Anatta: Não-Eu

A Segunda Marca da Existência

 

“Ninguém passa por

Este caminho nesta

Tarde d’outono”

Bashō

 

Anatta [pali] ou Anatman [sânscrito] é um termo que se refere ao conceito central do budismo sobre a doutrina do “não-eu”.  Esta doutrina afirma que nenhum eu ou essência imutável e permanente pode ser encontrado nos seres ou em qualquer fenômeno. Este conceito foi fator determinante que distinguiu o budismo de outras tradições religiosas indianas na época de Buddha.  Em sua etimologia encontramos em vários textos Pali o termo Atman, tendo na sua raiz Attan, no sentido de alma, ou ainda, num sentido alternativo; “eu, si mesmo, essência ou substância”. Este sentido de Attan é encontrado na crença bramânica da era védica, pré-budista, em que Atman é a essência permanente, constante e sem alterações de um ser vivo.  O verdadeiro “eu” permanentemente existente que migra de uma vida para outra.

Buddha entendeu que Atman revelava um entendimento não correto sobre a natureza do ser.  Sendo a causa primária de todos os tipos de apegos e desejos e em consequência do constante sofrimento dos seres, concentrou seus primeiros ensinamentos em desenvolver uma doutrina que levasse à compreensão correta sobre esta natureza.   Com esse intuito afirmou o conceito de Anatman, que traduz o conceito de “eu” como um composto de elementos físicos e mentais em constante mudança e devir em oposição a uma alma imutável e eterna. Em sua etimologia, encontramos em vários textos budistas a palavra em sânscrito Anatta como sinônimo de Anatman [an + atman], onde o prefixo de negação an significaria a negação da existência de essência [atman].   Contudo, mais do que uma doutrina que nega a existência de um self, Buddha usou este conceito como estratégia metodológica eficaz para que fosse possível atingir o desapego ao reconhecer qualquer objeto como impermanente.  Em nenhum momento Buddha se preocupou em dar qualquer tipo de explicação ontológica ou metafísica a respeito dessa natureza, mas manteve-se em silêncio sobre a existência final de uma essência imutável.  Nunca se tratou de uma construção filosófica, apenas um ensinamento simples para pessoas comuns daquela época e de nossa também.   Na doutrina budista Anatman é uma das três características que marcam toda a existência, revelando a impermanência do “eu” e de todos os fenômenos [Anicca], como também sendo a chave para a compreensão da verdade do sofrimento [Dukkha], ensinamento este que compõem as Quatro Nobres Verdades.

Nos primeiros ensinamentos sobre Anatta, Buddha explicou que existem cinco componentes específicos que formam o que chamamos “eu”.  São conhecidos na literatura budista como Cinco Skandhas [pañca skandha] e nominados como Os cinco agregados. Funcionam como um cluster de mudanças de processos psicofísicos insubstanciais, manifestando apenas a expressão de uma experiência fenomenológica momentânea e efêmera, sendo o “eu” simplesmente a forma como experienciamos a realidade.

Skandhas [sânscrito] significa “montes, agregados, coleções ou agrupamentos”.  Na doutrina budista, refere-se os Cinco Agregados [pañcupadanakkhandha], ou os cinco elementos que participam do surgimento do desejo e do apego e neste caso são denominados como Cinco Agregados do Apego e do Sofrimento. Os Cinco Agregados são forma [rupa], sensações [vedana], percepções [samjna], atividade mental [sanskhara] e consciência [vijnana].  Os cinco Skandhas são explicados também como os cinco fatores que constituem a individualidade de um ser senciente.  Por meio de um mecanismo dinâmico de inter-relações, esses fatores dão origem a um senso de personalidade, resultando na ilusão de um “eu” constituído separado e independente. Contudo, este senso de existência substancial é apenas um artificio construído pela própria mente para dar coerência e consistência a nossa experiência da realidade.  Na verdade, não há continuidade natural dos fenômenos agregados, todos eles se manifestam em súbitos instantes, surgindo em combinações entre seus elementos por milimésimos de segundo, criando eventos fragmentados e descontínuos. São impermanentes, marcados por Anicca.   A ilusão da continuidade é realizada por citta cetana, literalmente “a corrente da mente”.  Fluxo mental dos instantes sucessivos da experiência sensorial dos fenômenos, na ausência de um “si”, dá a continuidade e a coerência tempo- causal da experiência e da personalidade.  Cada um dos skandhas são aparências que não têm uma essência, nem separadamente nem em conjunto, tudo o que é percebido como um agregado [elemento-individual] ou um [todo] não tem existência substancial.  Esta é a doutrina budista de Anatta “não-eu”.  A negação contundente e explicita de substancialidade ou de algo permanente em qualquer um dos cinco Skandha aparece nos primeiros textos budistas:

 

“Todas as formas são comparáveis à espuma; todos os sentimentos às bolhas; todas as sensações são semelhantes a miragens; as disposições são como o tronco de bananeira; a consciência é apenas uma ilusão: assim o fez o Buddha [a natureza dos agregados]”.

 

O primeiro é o Agregado da Matéria [rūpakkhanda] diz respeito aos Quatro Elementos Básicos da Matéria; solidez, fluidez, calor e movimento.  Além deste grupo principal, existe os “Derivados” [upadaya-rūpa] que contém os cinco órgãos dos sentidos; o corpo, as faculdades do olho, ouvido, nariz, língua, como também seus correspondentes objetos no campo extensivo da matéria; coisas tangíveis, formas visíveis, sons, odores e sabores.  Além destes cinco agregados da matéria, considera-se na filosofia budista uma sexta faculdade: a consciência [manas], cujo objetos correspondentes são pensamentos, ideias, concepções e todos os elementos que se configuram na esfera de “objetos mentais” [dhammayatana]. Este primeiro agregado compreende todo o reino da matéria, interno ou externo.

O segundo é o Agregado das Sensações [vedanakkhandha].  Neste grupo de agregados estão contidas todas as possíveis sensações.  Podem ser classificadas em três grupos; as agradáveis, as desagradáveis e as neutras.  Estas sensações são experimentadas pelo contato (estímulo) do mundo externo com os órgãos físicos.  Quando um objeto é experimentado, essa experiência assume um destes tons emocionais, seja o tom do prazer, ou do desprazer ou o da indiferença. Neste sentido, Vedana sendo a própria experiência de prazer, neutralidade ou dor, condiciona o desejo para segurar e manter estes tons emocionais de forma prolongada, ou para afastar.  Este grupo de agregados. Podem ser categorizadas por seis tipos: sensações sentidas através do contato dos olhos com as formas visíveis, dos ouvidos com as formas sonoras, do nariz com os odores, da língua com os sabores, do corpo com as formas tangíveis e por fim a mente (manas) com ideias ou pensamentos. Este segundo agregado compreende todas as sensações físicas e mentais.

O terceiro é o Agregado das Percepções [saññakkhandha].  Este agregado tem a função de executar um processo sensório-mental ao qual registra, reconhece, e discrimina, todas as sensações originárias do contato das seis faculdades internas com seus objetos externos.  Está relacionado ao processo de conformar a sensação a um conceito, ou seja, a atribuição de um nome a um objeto de experiência.  A função da percepção [Samjna] é transformar uma experiência indefinida em uma experiência identificada e reconhecida, é formular a concepção de uma ideia sobre um objeto em particular, como por exemplo a forma de uma árvore, a cor vermelha, a alegria como emoção, etc.

O quarto é o Agregado das Formações Mentais [sankharakkhandha]. Este agregado pode ser descrito como uma resposta condicionada ao objeto da experiência podendo ter o significado de hábito ou condicionamento.  Samskara, visto como o segundo elo, dos doze componentes da originação dependente é descrito como marca ou impressão mental causada por ações anteriores.  O que é conhecido por Karmma pertence a este grupo.  Conservando memórias residuais, carregam as impressões básicas e fundamentais da consciência e suas respectivas influências acumuladas através de experiências diversas no passado recente ou remoto. Dentro do contexto dos cinco agregados, o agregado da formação mental Samskara, realiza um papel semelhante, contudo não possui apenas um valor estático de “carimbo mental”, mas adquire um valor dinâmico porque, assim como nossas reações são condicionadas por atos anteriores, leia-se hábitos, também o são nossas respostas atualizadas no aqui e agora.   Estas reações, motivadas e dirigidas de uma forma diferenciada por nossas formações mentais ou volição, contém todas as atividades volitivas de intenção e direcionalidade.  O uso do termo formação mental e volição juntos representam, cada um, um aspecto de Samskara – a formação mental representa a metade que vem do passado e a volição representa a metade que é atualizada no presente.   Tendo o desejo, a ação é realizada pelo corpo, fala e mente. Neste sentido a formação mental ou volição, tem uma dimensão moral, da mesma forma que a percepção tem uma dimensão conceitual e a sensação- sentimento tem uma dimensão emocional.

O quinto agregado é o da Consciência [viññanakkhandaha]. Entre os cinco agregados a consciência possui um status privilegiado, pois enquanto todos os agregados são fenômenos condicionados, marcados pelos três selos, a consciência serve como fio condutor da continuidade pessoal.  Viññana ou vijnana é a consciência que possui a capacidade de distinguir, discernir e julgar.

Consciência é uma reação ou resposta que a mente tem do contato de uma das seis faculdades dos sentidos; olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente com seus respectivos objetos; formas, sons, cheiros, sabores, toques e pensamentos ou emoções.  Do contato dos olhos com a forma, surge a consciência visual [caksurvijñana], do contato dos ouvidos com os sons surge a consciência auditiva [srotravijiñana], do contato do nariz com os odores surge a consciência olfativa [ghranavijñana], do contato da língua com os sabores, surge a consciência gustativa [jihvavijñana], do contato do corpo com o toque, surge a consciência tátil.  Do contato da mente com os pensamentos, surge a consciência das idéias [manovijnana].  Estas seis consciências constituem o aspecto ou camada mais superior ou superficial do “Vijññana-skandha”.  “Manas” ou Klista-manas-vijinana, é a sétima das oito consciências e representa o aspecto do funcionamento mental, do pensamento, do raciocínio e de ideação.  É a plataforma para a sexta consciência, para que   esta possa se apoiar e então se manifestar.   Sua função é, por um lado, localizar a experiência por meio do pensamento e, por outro lado, universalizar a experiência por meio da percepção intuitiva da mente primordial. Por fim, o nível mais profundo da consciência – “Citta” chamado de “Alayavijñana” ou “Consciência Armazenadora”, aquela que contém todas as sementes [bija] para a manifestação mental [nama] e física [rupa] da existência [namarupa].  “Alayavijñana” representa o mais fino e sutil do Agregado da consciência.  Ela contém todos os vestígios das ações passadas e todas as possibilidades futuras boas e ruins.

Um ensinamento primordial do Budismo Zen, descreve a transformação das Oito Consciência nas Quatro Sabedorias.  Neste ensinamento, a prática Budista purifica a consciência transformando-a em “Consciência Luminosa”, corrigindo os conceitos errôneos sobre a natureza da realidade, abre e amplia a experiência dos Agregados, levando à um mergulho na vacuidade dos fenômenos e na vacuidade do próprio mecanismo dos Agregados.  A purificação da Oitava Consciência [Alaya- Vijnana] é transformada na Sabedoria do Grande Espelho Perfeito. A Sétima Consciência [manas/mente] na Sabedoria da Igualdade [a Natureza Universal].  A Sexta Consciência [samja/ cognição] na Sabedoria Observadora Profunda. Da Primeira à Quinta Consciência [dos sentidos] na Sabedoria Onipresente [Perfeição de Ação]

Perceber a verdadeira natureza dos Skhandas, agregados de elementos que se compõem, se conservam e se dissolvem como vapores de consciência de estados psicofísicos sucessivos e interdependentes, sem essência douradura e vazios de substancialidade é imprescindível para a liberação dos estados aflitivos originados pelos desejos- apego e do ciclo contínuo de renascimentos de incontáveis identidades no samsara.   O objetivo destes ensinamentos é uma análise da experiência pessoal, construída pela relação com os inúmeros elementos da forma, dos sentimentos, das formações mentais e consciência, para através dessas reflexões encontrar a sabedoria de Anatta.  Para realizar a vacuidade do “eu- self”, ultrapassar (transcender) os ensinamentos de “nenhum- eu” e encontrar o espaço de Thatagatagarba, morada da semente do Thataghata é preciso atravessar os Quatro Portões do Caminho Budista. O primeiro é O Portal da Inspiração – o despertar inicial, a experiência de Kenshō de ver a própria natureza da mente.  O Portal da Prática que é a purificação de si mesmo pela prática contínua e intensa.  O Portal do Despertar que é o estudo dos grandes mestres e dos sutras budistas, para aprofundar a compreensão dos ensinamentos e adquirir meios hábeis para ser um Bodhisatva, que motivado pela compaixão da Bodhichitta, tem como meta ajudar outros seres sencientes no caminho da iluminação.  Por fim, o último portal, aquele que sua travessia permite ir além da dualidade do “eu” e do “não-eu” O Portão do Nirvana, da Liberação final e do mergulho.

 

Gate gate Paragate Parasamgate Bodhi svaha.

 Sutra do Coração da Grande Sabedoria

 

Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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