A Visão da Impermanência

 

A percepção da impermanência é um dos fatores mais importantes, mais úteis para quem quer caminhar o caminho do Buda. Literalmente a percepção da impermanência é estar ciente, percebendo a impermanência o tempo todo. Porque a mente egoica, a mente ignorante, que sempre tenta criar a ilusão de estabilidade. É um hábito ignorante, sempre tentar criar a ilusão de estabilidade, porque ela quer encaixar a experiência em rótulos. Quer encaixar a experiência em conceitos. Então a pessoa que tem visão da percepção da impermanência sempre vai desfazendo essas ilusões, sempre que a mente cria a ideia de que isso é permanente, isso estável, você vai lá e destrói aquela ideia: “Não, isso aqui não é permanente, isso aqui não é estável, isso aqui não é confiável. Isso aqui agora está assim, mas amanhã, a qualquer momento pode estar diferente”. Mesmo uma edificação, “bom, essa edificação aqui vai durar vinte anos”. Não se sabe isso, pode ter um incêndio, um desmoronamento, um deslanche de terra, chuva, terremoto, um milhão de coisas diferentes podem acontecer.

Você está sempre ciente. Quando você está ciente dessa forma, você não sente tanto pesar quando as coisas mudam, mesmo que elas mudem de forma desfavorável. Você também não sente tanto deleite pelas coisas que estão presentes. A sua mente alcança um ponto mais mediano, ela não fica nem muito triste nem muito feliz. As pessoas falam: “Mas ficar feliz é bom”. Não se é uma felicidade baseada em ignorância, essa “muita felicidade” é apenas o primeiro estágio do “muito sofrimento”. Da mesma forma que sua mente criou muita felicidade baseada em ignorância, é só questão de tempo para começar a criar muito sofrimento também baseado em ignorância. A palavra-chave nesse sistema não é felicidade ou sofrimento, mas sim ignorância. A ignorância gera ambos. A ignorância gera felicidade e gera sofrimento. Na verdade, se você olhar de certo ponto, você pode dizer que ela gera felicidade só para poder gerar sofrimento em seguida. Sem experiência de felicidade, o sofrimento não tem significado.

Talvez a pessoa que experiencia felicidade, mas uma felicidade que vem da ignorância, na verdade ela apenas está criando a área onde no futuro vai se manifestar o sofrimento. Sem essa felicidade, não tem como haver sofrimento no futuro. Então a pessoa que tem visão disso começa aos poucos a abandonar esse tipo de felicidade, esse tipo de sofrimento baseado ignorância. E começa a experienciar um tipo de bem-estar que está além disso, que está fora desse circuito. A mente consegue enxergar dentro de si algo mais estável, mesmo que não seja perfeitamente estável, consegue enxergar que é menos volátil que o mundo exterior. Então naquilo você encontra um bem-estar, naquilo você encontra não só o bem-estar, uma sensação agradável, uma sensação de paz, tranquilidade. Mas naquilo também alcança o bem-estar da sabedoria. Ser uma pessoa sábia é prazeroso. Se você é uma pessoa sábia, os assuntos se resolvem, os problemas que surgem não são tão sérios, você consegue resolvê-los. Você sabe se pôr perante as situações, você sabe resolver problemas, você sabe evitar problemas. O medo e ansiedade da vida desaparecem, diminuiem bastante, e a sensação de que tudo é difícil, tudo é misterioso também vai diminuindo. Na verdade, é tudo muito fácil, é tudo muito simples. Se você é uma pessoa sábia, tudo lhe parece muito fácil e simples, não tem nada que parece muito complicado ou misterioso.

Você substitui, você começa a enxergar um bem-estar que está fora desse ciclo de felicidade e sofrimento. Você começa a enxergar um bem-estar que está fora desse ciclo, é um bem-estar que não só é agradável, mas também ele é útil, ele serve de fundação para prática do Dharma. Porque mesmo esse nível de felicidade e bem-estar já é um aspecto do Dharma, mas não é o aspecto último do Dharma, é o aspecto inicial. Vamos dizer que é o aspecto intermediário, mas ele serve de fundação para a prática mais elevada. E que realmente vai além e você quebra o ciclo de nascimento e morte. Então conforme você vai desenvolvendo isso, você enxerga, você consegue perceber algo mais estável dentro de si. Conforme você percebe que é mais estável dentro de si, você começa a perceber como é ilusório, como é fraco o mundo ao redor.

Então, as coisas que as pessoas esquentam muito a cabeça a respeito: “Ah meu Deus, aconteceu isso”, uma pessoa estava me falando a respeito do pessoal que acredita que a Terra é plana. “Ah, mas não pode isso, o que vai acontecer, as pessoas acham que a Terra é plana, a sociedade vai entrar em colapso”. Eu falei: “Calma, não vai para lugar nenhum, pode ficar sossegado, porque se a pessoa tem uma percepção errônea da realidade a vida dela não vai funcionar direito”. Um exemplo fácil: ela jamais ia conseguir trabalhar na indústria aérea. Não vai dar certo, porque se você não entende que a Terra é redonda, você não vai conseguir fazer o avião sair e chegar no lugar certo. Ou então você vai fazer uma curva enorme porque você não entende que é só você ir reto que você chega mais rápido. A pessoa vai dar a volta lá pela África em vez de ir pelo Oceano Pacífico. Então, há várias formas de negócio que a pessoa não vai conseguir trabalhar, como uma forma de tecnologia que envolve satélite, que envolve telecomunicação, que envolve fuso horário.

Também a própria verdade tem uma pressão, a verdade exerce uma pressão. Esse pessoal fica desperdiçando o tempo guerreando contra a verdade e aqueles que entendem a verdade saem na frente. Enquanto eles estão brigando para suprimir a verdade nós seguimos em frente, vivendo nossa vida, fazendo as coisas de maneira correta, colhendo os resultados.

As pessoas têm o hábito de enxergar um problema e querer resolver um problema, ninguém para pensar que na verdade o problema é um ponto de vista, as coisas só são um problema se você disser que sim. Se você não criar problema, as coisas apenas são como são. E elas seguem fluindo, elas seguem mudando, elas seguem interagindo uma com a outra. Você enxerga essa impermanência e você enxerga a permanência, a estabilidade da mente saudável. Aí você vê a mente saudável interagindo com a impermanência do mundo exterior e como ela é capaz, como ela é hábil, como ela é tranquila e tem uma qualidade que vai além, uma qualidade que está acima. Vira um refúgio, vira um verdadeiro refúgio para sua mente. Ao invés de sua mente buscar refúgio em filmes, distrações, histórias, sons, sabores, ela começa mais e mais a buscar refúgio nisso. Enxerga onde isso se encaixa em todo esse sistema, em todas essas diferentes variáveis, diferentes forças atuando. Onde isso se encaixa, e como isso é mais forte que o fluxo da mudança exterior, o Samsara.

Na verdade, quando você cria um ponto firme como esse é como você botar um mastro, um pilar dentro de um rio, o rio se curva ao redor do pilar. O pilar fica firme e o rio se adapta, então às vezes você começa a perceber isso na sua vida. Você acha: “Ah, eu tenho que fazer assim para agradar as pessoas, eu tenho que fazer assim para as pessoas me aceitarem”. Na verdade, quando você tem uma fundação firme dentro de si as pessoas se adaptam à você. Elas que fazem o esforço para te agradar, elas fazem esforço para se adaptar à você. Se elas sentirem que você tem algo firme e verdadeiro, algo que é bom, elas estão dispostas a aceitar você, elas estão dispostas a acomodar você na vida delas, acomodar você na sociedade. As pessoas percebem que você tem algo diferente. Elas sentem que tem algo especial ali, elas se sentem atraídas, elas sentem que você não está falando por raiva, não está falando por ignorância, elas sentem que aquilo que você vai dizer tem alguma coisa, tem alguma sabedoria por trás. Elas voluntariamente ouvem, você não precisa fazer um esforço, você não precisa gritar. Tem uma certa força por trás de tudo isso, esse tipo de coisa, esse tipo de qualidade mental exerce uma força no ambiente, e as pessoas respeitam isso. Conforme você vai praticando, você começa a enxergar essas coisas. A sua fé na prática, a sua fé nos resultados da prática do Dharma, vai ficando cada vez mais firme. Vai ganhando impulso, vai ficando cada vez mais fácil praticar. Quanto mais fácil praticar, mais firme a mente fica. Quanto mais firme a mente fica, mais qualidade ela ganha, mas clareza ela ganha.

Você começa a ver essa dicotomia entre estabilidade e impermanência. O mundo lá fora é impermanente. A única coisa relativamente estável que eu consigo enxergar neste mundo é a mente pacífica, é a mente sábia. Então você começa a mais a mais, como o Buda dizia, estando eu sujeito à morte, não é apropriado para mim continuar buscando aquilo que leva à morte. Estando o mundo, inclusive a mim mesmo sujeito à impermanência, o correto é eu buscar aquilo que é permanente. Se o mundo é regrado pela impermanência, então eu vou buscar aquilo que é permanente. Se o mundo é regrado pela morte, então eu vou buscar o não morte, Amata Dhamma, o não morte, o Dhamma que está além da morte. Que não está sujeito à morte. Se o mundo é regrado pelo sofrimento, pela ignorância, então eu vou buscar aquilo que está além do sofrimento, que é uma parte da escuridão do fluxo, desse ciclo de renascimento e morte, guiado pela ignorância. Ou então, como já dizíamos, algo que está além do certo e errado, buscar o que está além do bem e do mal, além do nascimento e morte, além do sofrimento e da felicidade. Mas é uma coisa gradual, as pessoas em geral, como é algo muito vago, é difícil você tentar convencer alguém a buscar isso falando: “Olha venha busque isso, isso é muito bacana, isso é muito legal”.

A estratégia que o Buda tinha era apontar para o sofrimento, veja o sofrimento, enxergue o sofrimento, enxergue a impermanência, enxerque como isso é vazio, como toda essa experiência de eu, de coisas baseadas em eu, meu ponto de vista, minha sensação, minha ideia, meu pensamento, o que eu quero, o que eu odeio, ver como isso tudo é vazio, e falso e fabricado. Quando a pessoa começa a ter visão disso ela sente um impulso em buscar aquilo que está além, aquilo que atravessa essa correnteza. Ela não vai baseada em fantasia nem fé, acreditando que tem algo melhor. Ela vai baseada em visão, ela enxerga a impermanência, ela enxerga o sofrimento, ela enxerga o não eu, o vazio do não eu. Tendo essa visão, tendo sabedoria ela busca aquilo que está além, aquilo que transcende esse tipo de fenômeno. Desde o começo já começa munida de sabedoria. Então o caminho inteiro dela vai ser guiado por sabedoria. Eu gosto mais dessa estratégia, que é como Buda de fato ensinava, não é muito colorido, não é muito divertido, não tem barulho e não tem música, nem sons mais agradáveis, não tem histórias interessantes. Mas tem sabedoria, tem visão clara. É algo que você não joga fora nunca, você começa bem desde o começo, você já acerta desde o começo, você só constrói em cima daquilo que você já começou, você continua construindo, você começa a ter a visão da estabilidade mental, você começa a ter a experiência de uma felicidade que não faz parte dos órgãos dos sentidos. Uma felicidade que não é uma felicidade mundana. Você começa a experienciar ainda mais, não só a experiência de enxergar isso, mas a experienciar como isso é agradável. Você começa a enxergar o correlacionamento entre esse fenômeno e o mundo. É como quando você começa a entender essa relação entre corpo e mente.

No começo tudo parece uma coisa só: a mente é o corpo, o corpo é a mente, são tudo a mesma coisa. O fato de a mente ser experienciada no mesmo nível do corpo é porque a mente se degenerou. Se a mente está normal ela está acima, o corpo fica abaixo. Você vê o que vale a pena. O corpo é secundário, a mente é mais importante. Quando você começa a ter esse tipo de experiência, esse tipo de visão, fica bem mais fácil, a coisa começa a guiar no embalo. Mas hoje em dia as pessoas não percebem isso nem em coisas que deveriam ser óbvias. Quanto mais você esperar que as pessoas percebam isso em relação à mente e ao corpo, em relação ao Dharma e ao mundo, como é que esperamos que as pessoas possam reconhecer esse fenômeno, a diferença entre o Dharma e o Samsara? Aí que está a ignorância, a falta de visão das pessoas. Mas é um dilema que tem solução. Aquele que não tem muita sabedoria, mas tem um pouquinho só, pode não ter muita para matar a charada sozinho, mas tem o suficiente para quando ouve um ensinamento de Buda ou ensinamento das pessoas sábias, reconhecer que ali tem algo interessante. Então ali começa uma faísca. A pessoa começa pouco a pouco cultivar aquilo, a expandir e aquilo vai ganhando momento, vai ganhando embalo até chegar nesses níveis que estou falando. Se não houvesse o Buda, se o ensinamento do Buda não estivesse presente, então as pessoas estariam por conta própria, cada um por si, é como você começar uma fogueira sem uma chama. Nesse sentido o ensinamento do acender.

É o exemplo dos Śrāvaka, dos discípulos do Buda, que nos Sutras, só uma palavra, um gesto, a pessoa já percebe, já consegue acender o fogo, a chama do Dharma no coração da pessoa. Porque a pessoa estava ali já pronta, com o material pronto. Se você souber fazer de maneira correta e tiver paciência para não ficar mexendo no fogo, deixar o fogo crescer, deixar a chama se espalhar aos poucos, quando for a hora certa você joga mais combustível em cima, joga mais galho em cima. Você não joga o galho quando o fogo está fraco, porque aí ele apaga. Tendo paciência, tendo habilidade de lidar com aquilo, você consegue. Mesmo começando com algo que parece tão ínfimo como um fósforo, no final vira uma fogueira que queima completamente. Queima completamente o Samsara, leva a pessoa a alcançar a libertação. Um desses recursos é a percepção da impermanência, então é sempre bom treinar a mente em perceber a impermanência. Sempre que você olha algo como paisagem bonita, qual é a impermanência dessa paisagem? Aí você vê um prédio bonito, qual é a impermanência desse prédio? Como é que é a impermanência desse prédio, como ´que isso se expressa? Como é que vai estar esse prédio daqui a cem anos? Como é que vai estar essa paisagem daqui a cem anos, como é que vai estar essa paisagem daqui a quinhentos anos, como e que vai estar essa paisagem daqui a um milhão de anos? Você treina.

Você não precisa enxergar só a impermanência no futuro, você pode enxergar a impermanência no passado. Então as coisas não eram assim antes, elas vieram a ser assim agora. Se elas vieram a ser assim agora é porque elas são capazes de mudança, se elas são capazes de mudança me deem uma boa razão pela qual elas não continuariam a mudança? Qual a impermanência dessa pessoa, qual é a impermanência desse edifício, qual é a impermanência dessa sociedade? Qual é a impermanência dessa opinião? Essa opinião veio a ser. Onde que está a impermanência dessa opinião? Onde está impermanência dessa moda, desse ponto de vista? Então você treina a mente a perceber a impermanência e isso vai alimentando a sua visão do Dharma, vai alimentando seu desencanto pelo mundo da impermanência e vai aumentando seu apreço por aquilo que é mais estável, firme e sábio.

 

Trecho da palestra de Ajahn Mudito. Monge da Tradição da Floresta. Budismo Theravada. Abade do Mosteiro Budista Sudhavāri, em São Lourenço, Brasil.

 

Transcrição realizada por Estela Ikezire. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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