Tudo É o Caminho

 

É comum na literatura budista encontrarmos descrições de cenários envolvendo plantas. Não menos, mas foi sob uma, a Árvore Bodhi (Ficus religiosa) que Sidarta Gautama tornou-se o Buda ao atingir sua iluminação. Há também no Budismo uma alegoria referente à palavra “semente” ao expressarmos a frase “sementes kármicas”.

Este texto traz como personagens principais uma árvore e uma semente. Pertencente à família Zapotaceae, cientificamente denominada Manilkara zapota ou Sapoti como é popularmente chamada no Brasil, foi plantada aqui no meu quintal e me proporcionou uma reflexão sobre vários aspectos de nossas vidas que influenciam no nosso despertar ou não. Por esta razão, peço ao leitor que ao lê-lo, possa colocar-se no lugar da “semente e do pé de sapoti” respectivamente.

O sapoti é uma fruta muito doce, de cor discreta e que é abrigada por galhos de folhas brilhantes e de tonalidades de verdes muito harmoniosa. Mas não podemos falar em frutos e desconsideramos as sementes. O encantamento de qualquer planta frutífera está na semente, pois é dentro dela que estão latentes o passado e o futuro. O passado dentro dela está no acúmulo de esforços incessantes de causas e condições favoráveis para que chegasse até aqui e, o futuro por possuir um “embrião” que pode vir a ser uma árvore frondosa e próspera. No Budismo este “embrião” é chamado de “Tathagatagarbha” e é usado para se referir a capacidade que tem todos os seres sencientes de alcançar o estado de Buda.

A semente do sapoti é protegida por uma casca muito dura, nos dando a impressão de que dali nada sai e nada entra. Mas, o que é a minha compreensão diante do processo ao qual ela está destinada por sua verdadeira natureza a nos revelar? Em quais fundamentos, palavras ou argumentos eu posso me aproximar da “verdade da semente”?

A compreensão de tudo isso só se torna possível quando lançamos sem reservas esta semente no solo fértil da vida, adubamo-la com o fertilizante da interdependência e regamo-la com um olhar capaz de ver em todas as coisas o “cossurgir interdependente e simultâneo”. Nesse olhar, a terra, o ar, o Sol e a água são a semente e a semente por sua vez é a terra, o ar, o Sol e a água. A semente é o tempo materializado, o tempo é o broto que surge. É como diz Caetano Veloso na canção Oração ao Tempo: “Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos… tempo, tempo, tempo, tempo”…

No intuito de controlar todas as coisas, prendemos o tempo em “horas”. É chagada a “hora” da sementinha germinar. Seria a dor a responsável pelo rompimento de sua casca dura? Seria a casca dura a responsável pelo surgimento da dor? Seria esta dor um sofrimento? Estar sob o Sol forte do nordeste brasileiro e o frio intenso das noites de junho também o seria?

Certamente diríamos que sim. Nós costumamos utilizar sobre a maioria das coisas a nossa “régua de julgamentos e valores”, o que muitas vezes nos paralisa. Caso a semente fizesse o mesmo, ela poderia quem sabe se acovardar e talvez não se arriscaria a trilhar a aventura da descoberta de sua verdadeira natureza. Por não se comportar assim, podemos ainda contar com tantas árvores a embelezar o mundo e tantas variedades de frutas que por compaixão nos alimentam.

A aventura da semente começa aí, no apenas estar presente sob as condições favoráveis e responder a elas. Quando falo em condições favoráveis, temos de imediato uma visão positiva do fato, em que a semente se tornará uma planta, mas nem sempre é assim, ela pode estar sob condições favoráveis para que outros seres surjam a partir de sua falência, o que não foi esse caso, pelo contrário, ela me proporcionou os meios hábeis para que eu pudesse escrever esta história que começa mais ou menos assim:

Plantada sob o solo de meu quintal, é possível perceber um incessante esforço do pequeno broto que após romper a dura casca da semente de sapoti, de imediato encontrara seu segundo obstáculo: tinha agora que ultrapassar a camada de solo, e assim o fez com determinação e maestria porque não pensou e muito menos cogitou se valeria a pena. Isso me fez lembrar uma descontraída fala que o Sensei Genshô costuma dizer: “não pense, apenas faça”!

A luz que vinha do Sol parecia um sutil fio a sustentar de pé o pequenino broto e como uma cuidadosa mãe o conduzia a um infinito de possibilidades: temperaturas diversas, chuvas, ventos, insetos, aves etc. Sua obstinação em revelar sua verdadeira natureza não o deixava perceber que estes fatores além de serem necessários para ele, por qualquer alteração para mais ou para menos lhe seriam altamente danosos. Mas a sua essência era de ir e não de voltar do seu caminho.

O seu crescimento como o de qualquer outra planta se dava em dois sentidos antagônicos: enquanto seus pequenos ramos de folhas cresciam apontando para o azul celestial, suas raízes também cresciam nas profundezas densas e escuras do solo. Prestei atenção agora no pequenino caule recém crescido, como ele poderia estar se sentindo entre a luz e a sombra? Seria o despertar de uma bela árvore estimulado pelas sombras que envolviam as suas raízes ou seriam as sombras a se beneficiarem com a luz cujas folhas atraiam? Ao que me parecia, quanto mais luz mais sombra e quanto mais sombra mais luz!

De onde vinha a firmeza que se observava na plantinha com o passar do tempo? Cada vez que suas raízes se aprofundavam, mais ela orquestrava com harmonia todos os instrumentos advindos das sombras do subsolo. Sua dependência destas sombras era tão necessária para o seu crescimento ao ponto de se perceber que quanto mais forte, carregado e denso ficava o chão, mas brilhavam as suas folhas e mais alto elas chegavam.

E por alguns anos, o pé de sapoti continuou esta longa caminhada, até que um dia me ocorreu a sensação de que ele parecia não estar mais se desenvolvendo, parecia que algo muito estranho estava acontecendo com ele, não surgiam mais novos brotos. Será se o esforço por ele feito desde quando era uma sementinha, agora daria lugar a uma “aparente estagnação? ” Seria ele capaz de conservar o que já havia alcançado por um tempo que nem ele mesmo saberia a duração?

Num processo natural de “crescimento e desenvolvimento” de qualquer planta, é comum observarmos que algumas folhas começam a secar e cair, é um “perder” tão severo que em alguns casos vê-se restar apenas o caule a alguns galhos, é parecido com o que acontece com a gente quando diante de grandes dificuldades temos a impressão de desaparecer a importância e confiança que dávamos à tantas coisas a ponto de ao final sobrar só a gente mesmo. A diferença entre o pé de sapoti e a gente, é que ele perdia tudo o que lhe “adornava” sem lamentações, apenas “deixava cair” e ir embora, nos dando um correto exemplo do que possa ser de verdade o desapego e a aceitação da impermanência.

Às vezes nos perdemos no meio do caminho, perdemos o foco daquilo que realmente importa em troca de distrações que façam valer a pena a nossa existência. Quanto mais nos envolvemos com coisas inábeis pensando que estamos “resolvendo nossas causas existenciais”, mais emaranhados ficamos no fértil solo das causas e consequências.

E por falar em emaranhar-se, eis que Sapotizeiro ficava por entre outras árvores maiores e mais velhas do que ele. Elas o envolviam com seus longos e fortes galhos parecendo abraços de pais a proteger-lhe. Talvez esta proteção fosse a responsável pelo seu retardamento. Estar escondido por entre estas árvores fazia com que a chuva e os raios de Sol quase não o tocassem e o vento não o ensinasse mais a dançar aquele balé de flexibilidade diante de suas rajadas fortes e fracas sem se deixar cair.

Certamente que com tudo isso, ele se sentia seguro, protegido e inatingível. Era uma “zona de conforto” desejada pela maioria dos seres humanos. Só que aos olhos de um observador, isso mais o prejudicava do que o ajudava. Parecia que ele havia esquecido da necessidade que cada ser tem de crescer através de seu próprio esforço gradual e contínuo.

Como se não fosse o bastante esta superproteção dada ao sapotizeiro, ele ainda contava com outras distrações como o dançar dos galhos das outras árvores e o vai e vem dos pássaros cantarolando sobre eles parecendo um fluxo aeroportuário. Quanto mais ele se distraia, mais ele se afastava de si, da sua verdadeira natureza, aquela mesma que estava presente quando ele ainda era uma sementinha determinada.

Popularmente falamos na palavra “mudança”, quando na verdade queremos nos referir a “interdependência”. É no entendimento de que algo só existe porque depende da existência de outro que temos a necessidade de compreender que é aí que estar a “impermanência” inerente a tudo. Como bem disse Heráclito de Éfeso (500 a. C): “A única coisa permanente é a mudança”.

E de fato, por falar em mudança é ela quem traz para o desfecho desta história “a mudança” que acontecerá na vida do Sapotizeiro.

Eis que um certo dia, a “mudança” se avizinhou do pé de sapoti, ela veio disfarçada de um afiado facão que com golpes precisos e certeiros cortava todos os galhos daquelas árvores que lhe cobriam e por certo lhes dava a falsa sensação de proteção e segurança.

Apesar de parecer-lhe naquele exato momento uma cena violenta de um filme de terror, ao cortar os carinhosos braços de seus protetores, algo de muito valioso se revelava e um forte sentimento de reconciliação com a verdadeira vida o dominava. A cada galho que caia sobre o chão, no alto ele podia avistava um céu azul esplendoroso enfeitado por nuvens brancas que passavam e um Sol que reluzia feito um diamante, parecia até que tudo isso surgia para festejar com ele o seu retorno ao caminho outrora esquecido.

Com o passar dos dias, aquele momento de deslumbre dava lugar a um discreto desconforto. O Sol queimava algumas folhas, o solo secava rapidamente, rachaduras surgiam sobre a casca de seu caule, mas ao mesmo tempo surgiam folhas novas em tons variados de verde, seu caule tornava-se cada vez mais alto e forte e suas raízes quanto mais profundas ficavam mais segurança lhe dava. Apesar do antagonismo presente neste processo, tudo isso tinha outro sentido, havia mais significados, e tudo isso o habilitava a viver a partir de agora uma vida mais plena.

O sapotizeiro segue até hoje crescendo, se renovando a cada vez que ele é insultado, quer seja pelas estações do ano, quer seja por insetos ou outros fatores, a sua verdadeira natureza se manifesta a cada momento num processo de interação com outros seres.

E assim foi e assim poderá ser com todos que trilham o caminho da realização, é bem assim como diz Milton nascimento na letra da canção “coração de estudante:

“Mas renova-se a esperança

Nova aurora a cada dia

E há que se cuidar do broto

Pra que a vida nos dê flor e fruto”

Como praticantes budistas, que possamos ver em todas as coisas a oportunidade de aprendermos sobre a vida, sobre o Dharma. Que possamos perceber e compreender que tudo ensina, que tudo é o caminho.

 

Texto de Fábio Chaves Brito. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências:

Sapotizeiro – pt.m.wikipedia. org/wiki/ Sapotizeiro

Daissen. Org.br/não-pense-apenas-faca/

e.m.wikipedia.org/wiki/Tathagatagarbha_s…

google.com/search?q=caetano+veloso+or…

http://www.teses. Usp.br

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