Como Seria Uma Sociedade Budista

 

Às vezes eu gosto mais de conversar com pessoas não budistas do que com budistas porque as perguntas são diferentes. Você conversa com pessoas budistas e são sempre as mesmas perguntas e quando você conversa com pessoas não budistas elas fazem algumas perguntas interessantes que fazem você refletir. Uma coisa que me perguntaram outro dia foi: “como seria se as pessoas do mundo inteiro fossem budistas? ” Será que haveriam divergências de opiniões entre Budismo e ciência?

O que eu acho sobre esse assunto é o seguinte: o Budismo em si não teria nada contra a ciência e nem contra o princípio da pesquisa científica ou do desenvolvimento tecnológico. Mas algo que provavelmente aconteceria seria o seguinte: se as pessoas realmente fossem budistas, se as pessoas realmente levassem a sério a prática da meditação, o desenvolvimento da própria mente, praticassem e experimentassem os resultados disso tudo que o Dharma proporciona, o que provavelmente iria acontecer é que haveria menos interesse em desenvolvimento tecnológico e consequentemente menos interesse em pesquisa científica.

As pessoas estariam mais felizes, teriam mais saúde mental, não estariam sofrendo tanto, teriam mais resiliência, suportariam os acontecimentos com mais qualidade, teriam uma compreensão melhor do que é estar vivo e de como é a vida no mundo, então quando ficassem doentes, não entrariam em pânico, apenas adoeceriam e falariam para si mesmas: “ok, eu aguento”. Não teriam a atitude de se comportar da seguinte maneira: “estou doente, tenho que tomar um remédio! ”. Simplesmente adoeceriam e pensariam: “fiquei meio mal, vou descansar um pouco para ver se isso passa sozinho”.

Entrar em pânico e começar a tomar analgésico e outros remédios é só para abafar o sofrimento. Com menos urgência em ter tanto recurso material, as pessoas seriam mais autossuficientes, não consumiriam tantos bens materiais. Dessa forma, não haveria tanta pressão para o desenvolvimento tecnológico e consequentemente iria ter menos pesquisa cientifica também.

Um bom exemplo, seria pensar assim: será que as pessoas se interessariam em ir até a lua? Eu duvido! Ir até a lua vai ter que construir vários foguetes e testa-los até acertar e somente então é que seria feito aquele que funcionaria perfeitamente. São dezenas de foguetes e cada foguete custa dezenas de milhões de dólares, então eu duvido que as pessoas iriam achar se isso seria uma boa ideia e que valeria a pena. Provavelmente não, elas teriam outras sensibilidades. Não haveria tanto interesse em sensualidade, então o tipo de música que iria existir seria bem diferente, assim como os filmes e os tipos de eventos.

As pessoas entenderiam a diversão de maneira bem diferente. Provavelmente dariam muito mais valor ao contato com a natureza, valorizariam mais o ato de respeitar uns aos outros.

Bom, se as pessoas seguissem os cinco preceitos, não haveriam assaltos, violência física e roubos. Mas, obvio, nunca vai acontecer de todo mundo seguir essas regras ao pé da letra. É que nem Ajahn Chah falava: “suponha que em um vilarejo, se pelo menos metade daqueles que lá habitam seguir os cinco preceitos, tenha certeza de que esse vilarejo vai prosperar”. Se pelo menos metade das pessoas levasse à sério, seria uma mudança radical, porque mesmo que a outra metade não tivesse seguindo as regras de conduta e comportando-se de maneira correta, ainda assim haveria uma expectativa: aquela outra metade teria um padrão de comportamento que elas esperam, haveria uma expectativa do que é apropriado ou não uma pessoa fazer, então mesmo que as demais pessoas não seguissem as regras, ainda assim haveria uma pressão, elas teriam uma vergonha em fazer coisas baixas, em fazer coisas feias, porque a percepção da sociedade ao redor seria diferente, seria uma sociedade bem diferente da que a gente vê hoje.

Outra coisa que eu acho que seria um pouco diferente é a questão do estudo, provavelmente o currículo estudado na escola seria um pouco diferente do que é hoje, não seria uma coisa tão enfática na questão da teoria, dos conceitos intelectuais, do treinamento intelectual. Talvez fosse um currículo que ensinasse mais habilidades práticas ou então algo mais equilibrado pelo menos, porque a escola atualmente só ensina habilidades intelectuais, não ensina nenhuma habilidade emocional diretamente, ensina indiretamente. Então, por exemplo: na escola, o aluno que não consegue chegar na hora, que não consegue prestar atenção na aula, que não consegue cumprir tarefas, que não agi dentro de um contexto social, que não respeita os demais, que é mal-educado, que não consegue ser gentil e colaborar com os demais, ele é reprovado.

Então, indiretamente, a escola acaba ensinando um leque básico de habilidades emocionais, mas de maneira indireta, isso tudo fica para segundo plano. A ênfase é dada no conceitual, em despejar informações, tornando as pessoas acumuladoras disso.

As pessoas tornaram-se meros transmissores e depositários dessas imensas informações, onde a maioria delas não é muito útil. Mas eu até não critico tanto isso porque as pessoas não têm como saber o que vai ser útil ou não, elas colocam tudo aquilo que acham apropriado colocar, mas não ensinam o que fazer com essas informações todas.

É que nem um arquiteto que só se preocupa em construir a parte de cima da casa e não olha para a fundação também. Aquela atitude meio desinteressada: “eu fui contratado para fazer só essa parte, a fundação não é meu trabalho! ”. Então você constrói a casa e vai embora e aquilo desmorona. Então a escola, o estudo, a educação de hoje em dia é algo muito parecido com isso. Simplesmente jogam um monte de informações e não estão preocupados sobre qual fundação foram construídas.

Então você encontra esse fenômeno: pessoas extremamente inteligentes, mas extremamente medíocres. Extremamente inteligentes porque tem muita informação, muito conhecimento, mas não conseguem nem viver e acabam cometendo suicídio. Elas não têm o mínimo de recurso para não se matar. Não conseguem sobreviver a si mesmas, que dirá sobreviver ao ambiente ao seu redor. Apesar de saberem tudo sobre a engenharia elétrica, saber tudo sobre Freud, Kant, Leonardo da Vinci, Aristóteles, Presidente Washington, e a revolução francesa, história do Japão etc., ainda assim, muitas vezes são incapazes por exemplo, de não cometer violência sexual, de não ser um péssimo pai ou uma péssima mãe; então as informações não são muito úteis, as vezes possuí-las é bem pior! Às vezes, todas essas informações apenas proporcionam condições para que a pessoa haja mal, se comporte mal.

Eu me lembro quando era garoto e trabalhava numa empresa, foi o segundo emprego na minha vida, não tinha nem 18 anos ainda.  Foi numa empresa em que os chefes, diretores eram extremamente corruptos, moralmente corruptos. Então eu via muitas coisas que eles faziam, como se comportavam, que tipo de atividade eles enxergavam como prazerosa, o que eles consideravam entretenimento.

Extremamente decadentes, de todas as formas possíveis, era repulsivo de ver os tipos de coisas com as quais eles se envolviam. Desde fraude, droga, sexo, todo tipo de baixeza. Essas evidências comportamentais me faziam pensar a respeito, e muitas reflexões eu fazia: “puxa, eles estariam melhores se não tivessem dinheiro”. “Se eles não tivessem dinheiro haveria um limite nas suas ações”. “Eles poderiam fazer só esse tanto, mas como eles tem muito dinheiro, então não tem limites e simplesmente vão em frente”. “Tudo que eles querem fazer fazem”. O resultado final é isso: as pessoas fazendo coisas sujas, baixas, coisas feias.

Às vezes o sucesso que as pessoas conseguem leva a sua própria queda. Voltando ao exemplo anterior, na empresa onde trabalhei, a maioria deles era advogados. Se essas pessoas não tivessem estudado e adquirido esse conhecimento de como manipular as leis e tudo mais, talvez fossem pessoas bem melhores do que eram, talvez tivessem protegidos de suas próprias maldades. Mas tendo estudado, memorizado e ganhado diploma, então não houvera nada que segurasse suas astúcias.

Se olharmos essas personalidades políticas que temos, é realmente uma lastima que muitos tenham sido eleitos. Sem limites do quão baixo eles vão, com acesso a dinheiro e isentos da lei, não tem limites e então vão em frente.

Então eu acho que se fosse o mundo uma sociedade budista, a percepção do que significa educação seria diferente. Mas quando eu digo ser um mundo budista, uma sociedade budista, não é que nem a Tailândia ou o Sri Lanka ou os demais países budistas. As pessoas realmente praticam, é isso que eu quero dizer com ser uma “sociedade budista”.

O Brasil é cristão, mas não é porque as pessoas agem de acordo com os preceitos cristãos, elas são cristãs só na hora de responder à pergunta do Censo. Mas se olharmos suas práticas, quase ninguém é cristão nesse país, meia dúzia de pessoas.  Então, nos países budistas também é assim! As pessoas são budistas só no nome, na prática mesmo, não são! Mas ainda assim você encontra algumas iniciativas bem interessantes e que se destacam, nesse sentido.

Dá para imaginar como seria um país budista experienciando o modo de vida na Tailândia por exemplo, mesmo que não seja exemplo bom de sociedade budista, ainda assim você consegue imaginar, consegue projetar. Se mais pessoas levassem a sério, como seria essa sociedade? Haveria muito mais caridade, as pessoas seriam muito mais amigáveis umas com as outras e assim por diante. Várias coisas curiosas que iriam acontecer.

O conhecimento da mente também seria bem diferente. Uma das ciências seria a ciência da mente que atualmente me parece uma coisa muito distorcida. As pessoas ainda estão numa visão, eu diria, supersticiosa do que é a mente humana, do que significa a mente, como ela é, como funciona, de onde que ela vem.

Outro dia estava ouvindo uma entrevista com uma pessoa que era um antropólogo, estuda a evolução da humanidade desde os primatas até o homo sapiens, os diversos estágios e é obvio que é um estudo que você faz projetando, não tem como conversar com um “homem homo erectus” ou com um “homem homo de neandertal” para perguntar a eles como vivem, qual sua opinião. Então você vê que a pessoa fica ali pensando, imaginando “acho que eles fizeram isso, acho que eles pensaram assim, acho que se comportavam assim”, e então eles imaginam como era o comportamento, o pensamento, como agiam, como era a sociedade desses diversos grupos.

Tudo interessante, achei tudo muito interessante, muito útil na verdade, mas dá para ver claramente como é que a pessoa projeta, como ela imagina que os outros viviam, de acordo com a sua percepção de como é a mente e do que significa ser humano. Então sempre julga os demais de acordo com sua própria experiência, e na medida que as pessoas não compreendem sua própria experiência fica difícil para elas terem uma visão clara do que é o outro, ainda mais um outro que viveu a 100 mil anos atrás.

Não estou dizendo que eu saiba mais do que elas sobre esse assunto, mas, surgem algumas indagações a esse respeito: “puxa vida, essa opinião dela está distorcida, ela não tem uma compreensão clara de si mesma aqui e agora e aí avalia os outros, projeta sobre os outros a mesma opinião que tem sobre si mesma, como entende que as pessoas são”.

Mas é assim mesmo, ela não tem opção, não tem como fazer outra coisa, tem que tentar fazer o melhor possível para entender. Como eu falei, a gente não tem uma máquina do tempo, então o trabalho delas é como o trabalho de um detetive.

Mas, se as pessoas tivessem uma compreensão melhor do que é a mente, do que é o pensamento, essas coisas a gente não entende até hoje! A ciência não entende o que é um pensamento, o que é a memória e como é que isso funciona, como isso está relacionado com as emoções. As pessoas ainda pensam que o cérebro é a mente, então fica difícil. As pessoas não têm noção do que é que estão falando, elas têm uma visão muito pequena do assunto, então fica difícil realmente enxergar o quadro completo.

Dessa forma, seria uma ciência bem diferente, a compreensão até dessa questão antropológica, tudo que envolve a mente! Então a compreensão da história seria diferente, procuraríamos pensar nos porquês das coisas, nas motivações, por exemplo: “por que Napoleão fez tal coisa”? “Porque o governo do país tal decidiu entrar em guerra? ”.

Eu acho que teriam percepções bem diferentes. Essa perspectiva certamente atingiria também a questão da psicanálise, da neurologia, todas essas partes que envolvem a compreensão da humanidade e dos seus diferentes aspectos.

Agora, no que tange a compreensão da física, química, astronomia e até da biologia, acho que não teria muita diferença. Talvez houvesse menos interesse, ia ter menos esforço talvez, não haveria uma pressão financeira tão grande empurrando as pessoas em direção a esse tipo de conhecimento. Provavelmente, as pessoas seriam mais saudáveis. Talvez tivesse um desenvolvimento tecnológico muito maior se elas fossem budistas porque a mente delas iria trabalhar claramente, as descobertas cientificas seriam muito mais fáceis, haveria muito mais facilidade em pensar, em raciocinar e enxergar conexões e haveria a ciência da mente, ciência das energias que não são detectadas pelo mundo material. Talvez. Eu acabei de mudar de ideia! No meio da palestra eu mudei de ideia (risos). Na verdade, talvez fosse diferente, talvez fosse muito mais desenvolvimento tecnológico do que temos hoje, talvez! Mas com certeza seria interessante, seria diferente.

 

Palestra de Ajahn Mudito. Abade do Mosteiro Suddhavāri – Tradição da Floresta – Budismo Theravada.

 

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