Samu

 

Quando iniciantes, ao chegarmos para a prática do zazen na sangha, naturalmente, não fazemos ideia de tudo o que aconteceu antes para que o zafu, o incenso, a vela e os instrumentos estivessem perfeitamente prontos e alinhados para que a prática aconteça. Podemos estender isso para outras atividades, quando vamos a um restaurante, por exemplo, sentamos, escolhemos o prato de nossa preferência e não pensamos que o chef e sua equipe chegaram lá horas antes para preparar o “mise en place” de modo que todos os clientes possam desfrutar de sua refeição, garantido assim que todos sejam plenamente atendidos e saiam satisfeitos e possam voltar.

Costumo dizer que o zazen começa antes do zazen; chegamos cedo ao ZenDô (local de prática), limpamos o butsudan (Altar de Buda), trocamos a água ou chá, limpamos o incensário, organizamos as flores e a vela. Organizamos os zafus, posicionamos os instrumentos que serão usados (Mopan, Sinos, Taiko etc.) para que tudo esteja perfeitamente pronto para receber o praticante e que não tenha nenhum obstáculo que venha a impedir ou atrapalhar sua prática no zazen. O nome dado a essa função de organizar o ZenDô para a prática é “jikiDô”, a ele cabe a responsabilidade de deixar o ZenDô pronto para a prática.

Ao término da pratica do zazen, todos são convidados à prática do samu, então temos que guardar os zafus e instrumentos, lavar a louça, limpar os banheiros e deixar tudo na mais perfeita ordem.

O samu é uma prática que se estende para além do zafu é uma das oportunidades de experimentar e de vivenciar nossa prática. Mas a questão primordial é: com que mente eu pratico o samu?

Há um comentário de um texto Zen que diz:

No decorrer de um sesshin em um mosteiro, foi dada a um monge noviço a tarefa, no samu, de varrer as folhas caídas no pátio. Após terminar a varrição, olhou e viu o mestre, correu até ele e disse:

– Veja mestre, limpei tudo, ficou bom, não?

“O mestre dirigiu-se até uma das árvores, a chacoalhou fortemente de modo que mais folhas caíram no chão, sujando novamente o pátio, antes varrido pelo Noviço.

O que nosso mestre nos diz quando sentamos em zazen? “Não se perca no passado, não viaje para o futuro, fique aqui no momento presente” No samu é da mesma forma, mantemos a atenção plena naquilo que estamos executando, apenas fazer o que precisa ser feito, do modo correto e sem distrações. E não o fazemos esperando um elogio de alguém após o termino da tarefa, pelo contrario, certamente seremos corrigidos e na próxima vez procuramos fazer corretamente.

O samu nos dá a oportunidade de experimentar muitos insights, identificar nossos apegos e aversões. Há seis anos participei do meu primeiro sesshin, após a refeição do meio do dia, a abade estava distribuindo as tarefas do samu, a última tarefa a ser feita era ajudar outro praticante na limpeza dos jardins. Ela então perguntou quem poderia fazê-lo, eu era muito novo na sangha e vi que ninguém se candidatou então me ofereci. As tarefas, vamos dizer “mais nobres” já haviam sido distribuídas e entre os que estavam sem uma função somente eu me ofereci. Meu companheiro de tarefa era experiente na jardinagem e minha função então era auxiliá-lo, assim sendo após ele me passar o que queria e como fosse feito, passei a executar em silêncio.

Comecei a tirar os matinhos e as ervas daninhas entre as flores, recolher as folhas secas do chão e ensacá-las, de repente me deparei com as fezes de um dos cachorrinhos do templo, eram 4, então me veio a reação de repulsa e um pouco de nojo. Não tinha, naquele momento, uma pá adequada para recolher e não queria pegar com a mão, apesar de ser possível. Deparei-me então com a aquela situação de aversão e nojo, mas tinha que resolver e sabia que certamente encontraria mais deles por ali. Instalou-se um impasse, havia ainda muito trabalho a ser feito e o samu, num sesshin, tem o tempo de inicio e de fim e eu (Ego) não queria que meu companheiro de tarefa me percebesse ali, parado. Então veio aquela vozinha, velha conhecida, a nossa mente e disse: “Se você não consegue lidar um cocô de cachorro como pode querer lidar com sua raiva, angústias e tantas outras coisas, hein!?”. Aquilo foi libertador. Peguei uma das muitas folhas que estavam no chão a envolver o dejeto e coloquei no saco de lixo.

Ali pude ver o quanto o Zen destrói e nos liberta ao mesmo tempo; disse a mim mesmo: “Encontrei a prática espiritual que há anos procurava, o Caminho da libertação e há muito por fazer…”

Ainda que não estejamos num sesshin praticamos no nosso trabalho, em casa com nossos familiares, no shopping, onde quer que estejamos podemos praticar e obter muitos insights. Conheço pessoas que após lavarem a louça não conseguem limpar os restinhos de comida que ficaram retidos no ralo da pia, é a mesma comida que acabou de comer, só está molhada agora.

Gasshô

 

Fernando NanDô, coordenador da sangha Daissen São Paulo. Escola Soto Zen.

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