A Originação Dependente: Sem Alma

 

A Originação é uma construção filosófica budista, muito diferente das nossas concepções tradicionais ocidentais sobre a existência das coisas. O primeiro assunto que se deve entender é a questão fundamental de que o Budismo é um rompimento com certos conceitos anteriores do hinduísmo. O hinduísmo tinha o conceito da existência de deuses. De certa forma, era um deus criador, já o mundo era decorrência da própria respiração de Brahma.

O outro conceito fundamental profundamente impregnado em nossa concepção de mundo é que existe algo dentro de nós independente do corpo. Em sânscrito, isso é chamado de atman; é tecnicamente o que Platão chamou de alma, que o cristianismo adotou firmemente contrapondo-se ao judaísmo, que não o tem, e que praticamente todas as religiões adotaram. Tal conceito está tão entranhado que, por vezes, livros escritos por pessoas cultas, de forma simpática, atribuem ao Budismo uma crença qualquer sobre alma ou reencarnação. O que não é uma crença budista.

O ensinamento básico de Buda é anatman.  O “a” significa negação, como em português (o sânscrito é parente do Português, é uma língua descendente do indo-europeu). Anatman significa sem alma, sem atman. O ensinamento budista é que não existe dentro do homem, nem de nenhum ser, uma partícula permanente, eterna, indivisível, que é ele mesmo, que transmigre de corpo para corpo, que reencarne ou qualquer coisa que o valha. O ensinamento de Buda é que o karma é o que continua, ou seja, uma onda de energia no universo que nos manifesta, tem uma certa coesão e, portanto, quando morremos, continua e se manifesta em outro ser que diz a si: “eu sou”, e tem noção de uma identidade

 

Interdependência e Interconexão

O que é a Originação Interdependente? A Originação Interdependente significa que uma coisa sempre é porque outra é, depende de outra, que depende de outra, que depende de outra, e não achamos nada que não esteja dentro desse círculo de interdependência e interconexão. No fundo, esta é a declaração de que as coisas não existem por si mesmas, e não são elas algo especial em si. Isso contraria a nossa percepção normal.

O que acontece com a nossa percepção normal? Nós sentamos, abrimos os olhos, vemos e ouvimos um mundo externo, degustamos esse mundo, sentimos pelo tato, estamos presos num corpo que parece separado de todas as outras coisas. O que Buda tenta demonstrar é que isso é uma manifestação extemporânea, um fenômeno dentro do universo porque, na verdade, não há nenhuma partícula de seu corpo que não seja dependente do próprio universo, que não esteja profundamente preso a ele.

Todos os átomos do corpo estão ligados a este universo, são muito antigos, têm bilhões de anos. A maioria dos átomos de nossos corpos são anteriores à existência do nosso sol e do nosso sistema planetário. Estamos materialmente inseridos no universo, e todos nós sabemos. Também sabemos que nem uma parte do corpo, do ponto de vista material, desaparece daqui, mas, simplesmente, dissolve-se neste mesmo universo, neste mesmo mundo. O ferro, o cálcio, o carbono, o hidrogênio e o oxigênio do corpo e tudo mais, simplesmente se reintegram a esse mundo.

 

A Construção do Eu

Se consideramos que a noção do eu é construída por uma operação mental que ocorre dentro desse corpo, então essa operação mental produz uma ilusão de consciência própria. Essa ilusão de consciência própria é o que nós chamamos de “eu”. Nós dizemos: “eu sou”. Nós temos nome, temos forma e pensamos: “eu existo e eu sou um ser separado”. O que Buda declara é que essa noção leva em si mesma um engano provocado por essas sensações. Tenho percepções, formações mentais, e daí surge a consciência. Não passam de agregados e funcionamentos de um corpo. Quando esse corpo cessa, essa noção de eu cessa.

Meu telefone celular também é constituído de matérias complexas:  metais, plásticos, uma porção de circuitos integrados. Mas, se essas matérias estiverem desorganizadas, não são mais um celular, ele desaparece. Nos textos antigos, no Milindapada, Nagasena faz essa comparação com um carro de bois: se eu tirar as rodas, os pedaços e desconstruir o carro, onde ele está? O carro não está mais ali. Ele só é carro quando suas partes estão juntas daquela forma organizada. Então, se eu tenho plano de fazer um carro e junto o eixo de determinado jeito, as rodas com exatidão, com a caçamba, etc., eu tenho um carro.

O carro é uma construção, uma organização dentro do mundo, e, é por si mesma temporária. E essa construção só é carro para nós que a olhamos como carro. Isso faz surgir outro conceito:  objetos surgem coemergentemente ao observador. Para que exista um carro, é necessário que exista um homem que olhe para esse carro e diga: “carro”. Senão, aquela organização não é evidentemente um carro; ela só é um carro para alguém. Para uma colônia de cupins não passa de um amontoado de madeira digerível.  E, portanto, um monte de comida não é um carro. Um carro só o é para esse observador que o interpreta como um carro, senão não é carro.

Nós só somos seres com o “eu” porque somos capazes de perceber esta identidade através da nossa operação mental. Então, nós temos que fazer uma autorreferência, que começa com a nossa mãe que diz: “você é fulano”.  Você tem um nome, e esse nome começa a agregar conceitos de ser.

 

A Desconstrução do Eu

A pergunta que origina essa palestra é se existe um observador dentro de nós que testemunha a nossa existência. Não, não existe um observador dentro de você que testemunha a sua existência. Você pensa, e por isso tem a sensação de existir como um ser separado. Perguntaríamos o que seria então a lucidez? Porque toda a construção que nós conhecemos é a de uma identidade, e queremos que essa identidade permaneça para sempre. Somos agarrados a essa identidade. Por isso eu quero ter uma alma que sobreviva à minha morte, que continue para sempre.

O Budismo chega com uma proposta filosófica que destrói toda essa construção: não existe esse ser imutável dentro de vocês.  O que existe é um fluxo contínuo de energia que gera identidades. Um fluxo energético que tem em si uma coesão, e por isso nós podemos dizer que uma vida é continuação de outra. Mas, não existe algo que vocês possam dizer “isto sou eu”. Todo “eu” é construído por uma concepção e, grande parte, por meio de concepções que estão nossa volta, que nos designam. Essa concepção está fundamentada num edifício de memória que suporta a nossa identidade, você tem uma certa solidez da noção de seu eu porque você tem uma memória,

Se perde a memória, a pessoa está completamente perdida. E, é isso que acontece na amnésia. Então, se perguntarmos a alguém com amnésia: “quem é você? ”. “Não sei”. “Qual é seu nome, do seu pai, da sua mãe, de onde você veio”? “Eu não sei, não sei nada”. Então, não existe identidade alguma dentro de você, além dessa que é suportada pela memória. Isso não é muito fácil de encarar, pois, o que o eu quer? O eu quer, acima de tudo, sobreviver.

 

O que é a Iluminação?

Então, o que é a lucidez da iluminação? O que é trazer luz desde a iluminação? Não é o niilismo, em última análise, de dizer que você não existe. Ao contrário, é dizer: “Sim, você existe! ” Mas, você é um fluxo, um movimento dentro de um universo muito amplo, e esse fluxo em movimento não é facilmente destruído – continua por muito tempo. Todos os fluxos são interdependentes. Nós somos dependentes das plantas, da atmosfera, da existência da Terra e de todas as outras coisas que nos rodeiam. Sem essas coisas, nós não existimos nem nada que nos rodeia. Não existe nada que não seja dependente de outra coisa. A casa, o armário, os livros, tudo o que pegarmos é dependente de uma quantidade enorme de amarrações.

Quando eu pego qualquer uma dessas amarrações, ela própria se desdobra exponencialmente em outra quantidade enorme de amarrações e não conseguimos achar fim nem começo. Conforme o conto do mestre que está morrendo, um monge chega ao lado e pergunta: “posso ajudá-lo? ”, e o mestre responde: “se não há nenhum lugar para ir, como você pode me ajudar? ”. Ele tinha aprendido: não há lugar nenhum para ir. Não vamos para nenhum lugar. Não existe um ir. Não é esse o ensinamento do Budismo, não existe um lugar para ir. Eu, agora, morro. Não tem lugar para ir. O mestre responde: “se você acha que vem ou vai, você ainda não entendeu nada”.

 

Conclusão

A resposta básica do Budismo é: você não tem como desaparecer, ou seja, ir embora, porque, na verdade, você não é nascido. Você sempre esteve aqui. E este momento, aqui e agora, este momento de consciência que você tem, dessa construção de consciência de seu “eu”, é um fenômeno da sua onda kármica que manifestou uma identidade agora. Você tem essa identidade, esse corpo, e confunde isso com uma realidade, então tenta ser eterno. É para isso que tende o eternalismo. E, dizer que não, que nada existe, seria o niilismo: não vim de lugar nenhum, eu não sou ninguém, ou eu não existo, etc.

Então, entre esses dois extremos transitam a Originação Dependente. Todos somos interdependentes, interconectados, não temos para onde ir nem viemos de algum lugar. Somos manifestações kármicas. Porém, nós temos uma capacidade de interferir nessa onda kármica. E, se temos essa capacidade, podemos modificar os acontecimentos futuros, ou seja, as próximas identidades. Portanto, vocês são herdeiros de seu karma e são continuação antiga, muito velha, de acontecimentos anteriores que foram feitos. Nós fomos feitos por nós mesmos, só que não éramos nós. A linguagem atrapalha.

 

Transcrição da palestra ministrada pelo Monge Meihô Genshô Sensei

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