Assim eu ouvi. Certa vez o Abençoado estava no Bosque de Jeta, no monastério de Ananthapindika.
O monge Malukyovada, enquanto meditava em reclusão, desconcentrou-se e permitiu que a seguinte linha de pensamento dominasse sua mente:
“O Abençoado se recusa a responder, descarta, desconsidera estas questões: se o universo é eterno ou não; se o universo é finito ou infinito; se corpo e alma são unos ou separados; se o Tathagata continuará existindo após sua morte, deixará totalmente de existir ou permanecerá em um meio-termo entre existir ou não. Eu não concordo com isso! Irei questionar ao Abençoado, e se ele não se manifestar, eu abandonarei a comunidade! ”
Em seguida, o monge abandonou a reclusão, e apesar do anoitecer foi até o Abençoado. Malukyovada fez reverência e sentou-se a um lado.
Então, ele falou, “Senhor, há poucos momentos, quando eu me encontrava em contemplativa reclusão, uma linha de pensamentos dominou minha mente, o Tathagata se recusa a responder, descarta, desconsidera questões místicas e filosóficas. Abençoado, por favor responda. O Senhor está ocultando estas respostas, ou não sabe sobre elas? ”.
Replicou o Abençoado, “Malukyovada, ao te tornares monge, por acaso eu prometi que iria revelar-te ou ocultar-te mistérios filosóficos ou místicos? Por acaso tu exigiste alguma barganha para viver a vida sagrada, e eu concordei com isso? ”
“Não, Senhor”.
“Neste caso, homem tolo, quem és tu para sugerir que o Tathataga está retendo ou ignora tais questões? ”
“Malukyovada, se alguma pessoa imagina que ao adentrar o Caminho do Dharma irá obter do Tathagata respostas sobre questões filosóficas ou místicas, esta pessoa irá morrer sem jamais conseguir obter o que imagina. ”
“É como se um homem, ferido mortalmente por uma seta envenenada, cercado por seus entes queridos os quais, sôfregos, pensam em rapidamente procurar um médico cirurgião.
Mas o homem agonizante os impede e diz, ‘Quero antes saber quem foi o arqueiro a me golpear. Se era nobre, seu nome de família, se a seta era feita de madeira refinada ou bruta, suas dimensões e ângulo de queda ao me atingir, que tipo de penas foram usadas para dar direção à seta, o tamanho e composição do arco’. Se este homem fosse receber tantas informações, ele morreria e tais conhecimentos inúteis iriam apenas adiar a valiosa cura de sua dor. ”
“Assim, Malukyovada, aprenda a reconhecer o que é de valor a ser ensinado pelo Abençoado, e o que é completamente inútil”.
Cula-Malunkyovada Sutta. Versão resumida, modernizada e adaptada por monge Kōmyō Sensei. O tradutor assume a responsabilidade pelas adaptações, a partir de texto original obtido no site Access to Insight (1)
Comentário:
Eis um dos mais belos sutras de Buddha. Nele, encontramos uma das mais belas parábolas sobre a trágica inutilidade da elucubração infindável sobre questões irrespondíveis.
O tempo urge. Shakyamuni Buddha sabe como a tolice das mentes intelectualizadas conduz a uma inútil busca por respostas de perguntas erradas. Malukyovada, imaginando que o Esclarecido estava retendo importantes informações, ousou desafiar uma mente que está além de qualquer desafio.
A busca pela claridade da mente, o desafio da experiência contemplativa, não equivale a um debate acadêmico, análise científica ou a uma reunião mística. Shakyamuni clama para as mentes tolas, “Por favor, acordem! Deixem de lado as respostas que não irão lhes conduzir a uma vida saudável aqui e agora. Eu sou o médico, e trago a medicina para curar a ignorância de sua mente”.
A seta venenosa da ignorância atingiu o corpo, mas a mente não alcançou o alvo. Muitos praticantes ou simpatizantes do Zen perdem tempo enorme procurando respostas que não irão lhes dar o que é fundamental: a experiência de contato consciente, o discernimento agudo sobre a clara realidade de si mesmo e de todas as coisas.
A medicina de Buddha é urgente. Mas a cirurgia pode apenas ser realizada se o paciente estiver concentrado. A mente condicionada é uma mente em caos. Perdida em um eterno discurso interior, hipnotizada pela sedução das palavras.
Pare! Fique em silêncio! Ouça a voz de Buddha a reverberar no remanso da sua experiência contemplativa. Ele ensina o que é mais necessário para a sua transformação e cura:
Primeiro, sua mente está viciada em um padrão ignorante de percepção;
Segundo, esse vicio ignorante se estabelece devido a uma virulenta autoilusão, o egoísmo;
Terceiro, é possível cessar este processo, evitar esse veneno;
Quarto, para isso torna-se necessário que você se reconheça profundamente, se compreenda intensamente, transforme sua mente e, enfim, cure a si mesmo.
Liberdade. Eis o que ensina o Tathagata. Liberdade. Esta é a resposta, aquela que salvará sua vida. O que mais seria importante saber?
Em nome do Dharma
Monge Kōmyō. Sensei na comunidade zen-budista Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Foto: Heartland Archery, Justin Ladia