“É por meio de suas ações que um praticante Zen Budista pavimenta o
caminho que ele irá percorrer. A cada pedra colocada, o praticante pode
avançar no caminho. Ele pavimenta o caminho com a construção de seu
próprio carma, portanto, ele altera seu carma e com isso, no Zen, tiramos a
responsabilidade ou o poder sobrenatural de qualquer outro ser lá fora.
Nós temos os poderes sobrenaturais para a construção de nossas próprias
vidas. Desta e das futuras. Como? Por meio de nossos pensamentos, atos e
palavras, por meio da construção de nossos karmas.”
(Monge Genshō)
Para mim, há no trecho acima uma verdade profunda e que representa como me sinto hoje. Está claro para mim o poder dos pensamentos, atos e palavras. Venho de outras experiências que já apontavam para esta direção. Somente
uma mente clara, limpa e livre das paixões é capaz de ver esse fato. Apesar de recente no zazen, já vivencio um pouco desta experiência.
Os estímulos que ocorreram durante toda minha vida resultaram em pensamentos que, por sua vez, foram interpretados e sentidos de acordo com minhas memórias e referências. E esses sentimentos resultaram em palavras e ações. Percebo que mesmo não conhecendo os princípios do Dharma, já estava consciente que eu fui responsável por “pavimentar meu caminho, construindo assim meu próprio karma”. No entanto, eu ainda acreditava que algum ser superior, com poder sobrenatural iria me salvar. Por mais que eu estivesse ciente do poder dos pensamentos, do enredo que a mente é capaz de criar e aprisionar, eu não conseguia me libertar desta prisão.
Vejo meu caminho espiritual semelhante ao nosso crescimento e desenvolvimento: infância, juventude e maturidade. Enquanto estive na infância espiritual, eu busquei um pai que viesse me salvar, me retirar do lugar onde eu acreditava estar. Anjos da guarda, santos ou divindades todos eram aguardados pela criança espiritual. Passaram-se os anos e o socorro externo, sobrenatural, não veio. A criança chorou, sentiu-se rejeitada e esquecida. Cresci um pouco e passei então para a rebeldia da juventude, raivoso culpando a todos e a própria igreja como os responsáveis pela minha miséria espiritual pois não me atendiam, não me satisfaziam e, por falta de misericórdia, não socorriam a minha dor e sofrimento. Somado a isso, a dor somente aumentava, pois para obter algum alívio, me deixei seduzir pelas paixões.
Após caminhar por vários lugares sem respostas que me completassem e tocassem meu coração, eu me rendi. Cansado e desgastado espiritualmente, eu me abandonei. Encontrei refúgio em alguns movimentos da Igreja, em
grupos de casais, mas ainda estava à procura de uma maneira para cessar essa dor. Encontrei a Sangha, cheguei ao Zazen. Ao aprender a prática do zazen descobri que há, sim, uma maneira de me libertar de toda dor e
sofrimento. Basta sentar-me e existir, ser um com todas as coisas. Sim, enganadoramente simples, como diz o Monge Genshō. É de fato uma experiência difícil mas ao mesmo tempo cheia de esperança.
Deixo aqui a puberdade espiritual para trás. Chego à maturidade entendendo que não há qualquer ser lá fora que irá fazer o que sou responsável por fazer por mim mesmo. Sou eu quem tem o poder e a responsabilidade de construir o
caminho da minha própria vida. Isso me faz sentir livre e me permite entender que posso construir esse caminho para então, seguindo o caminho dos mestres e professores, chegar a vislumbrar a paisagem e beber da água da
fonte.
Com a prática do zazen, minha mente tem se tornado pouco a pouco mais clara. Com o conhecimento do Dharma e o empenho na prática, percebo o poder do pensamento. Agora, posso escolher para onde ir.
Nesse momento, sei que ainda estou distante de vivenciar o Samadhi (se é que algum dia irei). Mas eu o percebo possível. Entendo o paradoxo ao almejar chegar neste “lugar”. O quando me afasto dele ao desejá-lo mais e mais. Ainda assim, eu retorno todos os dias e me assento.
“A raiz da mudança do mundo está nas mentes”. E é por isso que retorno e me assento. Aqui encontrei algo que faz sentido para mim. É como se eu tivesse recuperado o “poder” que “tiraram” de mim quando, ao longo da minha vida,
disseram que eu “não era capaz”. Sinto agora que depende somente de mim. Ainda que o mestre indique a direção, a escolha para onde seguir será minha. Ainda que obediente às ordens do mestre, internamente somente eu posso me
render pois o sofrimento existe somente na minha mente.
Finalmente me emociono quando leio “A marca daqueles que conseguem silenciar suas próprias paixões é compreender as paixões dos outros, pois há dentro de todos os mesmos impulsos e nós os conhecemos e, por sermos humanos, nada do que é humano nos é estranho”. Me emociono, pois, essa é minha busca: me tornar a cada dia mais humano ao me esquecer de mim mesmo. E foi aqui no Zen onde encontrei o lugar para expressar esse impulso eternamente presente em mim.
Texto de Flavio Borém. Praticante na Daissenji. Escola Soto Zen.