Mudar para Melhor

 

Pergunta de um praticante: Sensei, eu estou lendo o livro Mente Comum, um diálogo entre Zen Budismo e Psicanálise, de Barry Magid. No livro encontrei uma passagem intrigante, ele fala da capacidade dos praticantes em suportar a dor durante a prática e comenta: “O que parece ocorrer com frequência é que tanto alunos quanto professores dominam a dor física, mas sucumbem a seus impulsos; vivenciam uma unidade com todos os seres, mas permanecem em conflito com suas famílias; descobrem o vazio do self, mas continuam abusando de sua autoridade. Em suma, encontram a paz nas almofadas, mas não em suas vidas”. O praticante continua: e confesso que já me vi mil vezes nessa situação, o que fazer para evoluir?

 

Monge Kômyô Sensei: Esse comentário e essa questão são extremamente profundos e possuem de fato várias camadas de respostas. Antes de mais nada o comentário do autor, embora muito interessante e pertinente, falha em comparar a dor física do zazen com algum tipo de superação de questões e problemas, conflitos familiares, etc. Embora a comparação não esteja muito correta o que ele comenta é algo importante de se falar em sangha e um pouco amargo de se falar em sangha, mas necessário. Como eu sempre comentei, a prática zazen é feita por seres humanos e nem todos os praticantes são pessoas que realmente tiveram essa experiência de equilíbrio e tanto professores e praticantes podem não ser pessoas de sabedoria. Esse é um risco. O grande fato, um fato difícil, mas que precisa ser dito, é que o Budismo, o Dharma de Buda é extremamente delicado, ele pode morrer com muita facilidade, ele pode se extinguir com muita facilidade. Eu mesmo já conheci pessoas com décadas de prática, com um grande conhecimento do Dharma de Buda, e ainda assim eram pessoas agressivas, arrogantes, impacientes, isso acontece. A sangha é um ambiente muito delicado e a prática precisa ser compreendida como algo que vai muito além do sentar e superar dores. Dores nós sentimos.

Eu posso me sentar em zazen por muito tempo sem nenhum problema. Eu me sento assim desde os 13 anos de idade, antes mesmo de conhecer o Budismo, adorava sentar de pernas cruzadas. Na sala tinha uma mesa baixa e eu gostava muito de ficar ali sentado. Mas em certos rituais em que eu preciso me ajoelhar é terrível para mim, eu tenho uma musculatura de joelho, eu tenho joelho e musculatura das coxas muito fracos. Portanto, não é uma questão de sentir dor ou não sentir dor, mas o fato é que quando nós lidamos com o ensinamento de Buda, muito poucos realmente prestam atenção.

Quanto aos professores, o fato é que o mero conhecimento conceitual do Budismo pode levar alguém a ser considerado um professor. Isso não significa que a pessoa tenha aquela sabedoria e discernimento que é a base de alguém que teve experiências de transformação e cura. Isso não é só no Budismo, em todas as escolas religiosas vocês vão encontrar pessoas assim, pessoas de alta dignidade e que, no entanto, agem com ignorância. Então o que fazer?

Existe um Sutra de Buda chamado Kalama Sutra, e esse Sutra eu gosto muito, embora, infelizmente, tenha ficado meio famoso de uma maneira um pouco distorcida no meio budista, mas nesse Sutra o Buda afirma que nós não devemos simplesmente nos prender a alguma prática, simplesmente porque muitas pessoas praticam, ou porque o professor diz para praticar, ou porque está escrito em algum livro considerado sagrado ou importante. Nós precisamos experimentar o ensinamento e verificar se ele é bom para nós mesmos, e bom para as pessoas à nossa volta. O Budismo depende muito de uma investigação, Dharma Vichaya é o termo, a investigação do Dharma, a capacidade que todos nós devemos ter de observar o que está sendo ensinado, tentar colocar isto em nossas vidas e realmente ter consciência de que aquilo pode ser saudável, pode ser transformador para nós mesmos e para outras pessoas em torno de nós mesmos. Eu já conheci pessoas que se aprofundaram muito na prática, da maneira correta, da maneira consciente, e uma consequência disso é que mesmo que você pratique, tenha uma vida, uma família, pessoas que não têm nada a ver com o Budismo, não têm nenhum interesse, se a sua prática o levar à transformação, essas pessoas vão perceber. Elas vão perceber uma mudança para melhor. Não uma mudança para um fanático, não uma mudança para alguém que repete fórmulas como um robô. As pessoas à sua volta vão perceber uma experiência em vocês, que vocês não tinham antes. E isso é um bom sinal, é o sinal de que a prática que vocês estão fazendo realmente está trazendo transformação e mudança.

Compreendam, por favor, professores ou praticantes, se a prática do Dharma não levar a um aperfeiçoamento da pessoa, o que essa pessoa conhece, por mais catedrático que seja, vale nada. A questão não é se você tem grande conhecimento do Dharma ou não, a questão é o quanto a prática está fazendo com que você mude para melhor. Se a prática do zazen faz com que você comece a falar com seus amigos, querendo convencê-los das maravilhas dos ensinamentos Zen, das maravilhas da prática, não, não está bom, vocês não têm que convencer ninguém de nada. Vocês precisam primeiro descobrir quem vocês são. E se vocês não sabem que vocês são, como vocês podem pretender levar qualquer outra pessoa à compreensão do Dharma? Esse ensinamento vale para mim, como Sensei. Eu não digo aqui uma vírgula que eu já não tenha vivido, experimentado e que eu não tenha transformado em mim mesmo. Se não houver essa capacidade de transmitir às pessoas, aos praticantes, uma experiência que realmente a pessoa teve, não que ela leu num livro, se não houver essa capacidade o ensinamento é morto, esse Dharma está morto, é um falso Dharma. Ele é um Dharma de livro, que é repetido. Portanto, o argumento de que existe essa contradição de pessoas, professores, que demonstram uma perfeição de prática, mas que na vida pessoal continuam a ter problemas, primeiro os problemas vão continuar a acontecer seja você uma pessoa esclarecida, transformada ou não, os problemas não vão terminar. Mas a grande questão que nós precisamos perceber em uma sangha é que quando é ensinado alguma coisa que realmente tenha valor, poucos prestam atenção, a maioria se distrai.

E outro aspecto amargo de falar em relação à sangha é que, infelizmente, a prática de respeito ao próximo, fala correta, um trabalho constante de resolver conflitos de maneira pacífica, mesmo assim em sanghas ocorre ciúmes, ocorre fofocas, ocorre disputas de poder, porque nós somos humanos e continuamos a estabelecer aspectos muito tóxicos da nossa humanidade, política, falsas informações, disse-me-disse, como se fala. A sangha não pode ser assim, mas ao mesmo tempo nós professores não podemos obrigar ninguém a agir com respeito, porque o Dharma de Buda é de consciência. Então se você encontra pessoas que praticam o zazen bem imóveis e sem dor, e são péssimas pessoas, isso é sinal de que a prática daquela pessoa ainda não chegou ao ponto da transformação e da cura. Todos vocês aqui, nesse momento, estão me ouvindo falar, ouvindo o que eu tenho a dizer, mas a grande questão que eu sempre pratico comigo mesmo é: até que ponto eu posso atingir as pessoas.

Nesse momento temos 45 pessoas conectadas, 45 mentes, 45 consciências, 45 percepções, 45 eus. Até que ponto, o quão profundamente eu posso atingir vocês? Até onde vocês me ouvem e vocês pensam para si mesmos: “eu vou tentar praticar isso como ele diz? ” Ou simplesmente vocês ouvem, gostam, desligam o vídeo quando termina e vão ver outra coisa, ver televisão, ler algum livro, conversar. O grande risco da prática é ela se tornar um hábito para o Eu. O Eu é uma criatura de hábitos, ele transforma todas as coisas que ele vive em padrões de hábito e é por isso que você vai encontrar numa sangha Zen, infelizmente, fofocas, ciúmes, disputas, que não deveriam acontecer. Vocês vão encontrar dentro de uma igreja, durante uma missa, fofocas, ciúmes, disputas, que não deveriam acontecer; numa mesquita, numa sinagoga. Muitas pessoas dizem que a religião é uma doença, é um mal. A mente humana é que pode transformar qualquer religião em uma doença e em um mal.

Quando vocês estão praticando, vocês estão se esforçando para estabelecer as suas mentes, não para melhorar no zazen, mas para melhorar em suas vidas. Vocês precisam levar o que vocês aprenderem e estabelecerem nas suas vidas. O zazen sozinho não é o Zen, não é o Dharma. Portanto, ser bom em zazen não é a resposta para o que o Buda ensina. O Buda ensina sobre aprendermos a clarificar a nossa mente para podermos ir para a nossa vida e lidar com nossos problemas de maneira menos viciosa, negativa, perdida. Eu estou vivendo nesse momento problemas na minha vida, minha família, meu irmão, minha mãe, a minha filha, e não são problemas pequenos, e eu preciso lidar com isso. E o modo como eu lido com os meus problemas é o modo como eu lido com o zazen. Eu observo as minhas experiências, as minhas poucas sabedorias que eu obtive depois de tantos anos, e estabeleço na minha vida. A grande questão nunca é você estabelecer uma boa prática de não sentir dor no zazen, a grande questão é se você tem experiência, discernimento, sabedoria, e leva isso para a sua vida. O zazen é o cotidiano também.

Quando nos sentamos em zazen, como eu sempre digo, nós estamos assentando a poeira, aproveitando o momento de maior concentração para trabalhar melhor a nossa experiência, a nossa autocompreensão, para reconhecer com mais clareza a nossa natureza. Quando nós levantamos, vamos trabalhar a vida, vamos lidar com os amigos, conviver com a família, também com a mesma atitude de auto-observação, paciência e cuidado. Sim, às vezes, não é fácil, questões aparecem e você fica preocupado, ou irritado, mas isso também pode ser praticado. É para você praticar nesses momentos em que o emocional, psicológico, se torna muito intenso, e observe, não reprima sentimentos, apenas observe, respire.

Eu acho que eu já falei, e vou repetir, vocês talvez não façam ideia de como a respiração é importantíssima para trazer a nossa mente de volta ao centro, mesmo diante das situações mais difíceis. Porque a tendência da nossa mente em situações intensas é a distração e o desespero. E esse desespero pode se traduzir em várias formas: raivas, medos e etc., quando respiramos quebramos o círculo, o círculo vicioso de desespero, de desequilíbrio e distração. E temos uma chance de trazer a nossa consciência para o centro e observar a situação com mais clareza. O caminho do budista não é um caminho simples, é um caminho que possui aspectos muito difíceis de superar. Não pelo caminho em si, mas pela nossa natureza. Então SIM, a sangha é falha, mas isso não significa que muitos de nós da sangha estejamos aqui dispostos a mantê-la viva para que ela possa se auto curar. Porque o objetivo da sangha, como o Genshô Sensei ensina, ele fala sobre o sesshin, que é uma crise controlada, porque no sesshin a sangha se reúne, as pessoas agora estão umas ao lado das outras e as tensões podem surgir. E nós temos que equilibrar essas crises, equilibrar as nossas ideias, pensamentos, sentimentos. Trabalhar com honestidade para reconhecer quem realmente somos e mudar o que não é saudável. É possível mudar! A sangha pode se curar, ela faz todo o tempo. Ela é um organismo dinâmico. Eu, de minha parte, faço voto a todos vocês de que eu vou me esforçar sempre, ao máximo, para levar a vocês uma compreensão clara do Dharma. Quando eu tiver a oportunidade, ou for chamado à responsabilidade de resolver conflitos, analisar questões, eu vou tentar ser o mais claro possível e determinado para mostrar às pessoas envolvidas que a prática não é por meio de conflitos.

É compreensível que vocês sintam antipatia por outras pessoas. Não podemos gostar de todo mundo, mas podemos ser pacientes e fraternos com todo mundo. É por isso que em nossas vidas temos nossos bons amigos e pessoas que conhecemos, que não se encaixam muito bem, mas que precisamos respeitar, ter paciência com elas. Se elas extrapolam os seus limites, nós temos que ter ainda mais paciência para mostrar àquela pessoa que ela está indo além dos limites dela. Se ela insistir nisso nós nos afastamos, não brigamos, nós afastamos. Vamos fazer o nosso trabalho, viver a nossa vida e não tentarmos mais criar um conflito desnecessário, criar um atrito desnecessário. No âmbito da sangha, se a pessoa tiver essa vontade, converse em particular com o Sensei, ou com um superior, um coordenador, um praticante de rakusu, e esse deve levar a questão ao Sensei, e ele vai tentar dirimir a questão da melhor maneira possível. A prática de não violência, então nós precisamos tentar sempre, o máximo, encontrar soluções que sejam saudáveis, que sejam construtivas.

Mas voltando ao início, o Budismo é muito delicado, a prática é muito sutil, e uma coisa que nem mesmo Buda pretendia era criar um ensinamento que visasse controlar as mentes de quem quer que seja. Uma coisa que eu percebi durante anos e anos coordenando pequenas sanghas é que quando uma pessoa que realmente não se encaixa no nosso ritmo, na nossa forma de prática, aos poucos, sem conflito, as pessoas seguem outros caminhos, isso acontece frequentemente. Então, a prática que nós fazemos precisa ser compreendida no seu todo, nossa prática não é superar dores e manter o zazen impávido por horas e horas. A prática é aprender, é treinar a nossa mente para enxergar melhor a nós mesmos, transformar aquilo que não é saudável e curar os aspectos tóxicos em nossas mentes. E com tudo aquilo que experimentamos e aprendemos, a prática é levar isso para nossa vida, usar isso na resolução de conflitos, ao lidar com problemas e dificuldades. Sim, podemos ficar tensos, ou preocupados, ou irritados, mas se vocês tiverem uma boa prática, vocês vão sempre lembrar de respirar e retornar ao centro. Retorne ao centro e percebe as coisas melhores, enxergue, observe o que está acontecendo com mais clareza. Essa é a dinâmica. O Zen não se restringe rigidamente a uma prática, o Zen é vida, é a nossa vida, é a vida a quem deseja e assume a responsabilidade de praticar. Porque todos vocês são livres. Vocês não são obrigados a praticar no Zen. Vocês podem ir para outros caminhos. Mas se vocês assumirem essa responsabilidade precisam compreender que essa responsabilidade se estabelece no zazen e na vida. Somente desta forma o Dharma de Buda vai poder se estabelecer, fora isso não é Zen, não é Dharma, não é Buda.

 

Palestra de Monge Kōmyō. Sensei na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

Pergunta feita por aluno da comunidade zen-budista Daissen Ji durante as práticas virtuais. Palestra também se encontra no canal da comunidade no Youtube.

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