Anitya: Impermanência

 

A Primeira Marca da Existência

 

A impermanência é a verdade da temporalidade cíclica, que atravessa todos os seres e determina a efemeridade de todos os fenômenos e manifestações.  Segundo o Budismo é o ensinamento essencial para a compreensão do universo e de nossa existência.  Significa que, objetos-matéria ou imagens-pensamento, estão submetidos ao tempo na sua contínua e constante mutação. Significa ainda, que todas as coisas possuem uma existência determinada por causas e condições, sua aparição por coemergência e sua cessação, por ausência de substancialidade.  A impermanência, em conjunto com o sofrimento (dukkha) e o não-si (anatta) constitui a tríplice caracterização do existente, ensinamentos que podemos encontrar ao longo da literatura dos Nikayas. Esses ensinamentos constituem a classe de ensinamentos budistas conhecidos como as “Três Marcas da Existência”, sendo que a primeira marca; a realidade da Impermanência, é reconhecida por todas as escolas do budismo e presentes em todas as linhagens.  Verdade incontestável que atravessou sociedades, culturas, religiões e filosofias.

Essa verdade aparece, de forma emblemática, nos versos do filosofo grego pré-socrático Heráclito, nas suas reflexões sobre a impermanência.(1)

 

ΟΥΔΕΘΝΗΤΗΣΟΥΣΙΑΣΔΙΣΑΨΑΣΘΑΙΚΑΤΑΕΞΙΝΑ ΛΛΟΞΥΤΗΤΙΚΑΙΤΑΞΕΙΜΕΤΑΒΟΛΗΣΣΚΙΔΝΗΣΙΚ ΑΙΠΑΛΙΝΣΥΝΑΓΕΙΜΑΛΛΟΝΔΕΟΥΔΕΠΑΛΙΝΟΥΔΥ ΣΤΕΡΟΝΑΛΛΑΜΑΣΥΝΙΣΤΑΤΑΙΚΑΙΑΠΟΛΕΙΠΕΙΚ ΑΙΠΡΟΣΕΙΣΙΚΑΙΑΠΕΙΣΙΝ.

oὐδὲ θνητῆς οὐσίας δὶς ἅψασθαι κατὰ ἕξιν· ἀλλ’ ὀξύτητι καὶ τάχει μεταβολῆς σκίδνησι καὶ πάλιν συνάγει (μᾶλλον δὲ οὐδὲ πάλιν οὐδ’ ὕστερον, ἀλλ’ ἅμα συνίσταται καὶ ἀπολείπει) καὶ πρόσεισι καὶ ἄπεισιν.

 

“Um não pode entrar duas vezes no mesmo rio, nem apreender qualquer substância mortal em condição estável, mas dispersa e de novo reúne; forma e dissolve, e aproxima e afasta”.

(Heráclito)

 

Anicca é o véu que cobre uma verdade mais profunda; a inseparabilidade de todas as coisas.  Essa qualidade do todo é inseparável de uma dinâmica movente, sem causa primeira. Todas as coisas, agrupadas em séries, surgem por movimentos incessantes que criam combinações e interconexões. Como resultado surge uma rede infinita de configurações fenomênicas.  Fenômeno é qualquer ideia de existência de um eu, um outro, um objeto ou uma experiência.  Todos os fenômenos são compostos de elementos e resultam de causas e condições. Mudando as características de um dos elementos, muda a forma, a cada mudança da unidade da forma o todo se altera. Este é o movimento da impermanência. Porque não enxergamos cognitivamente, percebemos esses fenômenos somente em sua unidade, e por engano os tomamos como sólidos e permanentes. Ignoramos o movimento de sua composição múltipla, apenas vemos sua duração, não sua sutil transformação.

Os primeiros textos budistas definem Samskara [sânscrito] como o termo designado para traduzir essas manifestações fenomênicas.  No seu sentido “passivo” essa palavra significa “formações” ou “aquilo que foi montado”, determinações ou fabricações. No seu sentido “ativo” Samskara [samskara-khandha] se refere à faculdade da mente criadora de forma. É a parte da doutrina do surgimento condicionado ou “origem dependente” [praticcasamuppada]. Samskara pode referir-se a qualquer forma composta no universo; seja uma árvore, uma nuvem, um ser humano, um pensamento, uma molécula ou um átomo. Todas estas formas são samskaras; coisas fabricadas, agregados de condições mentais que, unicamente obedecendo a causas e condições, se manifestam no mundo físico e sensível e depois se desunem e cessam. Essas “aparências-manifestas” se atualizam em um movimento temporal simultâneo com a mente; a co-emergência, e podem ser descritas como aspectos da mente que apreendem a qualidade de um objeto, como por exemplo; a sua forma e contorno, sua cor, seu aroma e as nuances de textura e luminosidade, tendo a capacidade de “colorir” a nossa mente.  Buddha ensinou que todos esses samskaras são impermanentes e sem substância inerente, estão em um contínuo fluxo de movimento e sujeitos ao declínio e transformação.   Isso significa que qualquer evento, simples ou complexo, físico ou mental não são metafisicamente reais.  Eles não são constantes ou permanentes, se manifestam e se dissolvem, num eterno devir.

Dos ensinamentos transmitidos por Shiakyamuni Buda, o ensinamento sobre a impermanência pode ser considerado o mais elevado, sendo um dos aspectos essenciais da doutrina budista.   É ele que nos direciona para o Dharma e para a prática.  São os ensinamentos sobre a impermanência que nos revelam a natureza da realidade e nos apontam à verdade da vacuidade. O princípio da impermanência é também, um dos fundamentos da compreensão da origem do sofrimento Dukkha; o movimento cíclico de satisfação e dor que rege a nossa existência. É nesse aspecto cíclico de alternâncias que se manifestam a impermanência das diferenças que se repetem.  A necessidade de fluir com essas alternâncias e nossa resistência em mantermo-nos em apenas um polo é a origem de dukkha.   Dukkha se manifesta no ciclo do samsara [representado na roda da vida], na qualidade dos seis reinos e no ciclo de identidades configurados nos doze nidhanas, é sempre a impermanência a força motriz do funcionamento dessas periodicidades representadas na Roda da Vida.

Os movimentos cíclicos da impermanência podem ser observados em qualquer direção que se observe. Desde a periodicidade de macro elementos cósmicos, no surgimento e cessação de infinitos universos, ou nos ciclos de eventos climáticos naturais como as estações, as fases lunares, as correntes marítimas, ou mesmo a alternância do dia e a noite.  Percebemos a ciclicidade da impermanência também, nos microciclos biogeoquímicos que permitem que os elementos interajam com o meio ambiente fluindo pela biosfera.   Tudo é periodicidade e mudança.  Um incansável movimento de expansão e recolhimento, de subida e descida, de altos e baixos numa rede que une todos os fenômenos, inclusive nós mesmos, que somos fenômenos compostos, agregados da matéria e da mente; nossos corpos, sensações percepções e afecções. Nesse sentido a impermanência e o não-eu  são, na essência, a mesma coisa.

Ao nos vermos frente ao ensinamento da impermanência, um afeto de tristeza e pesar passa a nos rondar. Chogyam Trungpa Rinpoche (1939-1987) refere-se a esse sentimento como uma tristeza bondosa e sagrada; “Coração genuíno da tristeza” gerado pelo enfoque nessa realidade.  São dois os reconhecimentos que suscitam essa tristeza; o primeiro é que em lugar nenhum existe alguma coisa que vá durar e o segundo reconhecimento é que, não há garantia de nada em lugar algum, tudo é instável e indeterminado. É preciso ultrapassar esse portal, é preciso reconhecer que a permanência e todos os seus desdobramentos, traduzidos em segurança, estabilidade ou solidez, são apenas tentativas de uma resposta aos comportamentos e afecções que buscam manter uma subjetividade voltada à   autoconservação.  Qualquer mudança parece causar instabilidade e o medo é instaurado. Nos apegamos às lembranças que moram na virtualidade de nossa memória, mantendo-as em constante atualização gerando estresse e insatisfação, ou nos apegamos a objetos aos quais imputamos valores afetivos que nos iludem pela impressão de solidez e permanência gerando o engano de uma referência de segurança possível.  Nos tornamos pequenos.  Há um ruído de fundo que impede um estar bem, impede de sermos criativos, grandes, inteiros.  Atravessar esse portal é reconhecer a realidade como ela verdadeiramente é; fugaz e evanescente, constituída por fenômenos que, compostos por múltiplos elementos, se configuram e reconfiguram em imagens-formas, vazias de substancialidade que se manifestam em constantes devires.  Perceber o magnífico movimento contínuo e ininterrupto do tempo que, gera mudanças e transformações e se define pela ausência de “essência” nas coisas, gera um olhar livre e luminoso sobre elas. Estas, que se por sua vez, se constituem em miríades de possibilidades latentes de encontros. No movimento contínuo desses fenômenos, ao se compor e decompor, o budismo vê um ponto limite onde as coisas não são mais compreendidas como coisas, mas como processos em transformação, como devires.

Para o Budismo existe algo que está aí, algo a ser conhecido, uma verdade que fica nublada devido a forma como o ser humano compreende e experimenta o mundo, pois a impermanência não é da ordem do intelectual, mas sim uma vivência sensorial e subjetiva.  É a experiência do sujeito e do objeto, numa unicidade; onde o sujeito é o agente do tempo puro na sua natureza Búdica, e o objeto, do tempo relativo no movimento da mudança contínua. Numa visão ampla é a impermanência que coloca a existência com uma face voltada para o relativo e temporal e o a outra face para o absoluto do tempo puro e da natureza Tathagata. Sabemos isso, ou pelo menos intuímos; a Impermanência é uma relação direta e incondicional com a parte e com o todo, é a própria vida na sua duração.

 

 “Do Si relacionado ao Eu

só se pode primeiramente tomar

distância quando se vê

impermanência”

Dōgen

 

Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Referência:

 

1 LI (D. 91, M. 40c3) Plutarco, De E apud Delphos 392B Trad. Charles Khan em KHAN, C.; “A Arte e o Pensamento de Heráclito”; São Paulo; Ed. Paulos; 2009; p.79.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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