Entrevista com Ana Ricl – Coordenadora do Centro de Estudos Budistas Bodisatva Bahia

 

“Estar no meio ambiente é um processo educativo”

Ana Ricl

 

Nesta edição trazemos uma entrevista com Ana, praticante do Budismo Tibetano e coordenadora do Centro de Estudos Budistas Bodisatva Bahia, com sede no Recôncavo Baiano, município de Santo Amaro da Purificação. O CEBB Recôncavo está localizado na zona rural, em uma área de aproximadamente 8 hectares, imerso à natureza.

Nesta entrevista, Ana Ricl, nos conta sua história como praticante budista e descreve como estar inserida no meio natural impacta a sua prática e a sua maneira de vivenciar o mundo.

Podemos começar contando um pouco da sua história dentro do Budismo?

Ana: É uma história longa, bem longa. Sou aluna do Lama Padma Samten desde janeiro de 1997, mas antes disso, conheci o budismo com Chagdud Tulku Rinpoche[1], Lama Tsering Everest[2], Lama Kadro[3]. Com eles, recebi iniciações. Conhecia o Budismo, praticava eventualmente. Engajar-me aconteceu com Lama Samten. Naquela época, quase não conhecíamos o Budismo aqui na Bahia, mas havia o budismo japonês, mas conhecer praticar com o Lama Samten. A partir dele, o Budismo avançou aqui, na Bahia.

Fui fazer cursos e práticas, receber seus ensinamentos lá em Viamão/RS, Caminho do Meio. Minha vida era em Porto Alegre. Sair daqui para o aeroporto, pegar um táxi, ir até Viamão, Caminho do Meio, fazer o retiro, pegar um táxi, voltar para o aeroporto, e voltar para a Bahia. Isso acontecia algumas vezes no ano. Até que comecei a praticar lá em casa, em meu apartamento, com umas 4 ou 5 cinco pessoas, aí pensaram em um espaço fora do apartamento, e alugamos um pequeno sótão de uma loja, na orla. Comecei assim, carregando as sadanas[4], os zabutons[5], os zafus[6], livros, objetos de prática, chá, biscoitinhos e outros coisas, de minha casa para lá; eu tinha um fusca, ele ia cheinho. Depois, descarregava tudo, e carregava novamente para meu apartamento, isso tudo, uma vez por semana, e feliz. Alugamos uma outra sala, em Amaralina. Uma sala que só tinha uma porta, não tinha janela e era sol poente. Então, quando era verão fazíamos a prática com o suor escorrendo aqui no rosto. Ríamos e seguíamos felizes. Então fizemos um brechó e conseguimos o dinheiro certinho para comprar um ar-condicionado.

Precisamos sair de lá, o prédio seria vendido. Conseguimos uma sala num pequeno shopping familiar, no bucólico e boêmio bairro chamado Barris. Era pequeno. Depois surgiu uma sala maior com três andares interno, no mesmo shopping, e começamos a praticar lá. Lama Samten deu ensinamentos ali várias vezes, trouxemos outros mestres e convidados. Sequimos assim, a porta se fechava, saíamos. A porta se abria, entrávamos. Isso mudou a minha forma de ver as coisas. Então nesse segmento, eu ajudava muito a outros CEBBs[7], arrecadando valores para as obras, arrumando, cuidando. Os CEBBs rurais quando estavam se formando, no início, exigiam muito trabalho e você sabe que nosso grupo não é muito grande. Até que surgiu uma oportunidade e uma possibilidade desse espaço aqui, rural. O Lama na época achava que aqui tinha bastante espaço, deu suas bênçãos e acabamos vindo para cá. Temos um CNPJ e é a sede do Centro de Estudos Budistas Bodisatva Bahia. Em Salvador, nós temos um espaço do CEBB que fica em Ondina, após os Barris. E o CEBB orienta alguns dedicados GEB`s, que são grupos de estudo. Eles funcionam de forma mais livre, não tem a mesma responsabilidade que um CEBB. Há o GEB de Feira de Santana focalizado pela Dra. Mabel, um em Aracaju focalizado pelos Professores Ulisses e Viviane, e orientamos um outro na Argentina, focalizado por Fabio, jovem estudante de medicina, mora em um Monastério e de lá ele conduz o grupo de estudos “Meditando a Vida” sob nossa orientação. Em Santo Amaro há o grupo de estudos com o nome Recôncavo Meditando, conduzido pela Professora Fátima, moradora na cidade. Esse grupo é muito curioso, muito interessante. Ele surgiu envolvendo variadas tradições e o foco é meditação. É como Dalai Lama diz, não mude de religião, mas comece a praticar, se um dia você achar interessante, você vem. E o grupo está crescendo as pessoas estão se inscrevendo. E pronto. Estamos aqui.

Começamos aqui em 2013, em 13 de junho de 2013, assinamos o contrato. Aqui é um centro de estudos, retiros, práticas; local para aprofundar suas práticas espirituais, alguns praticantes construírem seus refúgios dentro desse espaço do centro de retiro, o que denominamos de aldeia, aldeia budista. A minha história no Budismo começou assim, no Budismo Vajrayana[8], pratiquei o Vajrayana por alguns anos. O Lama Samten nos conduz na tradição Mahayana[9] e foi maravilhoso ele ter tido essa opção porque nos permite  aprofundar mais na visão budista.

Na comunidade de vocês há projetos vinculados ao meio ambiente que envolva a contemplação do meio natural?

Nós temos prática de interação com a natureza. Convivendo aqui é que percebemos que a nossa prática é ampliada cada vez mais. Digo com tranquilidade, pela minha experiência e dos demais, que um centro de retiro no meio à natureza, imersa na natureza, convivendo com a fauna e flora da região, a prática espiritual fica ampliada. Na cultura tibetana, os cinco elementos são considerados composição de todas as formas existentes. Os cinco elementos formam a base da medicina tibetana, de sua astrologia, da psicologia. Eu não nos vejo explorando o meio ambiente para exercer a nossa prática, mas interagindo, não dá para desvincular. Aqui é minha prática e aqui é ambiente rural. Convivemos com outras formas de vida. Temos animais silvestres, temos Teiú e outros, pássaros incríveis, até o surgimento de cogumelos, as espécies mais exóticas que você possa imaginar. Então, até o templo, em sua fase final de construção, permite que, de dentro do templo, observemos e contemplemos o que está fora, a exuberância das árvores com suas folhagens dançando ao movimento dos ventos. Ele terá uma porta grande, terá duas portas menores, mas suas paredes permitem vermos, contemplarmos, vivenciarmos todos os elementos da natureza do lado de fora. Percebemos que atenção a essa interação é essencial. Os elementos externos e os elementos internos a nós. O cuidar da terra, da água. Nós estamos começando a sentir esse sabor tão sutil. Eu digo começando, porque o processo é contínuo. Quando vamos parar de aprender? Nunca.

Impressionante porque nada sabemos de como nos comunicar ao meio ambiente. Mas a relação sagrada com o ambiente e com as pessoas indica que o aspecto sagrado de nossa vida está evoluindo. Há muitas práticas meditativas quando imersos na natureza, observando a natureza, interagindo os elementos da natureza com o próprio ser. Estamos começando a agrofloresta[10], aprendendo e apanhando, porque achamos que entendemos, mas ainda não entendemos. Precisamos ouvir como eles se relacionam e interagem entre si. Então um pedaço de terra cultivado em uma área aqui é diferente de lá. Às vezes, para a construção de uma obra é necessário que uma árvore seja cortada e explicamos direitinho porque a árvore não deveria ser cortada. Por outro lado, temos consciência que para cada árvore cortada, algumas de espécies nativas serão replantadas. Uma escola viva. Um dia é diferente do outro. Não tem como se deprimir, se entediar.  Vamos aprender fazendo e não é teoria, não adianta teoria, não adianta ouvir reportagens, se sensibilizar com as consequências de ações por não haver considerado a natureza viva ao longo do tempo, não ter percebido que nós somos a própria natureza. Não há separação entre nós e o meio ambiente, é só uma forma de estar.

E como é o projeto agroflorestal? É do CEBB?

Iniciamos aqui, com uma área de preservação ambiental, margeado por um riacho com olhos d`água. Sim, vamos no educando e todos nós vamos nos conscientizando, sobre manejo inteligente da terra. É necessário um olhar atencioso. A agrofloresta pede um olhar do coletivo, de todos da aldeia. Sem esse olhar ficará mais lento. Emociona ver os mutirões, juntos construindo. Já servimos da agrofloresta: bananas, abóboras, pepino, a pimenta e outros. É o alimento, o manejo inteligente da terra. Olha que expressão tocante: é plantar água. O desejo é que a área da agrofloresta seja ampliada, e que todos estejam envolvidos na manutenção e na preservação dela. Não é só criação, criar é muito pouco perante a demanda da manutenção e preservação.

Temos que envolver o coletivo, não é?   

Não é uma obrigação envolver. É o fluir se envolvendo coletivamente. E cada um têm seu chamado interno. Somos sensíveis, porém, frutos de um sistema de educação urbano. Crianças urbanas que não conhecem uma galinha viva, achamos divertido isso, mas é algo duro perceber essa distância e lidar com isso. Temos muito chão pela frente. Requer o coletivo. Não sinto como processo evolutivo, mas um processo de retornar para dentro, para a roda, de voltar-se para quem somos. O cuidado na alimentação, o que quer dizer um cogumelo surgir, nascer exatamente no caminho que caminhamos. O que quer dizer um teiú passear pelo seu quintal. Um dia, recebi aqui uma família de visitantes e quando eles estavam aqui um teiú cruzou o quintal e um dos visitantes, ao ver o teiú passeando com seu filhote, falou: “ah, isso dá um prato delicioso…”. Silenciamos para dizer que ele era mais bonito andando aqui, no meio da gente, se divertindo e nos divertindo, do que perdendo a vida.

Na verdade, não precisamos dele para viver, precisamos dele para conviver, é diferente. E quantas espécies diferentes de animais silvestres aparecem aqui. Um encanto. Penso que, que temos uma educação urbana, e vem viver em um ambiente assim – uma comunidade, num centro de Dharma, em meio rural – vem por um chamado interno, quer aprofundar suas práticas espirituais. Jogamo-nos, mergulhamos e muitas vezes nem sabemos o que há. Trazemos todos os vícios, os visgos. É como se fosse uma jaca, por mais que você limpe, os visgos do urbano ficam. Então quando vêm para cá, convivemos com o desafio de aprender individualmente e no coletivo, e todos percebem que precisam continuar a caminhar, a avançar, assim só e no coletivo. Todos são providos de boa vontade e uma boa disposição. Isso é importante. É a história de nossa vida.

Fale um pouco sobre a sua convivência com as comunidades Quilombolas.         

Foi uma coincidência. Vínhamos desejando se aproximar da comunidade do entorno. Recentemente o CEBB recebeu o convite de uma creche escola próxima para visitá-la, pediam ajuda. Com mais dois educadores do CEBB Recôncavo, fomos até lá. Esses dois educadores acabaram de construir seu refúgio de taipa aqui na aldeia. A primeira pergunta que a diretora da creche nos fez é se não teríamos um projeto pedagógico que pudesse ajudar, e além disso apresentou uma série de outras necessidades. Foi uma alegria essa troca. Vamos começar a nos aproximar das crianças, dos professores e cuidadores. São 80 crianças e 17 pessoas que cuidam. É aqui pertinho. Através de uma aluna do curso de psicologia budista, nos aproximamos de uma das comunidades quilombolas, também próximo. Estamos conversando, nos olhando e nos conhecendo. Mas foi uma das doces coincidências da vida. É como escutar a natureza e ela vai chamando e aproximando as pessoas.

Temos pensamentos e intenções de trabalharmos juntos e uma das atividades está voltada para área de saúde. Praticamos o não saber. Então precisamos aprender um com o outro. Estamos nos ouvindo, vamos aprender juntos. Eles preservem sua cultura de forma muito bonita ao longo do tempo. Então o que queremos é ouvir, aprender com eles, estarmos juntos e juntos construirmos. Delinear juntos projetos. Vamos juntos assim: sem intenção, mas com intenção, sem expectativas, sem ansiedades, seguir juntos. Assim é maravilhoso, suave e divertido. Eles cultivam e produzem o Dendê. Acho fantástico, porque o CEBB também faz uso do dendê em sua culinária. É maravilhoso. Uma cultura fantástica. Mais uma dessas coincidências que nos revela que estamos interligados mesmo sem se dar conta. Quando fomos visitá-los pela primeira vez, nos sentamos numa roda de conversa sob a sombra de uma arvore, estávamos com os Monges da tradição Zen, Koho e Daein, que moram na Suíça. Ficamos sem palavras quando uma das filhas daquela comunidade nos revelou que seguia a Monja Coen, pela internet. Monja Coen é a mestra desses dois monges! Aspiramos em futuro próximo recebermos a Monja Coen, o Lama Padma Samten e sentarmos todos juntos e nos ouvirmos e sonharmos juntos. Uma pérola!

 

Indicações de livros por Ana:

Meditando a Vida, de Lama Padma Samten

Ecodarma, de David Loy

O Negócio é ser pequeno (estudo da economia que leva em conta as pessoas), E.F. Schumacher

Megatendências, de Doris Naisbitt (Autor) e John Naisbitt (Autor)

 

Entrevista realizada por:

Liana Oliveira Lopes Borges. Praticante na Daissen Goiânia. Escola Soto Zen.

Thainá Soares. Praticante do CEBB de Salvador.

 

 

Referências:

cebbreconcavo@gmail.com

https://cebb.org.br/praticas-regulares-cebb-reconcavo

 

 

 

Imagens CEBB Recôncavo

Sala de prática CEBB Recôncavo

 

[1]ChagdudTulkuRinpoche (Tromtar tibetano, Tibete, 12 de agosto 1930 — Três Coroas, 17 de novembro de 2002) foi um lama da escola Nyingma de Budismo Vajrayana tibetano, reconhecido como o décimo-sexto renascimento do abade do mosteiro de Chagdud. Um dos primeiros lamas a residir nos Estados Unidos, ele mais tarde viria a se mudar para o Brasil e construir o primeiro templo tradicional na América do Sul. A ênfase dos seus ensinamentos sobre a motivação pura na prática espiritual, e em todas as atividades, inspirou milhares de praticantes; Disponível em: https://www.odsalling.org/sermon/biografia-de-chagdud-tulku-rinpoche/;

[2] Nascida nos EUA, Lama Tsering foi, por mais de onze anos, intérprete de S.Ema. ChagdudTulkuRinpoche. Depois de completar, em 1995, um retiro de três anos, recebeu a ordenação de Lama, sendo assim autorizada a dar ensinamentos e iniciações do budismo Vajraiana. Neste mesmo ano, foi convidada a dar ensinamentos no Brasil, para onde se mudou logo depois, assumindo a coordenação do centro em São Paulo, o Odsal Ling. Disponível em: https://www.odsalling.org/sobre-nos/lamas/lama-tsering/;

[3] Diretora espiritual do ChagdudGonpa Brasil, foi casada com ChagdudTulKuRinpoche, desde o parinirvana de Rinpoche, em 2002, ChagdudKhadro tem se concentrado em dar continuidade ao treinamento Vajraiana de alta qualidade estabelecido por ele. Disponível em: https://chagdud.com.br/;

 

[4]Nesse caso específico, ela está se referindo ao livro de preces utilizado no CEBB;

[5] É um tapetinho sobre o qual é colocado o zafu;

[6] É um nome para almofada utilizada para meditação, originária da Ásia e usada desde tempos remotos;

[7]Os CEBBS – São os Centros de Estudos Budistas Bodisatva, entidade dirigida pelo Lama Padma Samten.

[8]A palavra Vajrayana quer dizer “O Caminho de Diamante”. A Vajrayana se ampara mais em uma espécie de literatura chamada de tantras, do que nas escrituras budistas tradicionais, e, por causa disso, muitas vezes é também conhecida por Tantrayana. A Vajrayana atualmente prevalece na Mongólia, Tibete, Jammu e Caxemira, Nepal, Butão e entre tibetanos vivendo na Índia.Ver https://olharbudista.com/2016/07/04/os-3-veiculos-do-budismo-theravada-mahayana-e-vajrayana/;

[9]Mahayana  significa “O Grande Caminho” [literalmente significa o Grande Veículo]. Tal nome se justificava em face da alegação de que suas propostas eram relevantes para todas as pessoas, e não apenas para os monges e monjas que haviam renunciado ao mundo. Ver https://olharbudista.com/2016/07/04/os-3-veiculos-do-budismo-theravada-mahayana-e-vajrayana/;

[10]A Agrofloresta é um sistema de produção que imita o que a natureza faz normalmente, com o solo sempre coberto pela vegetação, muitos tipos de plantas juntas, umas ajudando as outras, sem problemas com “pragas” ou “doenças”, dispensando o uso de venenos. Nos Sistemas Agroflorestais, encontramos uma mistura de culturas anuais, árvores perenes e frutíferas e leguminosas, além de criação de animais e a própria família de agricultores, em uma mesma área. Ver em https://ipoema.org.br/conceitos-de-agrofloresta/

 

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