A Mente em Um Trem

 

Entre no trem e sente-se próximo à janela. Observe o correr da paisagem trazendo cenas e cenários a cada novo instante. As montanhas ao fundo movem-se devagar, dando a impressão de que estarão sob suas vistas por muito, muito tempo; em compensação, as casinhas próximas surgem e desaparecem em um micro instante, uma após a outra.

Passamos a viagem inteira observando a paisagem pela janela do trem. Olhamos as montanhas, as casas, rios e tudo mais o que surgir neste quadro de vidro. Podemos reconhecer algumas paisagens e até mesmo algumas pessoas que possam surgir durante as paradas nas estações. Logo que o trem parte, voltamos a nos impressionar ou decepcionar com tudo o que se apresenta aos nossos olhos durante o trajeto, revivendo memórias de viagens anteriores e supondo possíveis mudanças nos cenários que ainda estão por vir.

Embora passemos a maior parte do tempo em uma interação quase automática com a paisagem lá fora, uma coisa é invariável para qualquer um que também esteja viajando neste trem: não importa quão forte seja o nosso desejo, o surgir e o desaparecer da paisagem jamais será subjugado às nossas vontades particulares. A única coisa sob a qual este surgir e desaparecer está subjugado é ao movimento do trem.

Em outras palavras, não podemos escolher o que surge no enquadro da janela. Não temos nenhum domínio da ordem e do momento deste aparecer. Esse devir tem um ritmo próprio, com suas pausas e acelerações. Uma paisagem surge atrás da outra sem interrupções.

Há uma condição: o trem se movimenta. E por haver uma condição, também há uma consequência: a paisagem se movimenta. Quando o trem para, a paisagem também para de fluir. Não importa quantos pensamentos, sensações e ideias que a paisagem possa nos fornecer, a única paisagem que há é aquela que está diante dos nossos olhos. Nenhuma das manifestações que possam aparecer em nossa mente influenciará no cenário, além disso, não temos a mínima capacidade de controlá-lo.

A realidade se movimenta sobre este corpo, assim como este corpo se movimenta com a realidade. Nossa visão, olfato, audição, paladar, tato e consciência estão em contato direto com tudo o que se manifesta neste momento, aqui e agora. Assim como tudo o que há ao olhar pela janela é a paisagem que se apresenta naquele instante, toda a existência também é a única coisa tocando a realidade que se manifesta no presente de maneira completa.

Portanto, onde está aquele que olha? Onde está aquele que ouve? Abrir os olhos para esta verdade é perceber que apenas há o olhar, o ouvir, o degustar, o sentir, o cheirar e o perceber. Sem controlar e sem ser controlado. Sem adicionar e sem reduzir. Sem ir e sem vir.

Ao surgir um som, não há discriminação no ouvido. Ao tocar uma árvore, não há discriminação no tato. Só há discriminação quando a consciência resgata a memória e junto disso cria um futuro e um passado. Quando a paisagem no trem nos parece bonita, feia, rápida ou lenta, a consciência discriminatória abre mão do fenômeno que se manifesta por completo em nosso corpo, para substituí-lo por uma criação conveniente à nossa ideia de identidade.

A verdade é que: independente das impressões que projetamos sobre a paisagem (todas criadas pela consciência de identidade), o cenário diante dos nossos olhos se transforma e se renova a todo instante. No entanto, apesar da oportunidade que todas as existências têm em tocar a realidade por completo, tudo o que fazemos é ignorá-la e substituí-la por aquilo que a identidade projeta em base dos nossos gostos e opiniões.

Nenhuma paisagem retorna. Nenhuma paisagem surge mais rápido do que deveria. Não importa o quanto desejarmos e projetarmos da nossa identidade sobre a realidade manifesta, nada do que há aqui e agora será transformado. Olhar a paisagem como ela se apresenta neste instante é estar além das elucubrações da consciência discriminatória; completo e além de qualquer conceito e dualidade. A paisagem deste instante é tudo o que há neste instante, sem complementos e subtrações. É tudo o que temos. Levantar e olhar pela outra janela é o nosso modo de interagir com isto tudo que se apresenta sobre toda esta existência.

 

Texto de Giuliano Joken. Monge Zen Budista residente no Centro de Pesquisas e Estudos Budistas da Soto Shu – Japão.

 

 

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