Como água

 

 

A Mente Correta é a mente que não permanece em um único lugar. É a mente que se estende por todo o corpo e pelo ser.

A Mente Confusa é a mente que, ao pensar em algo, se congela em um só lugar. 

Quando a Mente Correta se congela e se fixa em um lugar, ela se torna o que é chamado de Mente Confusa. Quando a Mente Correta se perde, ela deixa de funcionar aqui e ali. Por esse motivo, é importante não perdê-la.

Ao não permanecer em um só lugar, a Mente Correta é como a água. A mente confusa é como o gelo, e o gelo é incapaz de lavar as mãos ou a cabeça. Quando o gelo é derretido, ele se transforma em água e flui por toda parte, podendo lavar as mãos, os pés ou qualquer outra coisa.

Se a mente se congela em um só lugar e permanece com uma coisa, ela é como água congelada e não pode ser usada livremente: gelo que não pode lavar nem as mãos nem os pés. Quando a mente derrete e é usada como a água, estendendo-se pelo corpo, ela pode ser enviada para onde quisermos.

Takuan Soho

 

Muito se diz no budismo sobre o apego. No entanto, ainda que há nesta temática muito a ser dito acerca de nossa relação com os fenômenos exteriores a nós; a expressa necessidade de avaliarmos honestamente nosso hábito de agarrar-nos às causas externas de nossas vidas, acredito que há ainda mais a se dizer sobre o apego em sua faceta mais elementar. Aquele apego que é incomparavelmente sutil, mas teimosamente persistente, e que age, muitas vezes desinibido, sob nossos pensamentos e ações. 

Desta forma, o apego não aparece para nós como a tentativa de manter ou extinguir fenômenos que nos causam insatisfação; mas sim, como padrões complexos de comportamento que se congelaram e não mais podem fluir adequadamente com as circunstâncias. Formando-se como couraças que impedem o movimento, este tipo de apego é como os antolhos de um cavalo; que só pode olhar para onde seu mestre o permite. Vivendo sob a influência dessas rédeas, nos entregamos aos três venenos, além do apego, a raiva e a ignorância, como alguém que segue seu caminho confiante, mesmo estando terrivelmente perdido.

O congelamento do apego age como um gesso; inviabilizando o fluir saudável de nosso corpo, a contração adequada dos músculos, e, infelizmente, não nos permite relaxar quase nunca, ficamos sempre tensos; sempre achando que temos algo, em algum lugar e para alguém, a fazer. Conscientes de uma suposta missão interminável, perseguindo moinhos, é fácil  perdemo-nos, em momentos de pura estafa, na insatisfatoriedade dos prazeres, ou na depressão das metas inalcançáveis. A terrível notícia é que, não importa nossa percepção racional de nossos apegos, se não nos dedicarmos à sutil arte de dissolvê-los, eles sempre ganharão; são grandes mestres na arte da dissimulação. 

Entretanto, como aprendi com meu mestre, ainda há outra realidade desagradável: Muitas vezes, a prática contemplativa, por si só, não é suficiente para nos atermos a estes mecanismos, que, inconscientes, continuam. Na contemplação, podemos cometer o ledo engano de nos entregar ao sentimento oceânico da tranquilidade; esquecendo-nos do verdadeiro trabalho. Podemos achar que estamos seguindo a senda, e as evidências de nosso fracasso passam por nós sem que seja possível notarmos. Por isso, muitas vezes precisaremos de alguém, um amigo admirável, para nos ajudar: Muitas vezes, um mestre. Mas, no contemporâneo, em muitos dos casos, um terapeuta. Alguém que sabe ler nas entrelinhas das palavras, e do corpo, nossos apegos furtivos às formas de existir que em algum momento, no passado longínquo, serviu para assegurar nossa sobrevivência, mas agora permanecem, como um membro que, antes quebrado, curou-se inflexível. 

Hoje, tendo sido aceito como postulante à monge em minha tradição, me pego refletindo sobre o termo “unsui”, a primeira classificação de um monge Zen. “Flutuar como as nuvens e fluir como a água”, esta é a função dada a estas pessoas que escolhem o manto. Isto, acredito, talvez seja o desígnio de todo praticante budista, não só os monásticos. Me parece que ser como água é o koan. Meu mestre, monge Kômyô, em um comentário do Sutra do Diamante, declara que cabe ao budista desapegar-se de toda compreensão rígida dos fenômenos e conhecimento intelectual invariável; justamente porque as coisas são vazias: essa percepção e missão talvez seja todo o propósito de um monge, até os seus últimos dias nesta manifestação um unsui. Escolher o manto talvez seja criar causas e condições para viver esta senda às últimas consequências. 

Mas para nós, leigos, há também muita chance para a flexibilidade e a sensibilidade. Há sempre uma forma de desatar nossas percepções e libertar nossos corpos da horrível tensão de nossas dores. Requer dedicação a uma tarefa interminável, mas frutífera em resultados. O primeiro passo, talvez, sempre será reconhecer com coragem nossas próprias incoerências e procurar expressa ajuda, não apenas na medicina de Buddha, mas naqueles que podem testemunhá-las conosco. Com o tempo, talvez, a expressa realidade de que nós somos suficientes e que podemos relaxar a imperiosa energia que aplicamos no agarrar de nossas preocupações se mostre para nós.

Só assim teremos acesso à água para lavar nossos pés e mãos. Eis o Zen.

 

Por Matheus Anshin, DaissenJi, Soto Zen

 

Imagem: Kawase Hasui, Waterfall in Shiobara

Pin It on Pinterest

Share This