Pense o Impensável

 

Falar sobre o mérito do Zen para iniciantes é como contar o tesouro dos outros. Portanto, não falamos sobre o mérito do Zen. A única maneira é nos devotarmos à prática simples com grande esforço. A questão é não misturar a verdadeira prática do zazen com alguma outra prática como ler ou estudar algo intelectual, porque a maneira como estudamos é bem diferente. Estudo intelectual ou treinamento físico ou emocional e treinamento espiritual também.

Naquelas atividades ou naqueles estudos, nosso esforço é direcionado para alcançar algo. Mas na prática do zazen, o nosso esforço é direcionado para o lado oposto. Esquecer ou parar todo o pensamento e retomar nossa função original –  a mais íntima de nossa mente, antes de pensar, antes de sentir alguma coisa. O caminho é bem diferente, então você não deve misturar a prática do zazen com alguma outra prática.

Nisso –  no Zen existem muitas funções, como você sabe, para usar –  para dar um grito como KAAA-tsu!!! como um trovão. Ou bater nas pessoas, ou vê-lo. Esse é um tipo de caminho –  há muitos tipos de caminho. Mas essas atividades são baseadas no poder de tanden ou hara que você obtém por nossa prática habitual.

É por isso que no sesshin, especialmente, nos concentramos para ter mais poder em seu tanden ou hara. Nós dizemos, kikai tanden. Ki significa talvez espírito. Kai significa mar. Tanden fica aqui [na barriga]. Assim, nosso poder, ou hara, deveria ser como o mar. Esta é a prática mais importante mesmo para as artes orientais. Todas as artes orientais são função do nosso tanden, hara.

Quando sua mente é direcionada para fora, você perde seu poder em sua barriga. Quando seu esforço está concentrado para dentro, você tem poder dentro de si mesmo, e tudo se torna parte de seu hara. Se você ouvir o sino do lado de fora, esse som surgirá ao mesmo tempo de seu hara ou tanden. Então o som não vem de fora. Ele vem de dentro, e você ouve seu próprio som. Nada existe fora de você porque sua mente cobre tudo. Então, o que quer que você faça, essa é sua própria atividade. Não há dualidade em sua atividade.

Estudar algo é descobrir o que você aprendeu antes. Ouvir algo é ouvir o que você estudou. E desta forma sua mente sempre se desenvolve por si mesma. Nada de fora vem à sua mente. Toda a atividade é a autoatividade de sua própria mente.

Ontem eu disse que preferia ser uma rocha no topo da montanha do que ser um leão ou tigre na montanha, ou pássaro. Você pode dizer que uma pedra é imóvel e uma pedra não tem sentimentos, mas se você sentir – se você vir a pedra diretamente, ela lhe dirá muitas coisas.

Mesmo uma pedra no topo da montanha, haverá musgo nela. Mesmo que não haja musgo, a cor natural da madeira lhe contará muitos kalpas – a história de muitos kalpas do tempo. Mesmo que você alise uma pedra com uma máquina, você não pode fazer uma pedra no topo da montanha. Você não pode fazer isso. É mais do que um ser vivo. Se você praticar nosso caminho em seu verdadeiro sentido, mesmo que seja uma atividade sem palavras no sesshin, podemos nos comunicar uns com os outros. Eu acho que você diz – você também diz – a eloquência é prata, o silêncio é ouro.

No Zen dizemos um silêncio – uma fala silenciosa de Vimalakirti. Seu silêncio é mais do que uma conversa eloquente. O que vamos adquirir por nossa prática ou função de nosso tanden é às vezes muito sutil, sutil o suficiente para pegar. Onde um menor som, e em algum momento a mente irá permear o grande universo. Na verdade, porque é uma atividade tão bela e sutil que, por ser tão sutil, pode cobrir o mundo inteiro.

Apreciar as menores coisas triviais para você – na verdade, como apreciar – como ter – como ter nossa – como fazer nossa vida em escala cósmica. Se sua mente é sempre capturada por grandes ou pequenos, então essa mente não pode pegar nada. Apenas a mente, a mente sutil, você pode dizer, a mente que é suave e terna. Não quero dizer terno – por terno não quero dizer algum sentimento emocional… algum, você sabe… sutil – sutil é o sentimento que será obtido por nossa prática. Assim, a mente que obteremos por nossa prática é algo muito sutil e ao mesmo tempo muito grande. Esse tipo de mente é a mente Zen.

Tem havido muitos mal-entendidos com o poder do hara. O poder do hara não é necessariamente algum poder sobrenatural. O poder do hara não é algo de que você possa se orgulhar, que você pode obter pela prática árdua ou, você sabe, por meio do esforço dirigido, do esforço dualista. Essa mente está além de nossa mente dualista, então você não pode explicar o que ela é pelas palavras.

A mente que seria compreendida antes de você explicar sobre isso, esse tipo de mente é a mente verdadeira. Mas você sabe, muitas pessoas confundem essa mente com o poder sobrenatural. Ou, até certo ponto, você pode desenvolver seu poder do hara para poder mostrar o poder aos outros. Mas por hara não queremos dizer esse tipo de hara. O poder que você obterá pela prática verdadeira é a mente do hara que queremos dizer.

Aqui, novamente, é necessário mudar sua maneira usual de compreensão para a maneira oposta à compreensão usual. Sem trabalhar para fora, trabalhar para dentro sem tentar alcançar algo – esquecer – parar nossa mente que está sempre trabalhando para fora. Este é o ponto mais importante do Zen. Vou recitar o primeiro parágrafo novamente. Primeiro parágrafo de Fukanzazengi. [Lendo a tradução de Reiho Masunaga, mas Suzuki mudou e deixou algumas palavras de fora].

“O verdadeiro caminho é universal. Então por que o treinamento e a iluminação são diferentes? O ensinamento supremo está em toda parte. Então por que estudar os meios para isso? Até a verdade como um todo está claramente separada da poeira. Por que aderir aos meios de limpeza? A verdade não está separada daqui, então a medida do treinamento é inútil. Mas se houver mesmo a menor lacuna entre, a separação é como o céu e a terra. Se os opostos surgirem, a mente dualista surge, e você perde a mente de Buda.

Mesmo que você esteja orgulhoso de sua compreensão e tenha iluminação suficiente, mesmo que você ganhe alguma sabedoria e poder sobrenatural e encontre o caminho e ilumine sua mente, mesmo que você tenha poder para tocar o céu, e mesmo que você entre na área de iluminação, você quase perdeu o caminho vivo para a salvação.

Olhe para o Buda. Embora tenha nascido com grande sabedoria, ele teve que se sentar por seis anos. Olhe para Bodhidharma que transmitiu a mente de Buda. Ainda podemos ouvir o eco de seus nove anos de prática virado para a parede. Os velhos sábios são muito diligentes. Não há razão para que o homem moderno não possa compreender isso. Você deve parar de seguir palavras e letras. Você deve retirar-se e refletir sobre si mesmo. Retirar significa mudar a direção do esforço. Não para fora, mas para dentro. Você deve retirar-se e refletir sobre si mesmo. Se você puder abandonar o corpo e a mente, naturalmente a Mente de Buda emerge. Se você deseja ganhar rapidamente, deve começar rapidamente.

E ele explica cuidadosamente como sentar-se. “Na meditação, você deve ter um local silencioso. Você deve comer e beber com moderação. Você deve abandonar a miríade de relações, abster-se das relações, abster-se de tudo. Não pense em bem e mal. Não pense em certo e errado. Pare a função da mente, da vontade, da consciência. Evite medir memória, percepção, insight. Não se esforce para se tornar o Buda. Não se agarre a sentar-se ou deitar-se.

No lugar de sentar-se, espalhe uma almofada quadrada grossa e em cima dela coloque uma almofada redonda. Alguns meditam em paryanka, sentados de pernas cruzadas e outros em meio paryanka, meio lótus. Você deve se preparar vestindo seu manto e cinto frouxamente, usando seu roupão e cinto frouxamente. Em seguida, repouse sua mão direita no pé esquerdo, a mão esquerda na palma da mão direita. Pressione os polegares levemente juntos. Sente-se ereto. Não se incline para a esquerda ou direita, para frente ou para trás. Coloque as orelhas no mesmo plano dos ombros, o nariz alinhado com o umbigo. Mantenha a língua contra o palato e feche o lábio e os dentes com firmeza. Mantenha seus olhos abertos. Inspire silenciosamente. Acomode seu corpo confortavelmente. Expire… expire nitidamente. Mova seu corpo para a esquerda e para a direita. Em seguida, sente-se de pernas cruzadas de forma estável.

Pense o impensável. Como você pensa o impensável? Pense além do pensar e do não pensar. Esta é a fase importante de sentar de pernas cruzadas. Pense o impensável… pense impensável. Você sabe, pensar impensável, significa pensar, você sabe, pensar não em alguma coisa, você sabe. Normalmente, quando você pensa, você pensa em alguma coisa. Mas a mente pensante – se a sua mente pensante se dirige na direção oposta, isso é pensar impensável. Sua mente ainda está clara, mas não há nenhum objeto.

O sol não está, você sabe, brilhando, apenas para o planeta Terra, você sabe. A Terra – se a Terra estiver aqui, o sol [risos] brilhará – em nossa terra. Pense impensável: sua mente é e deve ser como o sol. Está brilhando, mas não está brilhando alguma coisa em particular. É mais do que pensar sobre isso – alguma coisa. Desta forma, sua mente, sua função mental, entrou na sua prática.

Então ele disse: “Pense impensável. Como você pensa o impensável?” E esta é uma palavra muito interessante. Como você pensa o impensável? O sol não está brilhando alguma coisa em particular. Então o sol é apenas o sol. Ele não está tentando brilhar nada. Está bem ali. Mas acontece de alguém aparecer perto do sol,  ele vai fazer brilhar algum objeto. Assim é, você sabe, como o sol brilha tudo.  Então, como você acha o impensável [risos]? Não tem jeito. Como? Como é o caminho. Porque nós não sabemos como [risos]. Você sabe como? Então aí você pode colocar qualquer coisa, você sabe: como? Daquela forma é como.

Dessa forma é como. Todo o caminho é como. É assim. É assim [risos]. Isso é como um quê. Gato é o quê. Cão é o quê. O que está lá, você – você pergunta às pessoas. Aquilo é o que, você sabe. O que pode ser um rato, um gato, um morcego. Então, como ou o que significa – o que significa é muito profundo. Como você pensa o impensável? Isso não é apenas, você sabe, uma pergunta. É uma afirmação forte. Como você pensa o impensável. Isso não é interrogativo. É uma frase afirmativa forte. Como você pensa o impensável.

Pensamento impensável é como.  De que maneira você pensa, é assim. Esse é o impensável. Mas você não tem noção de pensar em nada. Essa é a nossa prática. “Como você pensa o impensável? Pense além do pensar e do não pensar.” Pense além do pensar e do não pensar. Seu pensamento deve estar além de “eu penso” ou “eu não penso”. Deve estar ali sempre.   “Esta é a fase importante de sentar de pernas cruzadas.” Nós sentamos desta forma. Isso é o quão diferente é a nossa prática. É por isso que devemos praticar zazen.

E você não deve negligenciar nosso zazen porque acha que outra coisa é mais importante. Por que algo é importante para você é por causa dessa prática. Então, se você esquecer tudo sobre a prática, você perde sua vida. Faça o que fizer, não funciona.  Se você insistir que funciona, você se perde. Você não é mais. Você desapareceu [risos] deste mundo. Se a Terra disser, eu não quero o sol [risos], o que vai acontecer com ela?

Não há outro caminho, desaparecido do mundo cósmico. Porque – por causa desse pensamento impensável, nós existimos, podemos pensar, podemos viver. Sem este impensável, não podemos pensar. Transforma-se em delusão. Se você insistir nisso, significa que você está envolvido em uma profunda e sombria delusão.

 

O texto acima é a transcrição de uma palestra do Dharma proferida por Shunryu Suzuki, em 4 de dezembro de 1967 no Tassajara Zen Mountain Center, e encontra-se disponível online em https://www.sfzc.org/sr-archive.

Tradução de Marcus Vinícius Oliveira da Costa, praticante da Daissen-Ji na Sangha de São Paulo – SP.

 

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