Um dos aspectos mais interessantes do ensinamento do Buda, pelo menos em um nível mais profundo, o que mais chama atenção das pessoas é a questão da felicidade. O Budismo ensina o caminho para felicidade, mas conforme você pratica, você vai aprendendo mais, vai aprendendo sobre si mesmo, aprendendo mais sobre o sofrimento, e chega uma hora que você descobre que, na verdade, felicidade apenas é aquilo que precede o sofrimento, ela é apenas um estágio inicial de sofrimento.
Temos a felicidade mundana, que é baseada em fenômenos condicionados, fenômenos impermanentes, os estímulos sensoriais, fabricações mentais; todos esses são felicidades não duradoras, insustentáveis. Às vezes, até a felicidade que faz parte do que é chamado de algo bom, algo saudável, mesmo a felicidade que vem na bondade, é algo impermanente, ela cria as condições para o sofrimento que vem em seguida.
Uma coisa interessante de se observar, quando se consegue enxergar isso de maneira clara, é perceber como funciona lá dentro da mente. Na verdade, quando as pessoas sentem prazer e bem-estar, elas sentem deleite, quando elas sentem deleite elas se apegam, quando elas se apegam, elas têm aversão, quando elas têm aversão elas sofrem quando as coisas mudam, porque elas têm apego pelo jeito como as coisas são agora. E aí elas naturalmente têm aversão pelo que vem em seguida.
Então não importa muito o que vem em seguida, é sempre sofrimento. Porque o que eu gosto é o que está aqui e agora. Não importa o que vem em seguida, vai ser sofrimento, mesmo que não mude nada externamente. Ainda assim, a pessoa tem um limite de quanto tempo consegue extrair prazer de uma experiência única. Após um tempo, não consegue mais sentir prazer, então aquela experiência antes prazerosa vira monótona, de monótona vira irritante; mesmo que nada mude, você muda, sua capacidade de sentir prazer muda.
É basicamente uma guerra perdida, porque quando você se apega pelo prazer do aqui e agora, do que está acontecendo no momento, não importa o que vem em seguida, sempre vai ser um desprazer. Mesmo que note que aqui e agora significa tanto as condições como a sua capacidade de experienciar aquilo, mesmo que as condições não mudem sua capacidade de experienciar, aquilo muda.
Então os prazeres sensoriais, os prazeres que são baseados em fenômenos condicionados, são sempre assim: possuem prazo de validade e eles inevitavelmente sempre terminam em sofrimento. Pode demorar mais, pode demorar menos, mas eventualmente aquilo culmina em sofrimento. E mesmo que você consiga comprar um pouquinho de crédito para postergar um pouco mais de sofrimento, trocando de um prazer pelo o outro, mas ainda assim isso é insustentável. Por isso que a gente já dizia, que é como se fossem dois lados, duas pontas de uma mesma cobra. Aquilo que você pensa que é bom, depende do que é ruim para existir. O rabo da cobra, que é liso e não traz nenhuma ameaça, só existe por causa da cabeça. Buda dizia: não importa se é prazer ou dor, é o que você está pegando, é dukka. Quando perguntavam para Buda sobre esse ensinamento, ele dizia “eu só ensino dukka e a sensação de dukka”. A única coisa que existe é dukka surgindo e dukka desaparecendo.
É interessante também como o Buda tem diferentes níveis de explicações. Depende para quem você está falando e o que está querendo expressar. Existe essa frase de Buda que diz que tudo que existe é dukka surgindo e dukka cessando, sofrimento surgindo e sofrimento desaparecendo. Mas, por outro lado, também existem sutras em que ele fala aos monges “não ensinem, não declarem que não existe prazer no mundo.
Porque às vezes as pessoas falam “é tudo sofrimento”, como eu acabei de falar, que a felicidade é apenas um estágio inicial do sofrimento, mas isso de um certo ângulo, se eu olhar de ângulo mais próximo, pelo ângulo da experiência, é obvio que existe prazer. Se não existisse prazer, as pessoas não seriam presas na armadilha do samsara. Por isso que, de um certo aspecto, só existe sofrimento surgindo e sofrimento desaparecendo, mas se você quiser expressar um outro aspecto do assunto, é o aspecto em que as pessoas se apegam e ficam presas.
Isso remonta àquela ideia que não existe nenhuma frase, nem nada que expresse de maneira completa a verdade, pois qualquer construção verbal e qualquer construção mental são apenas visões parciais. Nem o próprio Buda conseguiu expressar a coisa uma maneira única e universal. Como ele dizia, é apenas uma jangada improvisada, todas as explicações do Dharma, todo o conteúdo do Tripitaka é apenas um punhado de gravetos amarrado com cipó que você usa só para atravessar o rio e, tendo atravessado, você joga fora aquela jangada improvisada. Então o ensinamento do Tripitaka é a mesma coisa, são apenas convenções, formas de apontar para a verdade. E como a ferramenta é imperfeita, uma ferramenta limitada, não tem como apontar de uma única forma, de uma única tacada. Você tem que expressar de várias formas diferentes para poder dar uma ideia do todo.
Às vezes as formas de expressar acabam dando a impressão de contradição, mas as explicações todas têm um propósito funcional. Todos os Dharmas no Tripitaka têm um propósito funcional, nenhum deles é verdade completa, todos são verdades parciais. Então a pessoa que quer enxergar a verdade completa não pode ficar limitada no “lendo e entendendo”, pois na verdade isso pode virar obstáculo, na medida que você achar que aquele entendimento é sinônimo de divisão completa, pois a pessoa se satisfaz com entendimento intelectual ou se engana, o ego agarra aquilo e tapeia a pessoa.
Por exemplo, a pessoa fala que não tem mais dúvidas com relação ao Dharma. Ela lê o Tripitaka e diz que entendeu, não tem dúvidas, e pensa que está iluminada. A pessoa perde a noção do que se refere e do que está falando. Não dá para preencher todas as lacunas só lendo os textos, a não ser que você seja uma pessoa com muito talento. Para o resto de nós é bom ter alguém que preenche as lacunas, que nos mostre onde as peças se encaixam. O próprio Buda dizia que ensinava o suficiente para a iluminação e mesmo isso você precisa ter experiência com o assunto. Não adianta só ler, tem que saber como aplicar aquilo e como aplicar nem sempre dá para explicar, não dá para colocar em palavras, tem coisas que só vai entender pela experiência, pelo convívio.
Ainda com relação ao prazer e sofrimento, tem certas coisas que as pessoas não notam como aquilo é nocivo, sendo os pensamentos uns dos piores causadores de sofrimento. As pessoas têm o hábito de fantasiar a respeito de algo, é difícil elas enxergarem o malefício daquilo. Mas se você parar para refletir, quanto mais fantasia sobre uma situação ideal, mais incapaz de estar satisfeito com aqui e agora você fica. Então cada segundo que você passa no mundo da fantasia deixa você mais incapaz de estar feliz aqui e agora, mais incapaz de encontrar satisfação aqui e agora, sendo muito sutil essa dinâmica entre e felicidade sofrimento.
Pode ser estranho a felicidade e sofrimento serem tão opostos e levarem você ao mesmo ponto. Mas quando você olha com atenção pode perceber que eles nunca foram opostos, estão intimamente entrelaçados. Tão entrelaçados que uma agora fica difícil dizer o que é sofrimento e o que é felicidade. Talvez seja o que as pessoas chamam de sensações neutras, não é bem felicidade nem sofrimento, mas ainda assim essa sensação neutra faz parte da estrutura que mantém a mente presa no samsara. Todas essas são condições que mantém a mente presa no samsara.
Em termos de sensações, quando você se deleita em sensações agradáveis, experiências agradáveis, você está reforçando o hábito de consumir sensações e você não tem como controlar as causas e condições que geram essas sensações. Então quando você baseia a sua mente no consumo de sensações é apenas questão de tempo para as condições mudarem e aquelas sensações passarem a ser tóxicas, dolorosas, e quando você deleita em sensações agradáveis você está criando o hábito de agarrar sensações. Então quando surgir a sensação desagradável, você vai agarrar aquela sensação desagradável. É um pouco de ilusão você falar que só vai pegar a sensação agradável e que a sessão ruim você não vai agarrar. Não vai conseguir fazer isso. Se você tem o hábito de agarrar sensações, você vai agarrar tanto a boa quanto ruim, porque você acaba usando aquilo para definir a experiência de eu: eu sou isso que experiencia essas sensações. E quando não tem sensação agradável, como é que “eu vou fazer”? “Eu vou deixar de existir? Não vou agarrar a sensação ruim? Alguma coisa eu tenho que agarrar, porque eu quero existir”.
A ideia de não existir é inaceitável. Enquanto o eu estiver presente e o eu for definido através dessas experiências, você não tem opção de não agarrar as sensações ruins. O ego consome sensações, o ego consome experiência, ele gosta de um tipo e não gosta de outro. Só que, na verdade, é apenas uma ilusão, a questão do “gosto disso, não gosto daquilo” é apenas um jogo de espelhos, um jogo de sombras. Na verdade, você não pode acreditar no ego quando ele diz “eu gosto disso, eu não gosto daquilo”, é só uma mentira sorrateira, porque quando chega o sofrimento ele agarra também.
Você pode observar isso na sua mente, por exemplo quando tem uma música agradável, um som agradável, aí a sua mente fica distraída em vez de ficar experienciando aquele som, a mente se distrai, quando surge um som irritante a mente gruda nele não larga mais, quando surge algum som que você decidiu que não gosta, que é irritante, a mente agarra e não larga. A mente sente deleite, sente aversão, quando há sensações agradáveis a mente também sente aversão, quando há sensações desagradáveis a mente também sente deleite. Tudo isso é uma miragem criada pela mente.
Você pode notar que tipo de padrão mental você cultiva pelas coisas que a sua mente agarra, as pessoas que são raivosas passam batido em tudo que está correto, elas se fixam só no que está errado. Às vezes a coisa nem está errada, mas ela quer sentir a sensação de raiva, então ela cria na mente dela coisas erradas para poder sentir raiva. Uma outra pessoa olhando a mesma coisa não vê nada demais, a mente da pessoa que cria tudo isso.
Se fosse realidade essa dinâmica de desejo e aversão, a mente não ia criar nada que gerasse aversão, se fosse mesmo verdade que eu desejo isso e eu não gosto daquilo. Como você explica o fato de que a sua mente cria aversão a coisas que não estão ali? Ou mesmo as coisas que estão ali? Porque tudo isso é ilusão, essa questão de eu gosto eu não gosto, só ilusões, só mentiras, “eu gosto disso”, mentira, não é verdade verdadeira, “eu não gosto daquilo”, também é mentira, é uma fabricação da sua mente. Na verdade, o ego, a raiz do assunto, é o que está por trás dessas ilusões todas. É uma coisa bem mais simples, não tem muita diferenciação de um e do outro, como falei, são duas pontas a mesma cobra. Você pode falar aqui é o rabo, ali a cabeça, na verdade trata-se apenas uma construção mental, você pode também construir a ideia de “isso tudo é a cobra”.
Na verdade, um aspecto importante da prática é isso, você aprender a criar a sabedoria, o modo de chegar às coisas que levam à libertação. Então se você enxergar que é tudo cobra, você evita a cobra, se protege. O fato de você falar “isso é uma cabeça, isso é só um rabo”, não passa a ideia do que significa. É uma cabeça, certo, mas o que que tem aqui? Quais as consequências? O fato de ser uma cabeça acarreta o que então? As pessoas falam “isso é prazer”, ok, mas o que é que significa? Quais são as consequências disso? As pessoas não querem fabricar essa ideia, as pessoas só querem fabricar a ideia de que o prazer é bom, é legal, e aí elas continuam sendo mordidas pela cobra.
Palestra de Ajahn Mudito. Monge da Tradição da Floresta. Budismo Theravada. Abade do Mosteiro Budista Sudhavāri, em São Lourenço, Brasil.
Transcrição realizada por Débora Muccillo. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.