A Vida é um Sonho Muito Breve

 

Neste bardo da vida, devemos salientar que, apesar de podermos atingir várias décadas em termos cronológicos, temos muito pouco tempo disponível para praticarmos ou realizarmos algo relevante em termos da nossa evolução. No bardo da vida, nossa experiência está atrelada, ancorada a um corpo material cheio de necessidades a serem satisfeitas. Sendo assim, devemos considerar o fato de que o ser humano passa quase metade da sua vida simplesmente dormindo, ou restaurando as forças desse corpo. O filhote humano é muito dependente e frágil, requer cuidados e sacrifícios tão intensos que somente com amor se torna possível. Nosso cérebro e consciência podem levar mais de duas décadas para amadurecer razoavelmente; passa pelas fases de lactente, infância, adolescência e início da vida adulta, período em que é extremamente raro alguém se envolver ou se comprometer com alguma prática realizadora consistente, ou com o incremento da sua consciência e liberação pessoal. Durante a vida adulta, sobretudo na atualidade, o ser humano necessita lutar pela sobrevivência, ocupando-se com algum ofício produtivo, por exemplo. São décadas dedicadas ao trabalho e pagamento de compromissos financeiros. Se tivermos sorte, passaremos uma ou duas décadas lidando com os problemas da idade, da velhice e das doenças, o que poderá também dificultar sobremaneira a nossa prática. Vejamos, esquematicamente, o caso de alguém que viva por cem anos:

 

35 anos dormindo;

20 anos crescendo;

30 anos trabalhando;

15 anos idoso ou doente.

 

Sendo assim, facilmente, o ser humano passa pelo bardo da vida inteiro sem que jamais ocorra a ele a necessidade de efetuar qualquer ação, tomar qualquer atitude que o impulsione pelo caminho de ascensão da íngreme montanha da autoconsciência. Aqui entendemos o motivo de a maior parte da população mundial estar no primeiro nível que descrevemos inicialmente.

Crescendo, amadurecendo, trabalhando, dormindo, e envelhecendo, resta-nos quase nada. Se não tomarmos consciência da necessidade de acordarmos dentro do sonho dos bardos, poderemos permanecer sem jamais evoluirmos ou mesmo “involuirmos” por eras sem-fim. Ainda assim, será preciso dormir um pouco menos, trabalhar um pouco menos, enfim, encontrar tempo para efetuarmos a prática. E isso requer qualidades de resiliência e disciplina que não são tão comuns. Por outro lado, se nos flagrarmos do tão pouco tempo disponível que nos resta para empreendermos algo realmente consciente e lúcido neste bardo, concluiremos que devemos passar a agir estrategicamente. Devemos ocupar nosso tempo de vida incluindo, ao máximo que pudermos, aqueles elementos da prática que possam nos beneficiar espiritualmente.

Pensar sobre o pouco tempo que nos resta e efetivamente desenvolver alguma lucidez no sonhar exige um trabalho árduo, pode nos dar um senso de urgência e de prioridade sobre quais rumos decidiremos seguir nesta vida. Como já afirmaram muitos pensadores, incluindo Pierre Weil, a atual “normose” ou fazer o que todo mundo faz, pode contribuir em termos da busca por satisfação de prazeres, bens e riqueza, mas não contribui para o seu real enlevo e liberação. Lembrando as palavras do Lama Chagdud Rimpochê, aplicar-se totalmente em construir uma casa, enriquecer, satisfazer prazeres ou ficar famoso dentro de um sonho que acabará num piscar de olhos não nos parece ser producente em termos da nossa transcendência.

O grau de consciência da humanidade, em termos proporcionais, parece estar em franca regressão, se levarmos em conta as tantas manifestações espelhadas pelo comportamento da esmagadora maioria. Os objetivos materiais e de satisfação pessoal de prazeres estão em franca alta, um hedonismo coletivo, enquanto objetivos mais abstratos são quase inexistentes.

Refletindo sobre como aproveitar esta preciosa oportunidade de vida, poderíamos usar das experiências deste bardo ligado ao corpo, para tentarmos acordar deste sonho fabricado e projetado pela mente, buscando reconhecer o vasto universo interior operando inconscientemente, o qual é o verdadeiro responsável pelo cenário que contemplamos. Olhar para todas as coisas e fenômenos e reconhecer que estamos divisando algo como uma aparição construída de dentro para fora é prova de autoconsciência em ação. Isto seria olhar as aparências como sendo inseparáveis das sementes kármicas e suas energias sutis originais.

Gostemos ou não, tudo aquilo que nos acontece reflete os desdobramentos, as consequências dos registros e marcas kármicas interiores. Quando algo ruim nos acontece, ao invés de ficarmos com raiva, ódio ou cólera, deveríamos agradecer por estarmos saldando uma ação não virtuosa prévia cuja energia resultou naquela situação. Deveríamos, de fato, agradecer e nos alegrar por estarmos quitando, para sempre, aquela nossa dívida. Quando algo bom nos acontece, deveríamos igualmente agradecer e refazer votos de nos envolvermos ainda mais conscientemente em ações virtuosas que resultem em benefícios aos demais seres e a nós mesmos.

Olhar para todas as experiências da nossa vida, incluindo, sobretudo, as poderosas e enraizadas emoções de apego-desejo, aversão-ódio, inveja-ciúmes, orgulho-soberba, indiferença e etc., como sendo manifestações bruxuleantes da energia das nossas sementes kármicas interiores, armazenadas na base da mente, poderá nos fazer despertar dentro do denso sonho desta vida e percebê-lo com maior clareza e lucidez.

Com o tempo dedicado à prática, despertaremos para a realidade maior que aponta para o fato de não haver, em absoluto, nada realmente sólido, concreto ou indestrutível tanto nas aparências da mente quanto nas suas inacreditáveis sementes, ou, ainda, nos fenômenos que observamos. São energias flutuantes que nós mesmos, através da nossa percepção e pensamentos, imputamos às coisas. São objetos emocionais que estão depositados sutilmente. Eles não têm peso, cor, sabor, odor ou som algum. Eles são como uma maravilhosa mágica gerada e realimentada através da interação da nossa consciência sutil com a experiência corporal do bardo da vida.

No limite, reconheceremos que as aparências são inseparáveis da própria Vacuidade. Sendo inseparáveis, Vacuidade e aparências são a própria Grande Bem-aventurança, pois, as aparências, bem assim como são, estão em perfeita harmonia com o conteúdo interno e, ao mesmo tempo, espelham todas as qualidades puras e “vacuosas” da mente.

 

Texto do livro A Infinita Jornada da Consciência, escrito pelo Dr. Enio Burgos, propõe uma profunda e lúcida reflexão acerca do sentido da vida e da morte segundo a tradição budista.

 

Mais informações sobre o livro estão disponíveis na nossa Coluna Arte e Cultura, clique AQUI.

 

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