Passados anos e anos em meio a um turbilhão de pensamentos que percorriam desde a vida familiar até o alcance da realização profissional, fagulhas cada vez mais explosivas de uma angústia se potencializavam em um coração que se sentia muito perdido no mundo. Estar no meio científico, apesar das inúmeras respostas a que eu chegava, trouxe-me também outros infindáveis questionamentos sobre quase tudo na vida, inclusive sobre aenorme necessidade de saber a nossa utilidade existencial. Via-me cercada de pessoas que compartilhavam de um pensamento totalmente oposto ao meu em relação a isso, e sempre me sentia deslocada. A sensação de não pertencimento às vezes machuca e a busca por encontrar um caminho acaba se tornando um objetivo. Um objetivo que trilhei com lentidão para tentar perceber qual, de fato, seria o meu caminho.
Por quase duas décadas, esses pensamentos questionadores se encontravam no meu dia a dia, e eis que, talvez no mais alto das épocas dos pensamentos angustiantes, eu me deparo com um mundo totalmente diferente do que já havia visto. Levada por uma viagem com fins acadêmicos, que proporcionariam também alguns momentos turísticos, soube da existência de um templo budista próximo à região em que eu estava. Nunca tinha visitado um, e achei a oportunidade maravilhosa de presenciar uma cultura com a qual jamais havia tido contato. Chegando no templo, logo já fico impressionada pela beleza e percorro todos os lugares observando cada monumento. Vejo muitas imagens de buddhas com representações diversas e após estar frente a todas, paro diante de uma vista incrível no
alto daquele morro onde se localizava o templo para tentar entender a relação de tudo o que estava presenciando ali com a única informação que eu tinha na cabeça sobre o budismo: buddha não é um deus. “Como assim as pessoas tinham essa figura central e não acreditavam que ele era um deus? Como ter alguém como referência sem acreditar em seus poderes místicos?” Era o que eu me questionava e não entendia o porquê. Mesmo lendo algumas explicações na internet, ainda não havia ficado claro para mim o que tudo aquilo representava. Voltei para casa com essa pequena chama acesa, com muita curiosidade e vontade de entender mais sobre essa religião sem deus.
Com meia dúzia de cliques leio alguns textos do google e vejo alguns vídeos, com mais alguns cliques encontro publicações de um monge da Daissen em uma rede social, com mais algumas poucas ações estou diante de um universo de conteúdos que vão abrindo minha visão pro que jamais acreditei que existisse. O budismo foi se apresentando a mim pouco a pouco e eu sentia como se eu estivesse entrando em um rio extremamente limpo e
tranquilo. A cada nova palestra sentia que a profundidade do rio aumentava e aquilo não era assustador como quando estamos conhecendo algo novo por não saber onde vai dar, mas uma alegria enorme em perceber que chegaria um momento que eu já não daria mais pé e que simplesmente a correnteza me levaria. Eu, em tantos anos achando que o caminho que eu procurava era em terra firme, percebo finalmente que meu caminho é um mergulho.
Percebi então que existia uma possibilidade diferente da cultura em que eu havia crescido que se conectava com muitos questionamentos de que eu nunca consegui resposta. Tudo aquilo me encheu o peito com alegria, pois era como se eu retornasse para uma casa em que já tivesse morado antes, que aqueles ensinamentos sempre tivessem feito parte de mim e eu não encontrasse um lugar em que se manifestasse tão explicitamente. Aquilo começou a fazer parte do meu cotidiano, aprendia a meditar, a colocar minha mente em estado presente, inseria um ensinamento ou outro na convivência com meus familiares…
Então aos poucos eu percebia que aquilo iria se preencher em todas as áreas da minha vida. Logo eu estava compreendendo mais meus alunos no local onde trabalhava na época, compreendendo meus companheiros de trabalho e amigos, acrescentava gotas do que aprendia na preparação das minhas aulas e em vários quesitos da minha vida acadêmica. Mas em um ponto ainda sentia que faltava algo. Olhava para o meu projeto de mestrado e
não conseguia ver uma real importância naquilo que estava fazendo. Me parecia tudo muito industrial, duro, com objetivo meramente financeiro, e isso acabou se tornando uma questão por algum tempo. Ver um vazio no que se faz te deixa muito inseguro nos passos a seguir, porque aquilo acaba se tornando sem sentido.
Comecei a percorrer outros caminhos da universidade tentando encontrar mais valor ao meu projeto. Assistia a mais palestras do meu departamento, ouvia com mais cuidado os professores e pesquisadores nas reuniões de pesquisa, me inteirava sobre as ações que alunos de exatas faziam em seus projetos. Foi uma busca que se tornou mais longa do que eu gostaria, mas ao mesmo tempo com um gostinho muito agradável de descobertas e percepções sobre coisas que eu via com um olhar bastante rígido. Fui então percebendo muita beleza naquele mundo de mentes “de exatas”. Via muitos alunos com aquele brilho nos olhos de novas descobertas, a preocupação dos professores em produzir pesquisas da mais alta qualidade técnica para que fossem oferecidos às pessoas externas à universidade, a excelência ética de algumas empresas ligadas aos projetos de pesquisa que interconectavam tudo etc. O meu prédio de engenharia tomava um outro tom, e o laboratório em que eu ficava ganhava outra dimensão em todas as suas minúcias. Comecei a voltar com mais alegria para o computador e enxergar a beleza também naquilo que fazia.
Um enorme volume de números e equações que viravam quase que magicamente uma imagem por meio das minhas simulações. Fiquei feliz pelas mentes que em algum momento desenvolveram aquelas ferramentas tão complexas que eu usava e achava fantástico como mesmo depois de anos e anos os desenvolvedores respondiam com toda a amorosidade as dúvidas dos novos usuários em diversos fóruns. Que vontade de ajudar! Que vontade de fazer melhorias! Que incrível a quantidade de horas de dedicação daquelas pessoas! Mas essa sensação não se restringia apenas ao meu metro quadrado da escrivaninha. Eu via paixão e alegria em colegas de laboratório quando seus códigos davam certo, o quanto eles viam que aquilo poderia ajudar no desenvolvimento tecnológico do nosso país. Vi também com olhar muito mais aguçado a sofisticação com que meu orientado, e também chefe do laboratório e diversos projetos de pesquisa, conduzia tudo. Um olhar extremamente apurado e delicado não só para a condução dos trabalhos, mas para todas as pessoas ligadas àquele mini-universo. Olhar humano e visão de futuro que poucas vezes tive o privilégio de presenciar nesse mundo acadêmico. Muitas vezes o ego ainda é uma constante nesse meio.
Mas felizmente comecei a perceber que muitas coisas estavam interconectadas e aquilo que eu produzia e escrevia tinha seu valor. As idas à sangha também me fizeram perceber o quanto cada membro, em qualquer lugar que eu estivesse, tinha sua importância. Alguém que tocava o sino, que ascendia a vela e o incenso, um ombro ao seu lado pra não te fazer desistir dos 40 minutos sentados… ou então alguém que abria a porta do laboratório, que varria o chão das salas e tornava aquele ambiente limpo e agradável, o TI que desbugava seu computador, o colega do lado que não te deixava pirar quando sua simulação dava errado… absolutamente tudo era essencial. Me fez pensar numa retrospectiva quase infinita de pessoas que fizeram chegar até esse momento do jeitinho que ele é. Pensava na coordenadora da sangha, no nosso mestre, no mestre do nosso mestre, e via uma escala absurda de ações para nos trazer ali sentados virados para a parede buscando uma mente mais esclarecida. E aí quando olho para o meu
mestrado penso nos professores que me foram inspiração na graduação, no meu orientador que conduzia tudo com tanta ética e primor. Penso nas pessoas que motivaram eles, nos mestres e doutores que também os fizeram enxergar esse mundo como possível, e se a gente realmente analisar mais a fundo, cada grãozinho de ação de milhares de pessoas fez a gente chegar onde estamos hoje. Seus pais trabalhando arduamente para te ajudar a estudar e entrar na faculdade, aquele professor que se emocionou com seu empenho em uma atividade e achou que você tinha uma chama científica que deveria ser explorada, aquele amigo que te dava carona todos os dias para que você não precisasse ir embora sozinha tarde da noite, aquela parceira de trabalho que cuidou dos seus afazeres quando
você pediu um dia de folga para poder fazer a prova de ingresso pro mestrado… Quantas e quantas ações a gente pode contar! E, na verdade, a gente não pode. Mas olhar com carinho todos esses passos é a mínima forma de ser grato a todos os nossos contemporâneos e antepassados.
Depois de algum tempo então nessa jornada eu acabei descobrindo que a minha pesquisa, na verdade, não era minha. Não era para mim que eu estava fazendo aquilo. Era para que todas as pessoas pudessem usufruir de algum pensamento cientificamente consolidado e se beneficiassem de alguma maneira (ainda que muitos passos adiante precisassem ser dados) de algo seguro e eficiente. Entendi que tudo foi feito por muitas mãos, e o meu nome naquela dissertação é uma mera formalidade. Sentar diante do computador e ler aqueles inúmeros artigos é apenas algo que precisa ser feito, sem achar que eu tenho uma real importância nisso. É juntar ideias, soluções e conclusões de inúmeros outros pesquisadores que também trouxeram benefícios a outros seres. Tudo o que eu preciso fazer é unir toda essa bagagem de conhecimentos e vivências de maneira ética numa folha de papel. É só isso. É como meu mestre diz: “apenas faça”.
Texto de Jéssica Sales. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.