhumis são subcategorias dos Cinco Caminhos do Bodhisattva [pancamarga]: O primeiro caminho é o “Caminho de Acumulação” [sambhara-marga], neste caminho há um forte desejo de superar o sofrimento e renunciar a vida mundana. O Boddhisatva estabelece a prática da atenção plena [satipatthana] a quatro domínios; o corpo, os sentimentos, a mente e os princípios dos ensinamentos de Buddha, para que possa assim, superar os cinco obstáculos. Neste primeiro caminho a não violência é a principal motivação do bodhisattva, ele abraça um compromisso com a harmonia e o autocontrole colocando a prática da moralidade [Sila] ao lado da prática plena atenção.  O segundo caminho é o “Caminho da Preparação” [prayoga-marga], neste caminho se inicia a prática da meditação e a observância das Quatro Nobres Verdades, surge então um conhecimento analítico da vacuidade.  O terceiro caminho é o “Caminho da Visão” [darsana-marga], onde se estabelece a prática de profunda meditação e grande concentração sobre a natureza da realidade.  Neste caminho está o primeiro Bhumi que é a realização da generosidade.  No quarto caminho, ou “Caminho da Meditação” [bhavana-marga], há a prática da purificação e acúmulo de sabedoria. Neste caminho estão localizados do segundo ao sétimo Bhumis que são: realização da moralidade, realização da paz, da energia constante, da concentração e o sétimo que é quando a sabedoria brota quando solicitada. Por fim o quinto e último caminho o “Caminho de não mais Aprendizagem” [asaiksa-marga]. Neste caminho estão o oitavo Bhumi onde a sabedoria brota sempre, não desliga; o nono bhumi onde o bodhisattva, que como o Tathágata, pode andar por todos os lugares sem abalar a visão. O décimo e último bhumi é o Dharmamega, neste bhumi não há mais alguém em lugar algum, é como uma nuvem carregada de lucidez e compaixão de onde chove o ensinamento como gotas.

Depois do Bodhisattva realizar as seis perfeições ele entra nos caminhos da visão, meditação e de não mais aprendizagem, caracterizados por sustentar durante longos períodos de tempo uma avançada absorção na meditação e na contemplação da vacuidade.  São conhecidos como Upaya [meios hábeis], Prandidhana [voto resoluto], Bala [poder espiritual] e Jnana [experiência não dual da realidade].

 

O que é prisão e o que é liberação para os bodhisttvas?

Sustentar uma vida no samsara sem meios hábeis representa a prisão para os bodhisattvas;

Levar uma vida no samsara com meios hábeis representa a liberação.

Sustentar uma vida no samsara sem sabedoria representa a prisão para os bodhisattvas;

Levar uma vida no samsara com sabedoria representa a liberação.

A sabedoria, quando não está unida aos meios hábeis, representa a prisão; a sabedoria unida aos meios hábeis representa a liberação.

Os meios hábeis, quando não estão unidos à sabedoria, representam a prisão;

Os meios hábeis unidos à sabedoria representam a liberação.

 Vimalakirti Nidersha Sutra

 

A seguir serão descritos os quatro bhumis além dos seis Paramitas Mahayana.

 

UPAYA

MEIOS HÁBEIS

SÉTIMO BHUMI

Upaya é um termo usado no budismo que se refere a um aspecto de orientação ao longo do caminho budista até a libertação.  Upaya-kaushalya é um conceito que enfatiza os instrutores a usarem seus próprios meios e técnicas específicas e que melhor se encaixam às diferentes circunstâncias, a fim de obter a iluminação.  A função de Upaya é adaptar a mensagem de Buda para o público, mesmo que em última análise não seja o verdadeiro ensinamento no sentido mais elevado, mas sim uma adaptação para alcançar o objetivo de levar o praticante mais perto da verdadeira realização de modo similar. O aspecto mais importante deste conceito é que o uso destes seja guiado por sabedoria e compaixão.  A ideia central é que um bodhisattva possa usar quaisquer métodos a fim de ajudar a aliviar o sofrimento dos seres ou ajudá-los em seu caminho para a iluminação.

 

PRANIDHANA

VOTO

OITAVO BHUMI

Neste nível o bodhisattva superou todas as aflições e sua mente está sempre e completamente absorvida pelo dharma.  Por estarem totalmente familiarizados com a vacuidade, suas mentes não são movidas por fixações.  Depois de alcançar o oitavo bhumi ou Pranidhana o caminho se torna irreversível, porque já não há qualquer possibilidade de que se possa vacilar ou retroceder.  A partir desse estágio os bodhisattvas estão destinados para o estado de Buddha completo, não há mais quaisquer inclinações para buscar um nirvana pessoal.  Em Pranidhana é cultivado a “perfeição da aspiração,” significando o comprometimento em cumprir vários votos e acumular mais virtudes.  Neste estágio os bodhisattvas tomam a resolução de trabalhar para o benefício dos outros, permeando o mundo com sentimentos de generosidade e compaixão, essa resolução se dá tendo já transcendido qualquer tendência a uma interpretação errônea de Anatta e tendo realizado o não-eu.  Sua compreensão da vacuidade é tão completa que subverte delusões e a realidade aparece luminosamente.  Com pouco esforço, no oitavo bhumi é possível contemplar o vazio.  Bodhisattvas nesse nível são comparados com pessoas que tendo despertado de sonhos têm todas as suas percepções influenciadas por essa nova consciência.  Desenvolvem por último, a capacidade de se manifestar de várias formas, a fim de instruir os outros seres.  Piedade e meios hábeis são automáticos e espontâneos.

 

BALA

PODER ESPIRITUAL

NONO BHUMI

O nono bhumi é conhecido como boa inteligência.  Deste ponto em diante, bodhisattvas se movem rapidamente em direção ao despertar.  Antes dessa fase, o progresso desenvolveu-se relativamente lento, no entanto do oitavo ao décimo bhumi são feitos grandes progressos em direção a Buddha.  No nono nível, são compreendidos plenamente os três veículos; ouvintes, realizadores solitários e bodhisattvas, tendo entendido essa discriminação, aperfeiçoam a capacidade de ensinar a doutrina como também os conhecimentos analíticos.  São quatro os conhecimentos analíticos; conceitos fundamentais, significado, gramática e exposição. Dessa forma são desenvolvidos a eloquência e a habilidade em apresentar ensinamentos doutrinários.  No bhumi de Bala, o bodhisattva apresenta uma inteligência superior e compreende todos os nomes, palavras, significados e idiomas, como também podem responder a qualquer pergunta.  Nesse nível é cultivada a “perfeição de viriya”, significando que, devido a força de sua mestria em relação ao domínio dos quatro conhecimentos analíticos, mais a profundidade de sua meditação, o bodhisattva é capaz de desenvolver as paramitas energeticamente e praticá-las sem tornar-se fatigado.

 

JNANA

CONHECIMENTO

DÉCIMO BHUMI

Jnana significa conhecimento ou experiência não dual da realidade. No décimo bhumi, bodhisattvas superam os mais sutis traços das aflições.  Como uma nuvem que derrama chuva sobre a terra, esses bodhisattvas espalham o Dharmma em todas as direções e cada ser senciente absorve o que precisa para crescer espiritualmente. Nesse nível os Bodhisattvas recebem uma forma de empoderamento de inumeráveis budas.  Isso é chamado de “grandes raios de luz”, pois o brilho desses bodhisattvas brilha em todas as direções. Essa capacitação os ajuda a remover as obstruções enganosas relacionadas ao caminho da visão e as obstruções do conhecimento relacionadas ao caminho da meditação, alem de lhes dar confiança e força.  No momento final desse nível, os bodhisattvas entram em um estado meditativo profundo e sutil e surgem, a partir dessa concentração, como budas.

Nestes dez estágios praticamos as dez perfeições em sequência. Nos seis primeiros estágios praticamos as seis perfeições correspondentes, enquanto nos quatro últimos estágios as quatro perfeições [adicionais] são praticadas- a perfeição dos meios hábeis, dando  os méritos das boas raízes nutridas através das seis perfeições à todos os seres sencientes igualmente, para que possam ser direcionados ao despertar supremo; a perfeição dos poderes, através das práticas da investigação pensada,  subjugam tudo o que contraria as perfeições e traz as seis perfeições em uma continuidade ininterrupta; a perfeição do conhecimento, que  estabelece o entendimento das seis primeiras perfeições e faz os Bodhisattvas nas grandes assembleias experienciarem deleite no Dharma e amadurecerem os seres sencientes.

 

Asanga, Mahayana Samgraha

 

O Bodhisattva, abandonando os dois extremos; o Samsara, em sua ilusão onírica e o Nirvana, em sua impossibilidade perante a consciência da universalização do sofrimento, exala a compaixão como essência de sua verdade.

Generosidade, Ética, Paciência, Esforço, Concentração, Sabedoria, Meios Hábeis, Aspiração, Poder e Conhecimento.  Algumas escrituras afirmam que um Boddhisatva pode levar três, sete ou trinta e três éons imensuráveis [asamkhyeya kalpa] para atravessar esses estágios e alcançar a iluminação.

 

      Um éon equivale ao tempo de uma era universal,

      Um período de tempo incalculável.

 

Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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