Meditação e Sutras nos Templos de Luang Prabang


Texto da série “Memórias de um Casal de Peregrinos”

 

 

Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era.

Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era.

O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for;

pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.

Minha vida não tem sentido apenas humano,

é muito maior – é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido.

Da organização geral que era maior que eu,

eu só havia até então percebido os fragmentos.

Clarice Lispector – Paixão Segundo G.H.

 

Um mar de floresta abaixo de nós, e o avião descia calmamente, como quem sabe o que faz. “Onde será que vamos pousar? ”. Os mais diferentes filmes e documentários sobre desastres aéreos passavam em minha cabeça. Não tínhamos perdido nenhuma asa, não havia despressurização da cabine, nada de incêndio, nenhum pássaro cometera suicídio em nossas turbinas, tudo era silêncio e calmaria. Ainda assim, a impossibilidade de conseguir imaginar que ali, em meio a todas aquelas montanhas verdes, surgiria um aeroporto me levou a perceber como aquele conjunto de pessoas e máquina, flutuando no céu, éramos apenas um pontinho. Minúsculo. E, de longe, revelava a verdade última: éramos de fato, juntos, um só. Tão pequeno era nosso pontinho, provavelmente indistinguível no céu, que, conosco, em adição, resultava em nosso “um”. Pensei em Clarice Lispector e sua personagem do livro “A Paixão segundo G.H.” que percebeu sua unicidade com uma barata. Em um desastre aéreo, seríamos perceptivelmente, juntos com aquele verde. Sem invólucro. Em não nos vermos como separados, é que realmente existíamos. Em não delimitar separação, é que somos com tudo. Não só com os humanos, mas tudo, tudo. “O caminhar das montanhas é como o caminhar humano. […]. As pessoas fora das montanhas não percebem nem entendem o caminhar das montanhas. Aqueles que não têm olhos para vê-las não podem perceber, entender, ver ou ouvir isso tal como é” (DOGEN. In: Tanahashi (org.), 1993. p. 111 e 112).

Escrutinando aquelas montanhas, pousávamos.

Monges recebendo alimentos dos leigos

Colonizadores e Explosivos

Em 2017, uma garotinha laosiana de 10 anos achou um tesouro metálico e o levou para casa. Era dia de festa, e o “tesouro” explodiu matando a menina e ferindo 12 de seus parentes. O objeto era, na realidade, uma bomba de fragmentação remanescente dos ataques aéreos dos EUA entre 1964 e 1973. Esse tipo de bomba carrega explosivos menores que se espalham causando ainda mais danos.

Mas essa ação indiscriminada significa que 99% das vítimas são civis. E, como alguns artefatos não explodem, permanecendo intactos, acabam matando civis acidentalmente muito tempo depois que as bombas foram lançadas originalmente.”[1]

Tal é a tragédia que não se permite esquecer nesse país. O Laos carrega o triste recorde de país mais bombardeado, per capita, do mundo. Foram em torno de 270 milhões de bombas lançadas pelos EUA. Há estimativas de que ainda restem dezenas de milhões de bombas não detonadas espalhadas pelo território nacional.

Luang Prabang, patrimônio mundial da UNESCO, é uma cidade que vive do turismo. Arquitetura com influência europeia cravada no meio da densa mata asiática, uma combinação que atrai pessoas de todo o mundo, mas principalmente seus ex-colonizadores franceses. Os moradores locais cozinham, servem as mesas, conduzem os barcos que flutuam pelo Mekong, vendem pacotes turísticos, dirigem tuk tuks e prestam todo tipo de serviços.

Flagelados pela guerra e, agora, servindo aos turistas do ocidente. Não é o tipo de situação que nos deixa confortáveis, por mais simpáticos e felizes que demonstrassem ser. Quando pegávamos bicicletas e saíamos do centro histórico, indo em direção aos vilarejos periféricos, podíamos ver um pouco mais do Laos verdadeiro. Um país pobre, cheio de pessoas gentis que pareciam se divertir em tentar se comunicar sem terem uma língua comum com aquele casal de brasileiros.

Nos restaurantes os atendentes costumam ter um bom nível de inglês e no night market da cidade falam ao menos o suficiente para as negociações de preços – que geralmente é mostrado por meio de uma simples calculadora. Nas feiras e mercadinhos periféricos, no entanto, parecia que éramos nós a atração turística chamando a atenção de todos ao tentarmos descobrir preços e perguntar direções sem sabermos nada da língua laosiana. Pelas reações, parecia ser algo muito raro a presença de ocidentais por aquelas áreas. Além disso, em nenhuma dessas nossas “fugas” das áreas turísticas encontramos qualquer pessoa que não fosse morador local.

Onipresentes nas ruas do centro, franceses se sentiam tão à vontade que não era incomum nos abordarem falando sua língua e esperando serem entendidos. Atitude que não os vemos ter em outras partes do mundo – nem mesmo em outros países asiáticos pelos quais passamos. Assim, embora a cidade seja muito bonita e agradável, existe uma clara cisão entre servidos e serviçais, diferentemente de várias cidades inclusive turísticas da Tailândia, onde os moradores locais trabalham na indústria do turismo, mas também usufruem dela como clientes, e onde costumam ser a maioria dos frequentadores dos nossos restaurantes favoritos, cinemas etc.

Vista de cima do Phousi Hill a cidade entre montanhas e matas

Portal Mágico

O fato é que aquele era o pedaço do Laos que seria nossa casa por cerca de um mês. Parecíamos adentrar um portal no meio da selva em que dava para uma cidade escondida. O porão de um “sport bar” australiano seria nossa primeira casa. Estávamos relativamente longe do burburinho, mas, ainda assim, tínhamos a impressão de que os habitués daquele ocidentalizado botequim pareciam querer se distanciar ainda mais de tudo – não só das montanhas, mas também dos laosianos.

Poucos dias depois, conseguimos um quarto na casa de um local, em que se hospedavam também uma pequena família japonesa e uma professora de yoga suíça. Nosso vizinho: um templo Theravada. Para cortarmos caminho, era permitido que passássemos pelo pátio dos monges.

Em ritmo de código morse, os mantos de açafrão balançavam pendurados nos varais. Se parássemos para decifrar, talvez leríamos que “o poder inconcebível de flutuar no vento emana livremente das montanhas” (DOGEN. In: Tanahashi (org.), op. cit., p.111). Tanta coisa nossa mente dualística reluta conceber.

Dando aulas de inglês para os jovens monges

Anos depois, fazendo a Kora tibetana (circumbulação) em Dharamsala, no norte da Índia, nos arredores do Templo de Dalai Lama, em meio às bandeirinhas coloridas com orações, sentimos uma lufada. Ela trazia açafrão laosiano para as montanhas dos Himalayas, e, de lá, levava minhas preces àquele pátio, onde por tantos dias caminhamos ouvindo e sentindo sutras.

Nossas tardes no Laos faziam jus à passagem pelo portal mágico de nossa chegada a Luang Prabang. Éramos dois dos raríssimos – quando não os únicos – ocidentais que participavam dos cânticos e das sessões de meditação com os monges. A cada dia, íamos a um templo diferente. O pôr do sol alaranjado se confundia com os mantos, os sutras em pali cantados, tudo cercado por mata, rio e nuvens.

Monges noviços participando dos cânticos

À época, aquela paisagem tão não-minha, tão estrangeira a mim, parecia facilitar a minha compreensão sobre o mover das montanhas. Enquanto escrevo estas memórias Dogen me exorta: “não calunieis dizendo que uma montanha verde não pode caminhar” (Ibid, 112). O cenário que me invade e que tento, aqui, descrever é a minha compreensão de que “estas montanhas e águas neste momento são a manifestação do grande caminho dos antigos budas[2]. Era uma beleza extraordinária, mas para quem lá vive há anos, aquilo é o ordinário. Como as cercas, as paredes, os azulejos e as pedras[3]. Tudo sobre o que andamos ou o que usamos como elementos periféricos, molduras para o que é tido como central, é posto como a manifestação do Caminho para além dos três tempos. Esses elementos caminham pelo calendário das nossas manifestações. Enquanto escrevo sobre o que vi há anos, projeto um estado abstratamente futuro para aquele cenário que, como tal, só existe em mim hoje, por isso as montanhas, os rios, as nuvens, andam e se modificam, “são a expressão da realidade atemporal, o caminho dos antigos budas” (OKUMURA, 2018).

As primeiras horas das manhãs conseguiam proteger a lembrança do frescor noturno. O vento estava sempre presente em nossas idas matutinas a uma casa de apoio a inúmeros meninos que deixaram seus familiares, para receberem uma educação melhor do que aquela que conseguiriam em suas aldeias, além de comida e sustento. Eles passavam os últimos anos da infância e toda a adolescência como monges. E nós passávamos partes de nossas manhãs dando-lhes aulas de inglês. Contavam-nos seus planos e as histórias familiares que os conduziram à condição de monges noviços. Muitas vezes, os víamos à tarde, nos templos, varrendo, brincando, cantando e meditando.

Narradores do folclore local

Elegemos Luang Prabang para um período em que não faríamos retiros. Fomos ao museu em que fica a estátua mais importante de Buddha do país (Phra Bang Buddha), flanamos pelas inacreditáveis cachoeiras de Tad Thong, experimentamos sticky rice de incontáveis restaurantes (um arroz grudento, que comíamos com as mãos, colocado em cestinhas), navegamos pelo Mekong, pedalamos para lugares onde o inglês não era língua franca, atravessamos quase diariamente uma ponte de bambu que é reconstruída todo ano no período de seca e é levada pelas águas do rio durante as monções, assistimos a uma peça de teatro em que os atores laosianos – em inglês – contavam sobre o folclore local, por fim, subimos a escadaria de 100 metros do Phousi Hill para vermos a Pagoda de pertinho e ganharmos 360 graus de vista da cidade. Alcançávamos o pico, meio esbaforidos, tivemos de subir a colina mais rápido do que planejáramos – logo acabaria o horário que tínhamos para a visitação.

De cima, víamos o dia virar noite. As sombras mudavam as construções, o fim de luz que incidia sobre os telhados, o som que subia com a poeira, tudo dava novas cores à cidade. Víamos um transformar que andando pelas ruas não percebêramos.

 

Embora [as montanhas] caminhem de maneira mais veloz que o vento, alguém nas montanhas não percebe nem entende isso. “Nas montanhas” significa o florescimento do mundo inteiro. As pessoas fora das montanhas não percebem nem entendem o caminhar das montanhas. […]. Se o caminhar para, os ancestres de buda não aparecem. Se o caminhar termina, o Dharma-de-buda não pode alcançar o presente. Caminhar para a frente não cessa; caminhar para trás não cessa. O caminhar para a frente não obstrui o caminhar para trás. O caminhar para trás não obstrui o caminhar para a frente. (DOGEN, op. cit., p. 112)

 

Embaixo se vê o que em cima fica pequeno e em cima o que embaixo não alcança, embora sejam imagens contíguas, quando se apreende uma, a outra se vai. E a ida de uma é o que permite a chegada da outra. Descíamos lentamente, absortos em nossas percepções.

As pessoas geralmente passam dois a três dias naquela pequenina cidade. Nossa escolha de vida lenta nos permitiu acompanhar o florescimento do mundo inteiro.

Mulher segurando cesto com arroz para ser doado a sangha

O Templo e o Mundo

Quase todas as tardes, comíamos em alguma das ótimas padarias/cafés no estilo francês – a preços do sudeste asiáticos. Matávamos a saudade dos sabores familiares, aproveitando para usarmos o wifi e concluirmos trabalhos e respondermos a e-mails. Conversando com os garçons, descobrimos que a maioria mora em vilas próximas e alguns vieram de mais longe em busca de emprego. Nos tornamos famosos entre eles como os brasileiros que sempre pediam azeite para colocarem nas baquetes que comprávamos. Nas primeiras vezes, levávamos alguns minutos até que entendessem que realmente queríamos colocar aquele óleo em nossos pães. O detalhe é que, pelo que pudemos constatar, não há azeite não “batizado” na cidade. Todas as garrafinhas tinham muitas pimentas imersas.

Minutos antes das 17 horas, os sinos dos templos começavam a tocar avisando o início dos rituais noturnos. Pagávamos nossa conta e rumávamos para o templo pré-escolhido para aquele dia. Lá, após subirmos as escadas protegidas por estátuas de Nagas[4], tirávamos nossos calçados, fazíamos uma reverência ao passarmos pelas grandes portas, escolhíamos um lugar para ficar e seguíamos com três prostrações – como é o costume na tradição Theravada. Os praticantes leigos locais, nos ofertavam largos sorrisos com a cumplicidade de quem compartilha um pedaço de seu próprio mundo.

 

Iti pi so Bhagavâ-Araham Sammâ-sambuddho.

Vijjâ-carana sampanno Sugato Lokavidû Anuttarro

Purisa-damma-sârathi Satthâ deva-manussânam

Buddho Bhagavâti

 

Os cânticos em páli, por vezes, nos faziam sentir que poderíamos estar de volta na Tailândia. Recitávamos as partes que nos eram mais conhecidas e logo passávamos a apenas acompanhar mentalmente enquanto iniciávamos nossa meditação. Cercados pelas estátuas douradas grandiosas e pelas paredes com pinturas que rememoram histórias contadas nos sutras, éramos embalados pelos sons dessa língua anciã e por uma prática atemporal. Em tais tardes, tragados pelo Dharma, parecia não existir qualquer coisa fora daquele momento e local. O mundo era o templo e o templo era o mundo.

Trabalhando a beira do rio Mekong

Portanto, nossa Luang Prabang é menos formada por restaurantes, excursões e passeios do que por todo e cada monastério que íamos ao entardecer. Alguns deles eram também centros de treinamentos para noviços. Assim, após as cerimônias, as crianças monges corriam brincando e pulando com suas vestes esvoaçantes.

Todos os dias, ainda antes do amanhecer, os monges percorrem as ruas esmolando alimento. A tradição que remete ao tempo do Buddha histórico cria uma conexão muito estreita entre leigos e comunidade monástica. Um monge nos explicou que não é ele, o indivíduo, que recebe o alimento, mas a sangha e que não é em frente a ele que os leigos se ajoelham quando fazem sua oferta, mas aos discípulos de Buddha como um todo.

As ruas levemente iluminadas pelas lâmpadas amareladas recebem filas de mantos açafrão e o ar fresco se enche com os cânticos. Uma após a outra as tigelas ficam cheias e os moradores recolhem suas panelas e cestos vazios, onde trouxeram as ofertas, e voltam para suas casas dando início a mais um dia.

De barco no Rio Mekong

Densidade, Tempo e Dharma

Tem sido enriquecedor o processo de escrever nossas histórias de peregrinação, pois as revivemos com nosso olhar mudado pelos anos que se passaram e, principalmente, pelos ensinamentos do Zen que temos recebido de nosso mestre. Dogen invade suavemente algumas de nossas memórias, assim como, por vezes, palavras de Monge Genshō se mesclam a situações que ocorreram anos antes de nos tornarmos seus alunos. De tal forma, os ensinamentos que viemos recebendo mudam não só o nosso presente e, consequentemente, o nosso futuro, mas eles também reescrevem o nosso passado.

A Tamara que se sentava ao meu lado para meditar nos templos de Luang Prabang é agora a Kakuji que ouço treinando a recitação do Maka Hannya Haramita Shingyo no cômodo ao lado. Mas o que me surpreende é a constatação de que, de alguma forma que não sei explicar, ao relembrar nossas histórias, percebo que Kakuji estava lá naqueles templos dourados cantando “Namô Tassa Bhagavatô Arahatô Sammâ-Sambuddhassa”. As camadas de prática, recitações, experiências vão se somando e mesclando, mas me parece ser algo muito mais da ordem da ampliação de uma densidade do que de uma linearidade óbvia de histórias que se sucedem.

Nossa meditação diária

Talvez seja disso que se tratam os anos de prática: uma densidade cada vez maior que um dia pode chegar à explosão e não um caminho que aponte para uma direção como eu costumava pensar. Assim, o despertar está aqui e não lá (onde ou quando quer que seja esse “lá” projetado). Camada após camada de experiências, a densidade dhármica ganha corpo, sempre aqui e agora. Aqui, no Brasil, escrevendo este texto. Aqui no Laos olhando para os olhos da estátua de Buddha. Agora, nesta manhã paulista de frio. Agora, nesta noite estrelada e morna às margens do Mekong.

Texto de

Thomás Muryo 無量, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista.  Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.

Tamara Kakuji 覚慈, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen

 

 

Referências:

DOGEN, Eihei. Treasury of the True Dharma Eye: Zen Master Dogen’s Shobo Genzo”. Edited by Kazuaki Tanahashi, 2012.

LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo GH. Ed. José Olympio. 1974.

OKUMURA, Shohaku. The Mountains and Waters Sutra: A Practitioner’s Guide to Dogen’s Sansuikyo. Wisdom Publications, 2018.

TANAHASHI, Kazuaki (org.). A Lua Numa Gota de Orvalho: Escritos do Mestre Dogen. Editora Siciliano, 1993.

[1] As bombas esquecidas que matam mais crianças do que adultos. Acesso em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45366508

[2] Okumura propõe, seguindo Menzan Zuihō (1683–1769), essa retradução da frase de abertura de Sansui-kyo (“Sutra das montanhas e das águas”).

[3] “Treasury of the True Dharma Eye: Zen Master Dogen’s Shobo Genzo”. Edited by Kazuaki Tanahashi, 2012, p. 470

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Naga

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