Começamos a praticar zazen há quase oito anos atrás. Acostumados a uma vida muito ativa fisicamente, praticando diversos esportes como corrida, surf, musculação, não sabíamos bem o que esperar dessa nova prática. Na verdade, acredito que não pensávamos muito sobre se o corpo aguentaria ou não. O único que parecia nos mover era a vontade de finalmente aprender a meditar e a treinar a nossa mente.
Depois de muitos anos interessados no budismo e mais especificamente no zen budismo e um ano dizendo que algum dia iríamos começar a meditar, finalmente fomos a um zendô pela primeira vez em dezembro de 2014, na sangha de Florianópolis, cidade em que vivíamos na época. Escolhemos o dia de iniciantes e fomos muito bem acolhidos pelo casal que era responsável pela prática e nos explicou com cuidado como faríamos o zazen. Muitos detalhes que só com o tempo iríamos aprendendo e entendendo os significados.
Lembro-me das pernas adormecerem logo nos primeiros minutos e de sentir muita dor no período inicial de 20 minutos. Não conseguia entender como, apesar de fazer tantos exercícios, não podia sentar-me confortavelmente com as pernas em birmanesa (uma das posturas possíveis de meditação). Que alívio quando os 10 minutos de kinhin (meditação andando) chegavam, mas logo depois outros minutos de zazen que, na minha cabeça tinham sido outros 20 minutos menos sofridos, encheu-me de esperança. Apesar da dificuldade física, sentia-me muito contente em finalmente estar começando.
Voltávamos todas as quartas e a dor não passava nunca. Me lembro de planejar a minha fuga para bem longe dali e ficar esperando Mushin san (que na época ainda era só o Daniel) lá na esquina e nunca mais voltar. Porém, seguíamos voltando, pois, o zen já fazia muito sentido em nossa vida; sentíamos que havíamos encontrado aquilo que estávamos procurando uma vida inteira. Pouco a pouco fomos nos adaptando; Mushin san se sentia mais tranquilo na postura da birmanesa e eu ia me encontrando no seiza, postura das artes marciais que me possibilitou fazer zazen por muitos anos.
Seguíamos indo nas quartas-feiras, dia dos iniciantes, mas a vontade de conhecer o Sensei ia aumentando. Lembro-me de sempre pensar que não estava pronta, que eu não ia conseguir permanecer os 40 minutos parada e que só poderia estar diante de nosso professor quando pudesse fazer isso. Anos mais tarde lembro de ter contado isso para o Sensei que riu muito, dizendo de forma carinhosa que não tinha problema se mover diante dele.
A verdade é que a Daissen ia pouco a pouco nos ensinando que qualquer corpo pode praticar zazen, que não existe a postura perfeita a ser alcançada e que muitas vezes faz bem abandonar essa ideia vaidosa de se sentar perfeitamente. Também que é preciso sentar-se com seriedade e disciplina, tentar não se mover nos 40 minutos, mas que o zazen não é para ficar sofrendo. Se a dor for tão grande que você só consiga pensar nisso, então chegou a hora de trocar de postura. Nesses momentos, fazemos um gasshô, como uma espécie de pedido de desculpa a todas as pessoas que se sentam conosco, e nos movemos lentamente para uma outra postura na qual possamos seguir o zazen. É preciso encontrar esse caminho do meio, que para a yoga é conhecida como o ahimsa ou não-violência; ou seja, tentamos nos sentar sem se mover, sem ficar se coçando ou se distraindo com outras coisas, mas não continuamos em uma postura se sentimos um desconforto físico muito grande ou dormências.
Para ir ao primeiro sesshin (retiro zen budista) lembro que também tínhamos medo de não estarmos prontos, de nossos corpos não aguentarem tantas horas de zazen. Mas percebemos que não existia isso de estar pronto; a gente decide que quer fazer sesshin e vai, sente dor, mas continua voltando um sesshin após o outro. Certa vez, Mushin san compreendeu que os sesshins são como a vida: não é que as dores passem com o tempo de prática, mas é a nossa mente que muda a forma de viver, perceber e responder a essas dores. A gente vai encontrando a nossa postura, continua tentando mais um pouco quando a dor aparece, aprende algumas posições para mudar, descobre que algumas dores têm muito a ver com alguns padrões da nossa mente e assim por diante.
Quando nos mudamos para Belo Horizonte começamos a fazer uma sequência de alongamentos todos os dias antes do zazen para tentarmos melhorar nossa postura e diminuir algumas dores que sentíamos. Mushin san é professor de educação física e pensou alguns alongamentos e asanas do yoga que podiam auxiliar-nos na prática do zazen. Pouco a pouco fomos sentindo os resultados positivos dos alongamentos; Mushin san passou a sentar-se em lótus completa, eu consegui sentar-me em meia lótus. Mas o mais importante disso não é ter alcançado outras posturas, mas ter podido explorar mais os limites dos nossos corpos, entender que algumas dores podiam se tornar coisas mais sérias e ter uma maior variedade de posturas para participar dos sesshins. Ainda assim, a gente sempre gosta de enfatizar que não tem postura a ser alcançada. Não há hierarquia entre as posturas e a lótus completa não é o estágio final de uma escala evolutiva que todas as pessoas precisam alcançar. As diferentes posturas existem exatamente para possibilitar que todos os corpos possam praticar zazen.
Mais ou menos nessa época da mudança para Belo Horizonte, a Daissen começou o Curso de Ensinamentos do Dharma (CED) e um dos tópicos ficou dedicado ao zazen e o corpo. Mushin san foi convidado a desenvolver esse material e eu o auxiliei. No curso a gente compartilha essa sequência de alongamentos que nos ajudou, apresenta as diferentes posturas possíveis para praticar e fala sobre as instruções básicas para o zazen. É uma semana para que as pessoas que estão fazendo o curso possam praticar os alongamentos e zazen, compartilhar suas dúvidas, dificuldades e soluções encontradas para poder praticar. Nesses anos de curso, é possível perceber que sempre existe uma ideia de que se a pessoa não consegue sentar-se em lótus completa ela ainda não está fazendo bem o zazen.
E a gente sempre tenta desconstruir essa ideia, porque não é problema nenhum a pessoa passar a vida inteira praticando sentada em uma cadeira; essa também é uma das posturas apresentadas. Pode acontecer de a pessoa ter alguma limitação física (temporária ou não) e ser recomendada a praticar zazen deitada. Eu mesma passei por uma cirurgia no início desse ano e por algum tempo a única forma que encontrei de seguir praticando foi deitada. O que a gente sempre enfatiza é que o que importa é praticar, não faz diferença se na cadeira, em seiza, no banquinho, no zafu, em quarto de lótus ou lótus completa. Todo corpo pode meditar…
Mas também é importante lembrarmos que é preciso praticar com cuidado para não machucar nenhuma parte do nosso corpo. Como praticantes do budismo, treinamos para perceber que corpo e mente não existem separadamente, mas como um todo interligado. Denshô Quintero Sensei, mestre zen colombiano, diz:
Quando nos sentamos em zazen […] o ideal é que concentremos o peso do corpo sobre a almofada e mantenhamos os joelhos bem ancorados ao chão. Assim, o equilíbrio geométrico da nossa postura nos permite despertar para a realidade presente. Não é que a nossa mente desperte por meio do corpo, pois corpo e mente não estão separados. Mas nosso corpo na postura estável é o despertar simultâneo de corpo e mente em unidade com a realidade última (QUINTERO, 2019, p.38).
Dessa forma, muitos dos praticantes budistas acabam focando no trabalho de treinar a mente, porém correm o risco de negligenciar o corpo. Esse descuido pode gerar muitas consequências como a perda de condicionamento ou até o desenvolvimento de doenças crônicas, o que não é exclusivo para praticantes budistas, mas problemas enfrentados por grande parte da população brasileira.
O sedentarismo é um dos principais vilões de uma saúde equilibrada, juntamente com a má alimentação e o estresse. O sobrepeso e a obesidade estão associados com doenças como hipertensão arterial, diabetes, doenças coronarianas, circulatórias e o câncer. Uma pessoa pode ter fatores hereditários e genéticos para desenvolver essas doenças, mas se os fatores externos são controlados de forma adequada, como com uma boa alimentação, com prática de atividade física regular e com baixo nível de estresse, essas doenças podem nunca aparecer.
Entre nós, praticantes de meditação, problemas circulatórios podem ser ainda mais perigosos do que para o restante da população em geral. Nos retiros, passamos muitas horas por dia, e por vários dias, na posição sentada, com os joelhos flexionados e imóveis. Há relatos de praticantes que já desenvolveram trombose em membros inferiores, que é a formação de um coágulo sanguíneo em uma ou mais veias. Esse coágulo bloqueia fluxo sanguíneo causando inchaço e dor. O problema maior é quando um coágulo se desprende e se movimenta na corrente sanguínea, em um processo chamado de embolia. Uma embolia pode ficar presa no cérebro, nos pulmões, no coração ou em outra área, levando a lesões graves.
Depois dos trinta anos de idade, perdemos cerca de um por cento da capacidade aeróbica e da força muscular por ano. Essa tendência pode ser minimizada se mantivermos nosso corpo ativo, seguindo a regra do uso e do desuso, entendida nos termos a seguir: se não temos estímulos, perdemos tônus muscular e perdemos capacidade aeróbica, que é a capacidade de utilizar oxigênio para realizar contração muscular; se nos exercitamos, criamos adaptações e melhoramos nosso condicionamento físico.
A atividade física ajuda a regular as substâncias no cérebro, como por exemplo, a endorfina, que são responsáveis pela sensação de bem-estar. A endorfina alivia as dores, relaxa o organismo, há estudos que dizem que até podem curar doenças. É o hormônio do prazer. Melhora a memória, o bom humor, aumenta a resistência, aumenta a disposição física e mental, melhora o sistema imunológico, tem efeito antienvelhecimento e melhora a concentração. Ajuda também nos casos de depressão e ansiedade, diminuindo também o estresse e a tensão corporal.
Uma prática regular de atividade física tem o potencial de reduzir ou até extinguir problemas de saúde pré-existentes. Entendemos por atividade física qualquer atividade ou movimento que gere um gasto energético acima dos níveis de repouso. A atividade pode ser leve, como uma simples caminhada ou uma atividade mais intensa, como a corrida. Mesmo uma atividade física leve, como uma caminhada diária, já tem o potencial de gerar benefícios para o corpo e para a saúde de forma geral. O importante é movimentar-se.
No caso de praticantes budistas, os alongamentos são uma excelente forma de voltar a exercitar o corpo, pois podem auxiliar bastante a reduzir dores e incômodos da postura sentada que utilizamos na meditação. Além disso, ajuda no alcance de uma maior qualidade de vida de forma geral. Mas voltamos a ressaltar que não existem corpos certos para a prática de meditação, qualquer pessoa pode praticar, independentemente de sua condição física e de saúde, pois adaptações são sempre possíveis. No entanto, manter-se ativo fisicamente pode auxiliar muito no sentar e trazer um pouco mais de estabilidade corporal para a prática.
Ainda assim, é importante dizer que atividades físicas, alongamentos ou yoga não são a prática do zazen em si, mas apenas práticas que podem auxiliar no sentar-se e na vida em geral. Treinar corpo-mente é entender que nada está separado, que não existem modelos rígidos a serem seguidos, posturas a serem alcançadas. Como retorno dos próprios praticantes sobre o tópico zazen e dos alongamentos que às vezes ofertamos nas práticas virtuais da Daissen, a gente muitas vezes escuta que os alongamentos ajudaram muito na prática das pessoas.
A gente fica contente em saber que essas atividades simples cumpram o principal objetivo que é permitir que as pessoas continuem se sentando em zazen. Não existe postura perfeita, mas é possível nos sentarmos cada dia melhor, de um jeito que não machuquemos nosso corpo e que nos permita seguir com a prática do zazen. Com o tempo vamos encontrando a postura que mais seja adequada para a gente, encontrando estratégias para algumas dificuldades, entendendo algumas dores como ligadas a alguns pensamentos, acertando a postura, aprendendo a conviver com as dores e vamos seguindo no caminho.
Gasshô!
Monge Mushin (Professor de Educação Física)
Nathália Fusô (Antropóloga)
Praticantes da Daissen Ji
Tutores nos tópicos Zazen e o Corpo e Zazen e a Mente do Centro de Estudos do Dharma – CED
Bibliografia
QUINTERO, Denshô. Duvidar da própria compreensão: indagações no caminho do zen. 1.ed. João Pessoa: Daissen Ji, 2019.