Os Doze Elos da Originação Dependente

 

A Originação Dependente é a matriz existencial que gera continuamente a realidade manifesta.  Seja a realidade objetiva concreta ou a realidade interna e subjetiva.  Ela representa o modo como a mente deludida constrói todos os movimentos desde o nascimento, duração e cessação dos fenômenos, ou ainda o passado, presente e futuro desses mesmos fenômenos diante de nossos olhos. A originação dependente também representa como as causas e condições do sofrimento se estabelecem de modo sutil em nossa mente e se conectam em cadeia.

O nível subjetivo de nossa existência é construído por paisagens mentais; estruturas internas associadas às inteligências cognitivas. O observador, ao experimentar o mundo através dessa associação, pode construir e manifestar a sua própria versão desse mundo, resultando numa paisagem mental.  A estrutura interna é a base dessas paisagens mentais, que formadas por camadas sobrepostas e subjetivas de cognição são chamadas de marcas mentais.  Ambas são inseparáveis e constituem um único corpo que as fazem atuar concomitantemente.  As paisagens mentais são permeadas por crenças e conceitos, que pela recorrência criam condicionamentos, que por sua vez, acabam justificando a veracidade dessas estruturas e legitimando nossas ações no mundo.  O conjunto de paisagens mentais, formadas por um vasto conjunto de marcas mentais, são revestidas por uma espécie de “bolha de realidade”.  A noção de bolha de realidade pode ser traduzida como sendo a experiência de aparente solidez e coerência que damos às paisagens mentais.  Nas bolhas tudo começa a girar como se tivesse um propósito verdadeiro e último, com significados que parecem coerentes e reais.  Também é possível observar a realidade inteira surgindo junto com a identidade, com as relações, com visão estratégica e até mesmo com os aspectos causais. Contudo, apesar dessa aparência de solidez das bolhas e de nos localizarmos dentro delas, não estamos presos a elas. Na verdade, ao reconhecemos o funcionamento de todas essas estruturas, estamos nos preparando para perceber nossas limitações e para ultrapassar as fixações impostas pelos condicionamentos que as sustentam.

O processo de originação dependente revela como se dá a formação e a destruição desses modelos de condicionamento, estruturas, paisagens e bolhas, ou visões de mundo estreitas e limitantes, que se dá tanto no aspecto tangível quanto no subjetivo.  Formado por uma cadeia de doze elos, que conectados atuam de acordo com um princípio geral e básico do budismo: “se isto existe aquilo existe; se isto cessa de existir, aquilo cessa de existir”, o ciclo de originação dependente se constituí a partir de um esquema que põe esse princípio em movimento.  Sem obedecer a leis de causalidade temporal, o princípio determinante da originação dependente descreve a forma que liga e transforma a causa e o efeito em um par só, indissociável; ou seja, quando existe o primeiro elo, a ignorância, o ciclo começa a girar, os pontos vão aparecendo, vão brotando, um na co-dependência do anterior e gerando a dependência do próximo. Da mesma forma, devido aos elos dependerem de causas e condições; se as condições do sofrimento forem tiradas, todo o ciclo deixa de existir.

Os Doze Elos que compõe o diagrama da Originação Dependente, conectam-se na parte superior, no início da corrente, por um elo que não é numerado e é ao mesmo tempo o destino final. Nesse elo está a região do sofrimento que é o combustível que faz movimentar essa corrente infinitamente.  Esse diagrama forma um círculo, é a Roda da Vida, que gira num movimento perpétuo de criação e sustentação do sofrimento conhecido como Samsara.  O fluxo do Samsara nunca cessa e é sustentado pelos três venenos mentais.  O primeiro veneno mental é a ignorância representada por um animal: o javali.  O javali é o símbolo desse veneno por sempre estar olhando para baixo e traduz um estreitamento mental em relação a um olhar amplo para a realidade.  O segundo veneno é a eterna insatisfação, representada por um galo que cisca incessantemente e por último o terceiro veneno é a raiva, representada pela cobra que aparece ligada a um ataque repentino e destruidor.  Esses venenos são as causas que mantém o sofrimento e que, por sua vez, agem como combustível para movimentar a Roda da Vida, o Ciclo do Samsara.  Esse Ciclo simboliza o processo contínuo de criação da realidade ao qual estamos inseridos.  Somente a compreensão desse mecanismo permite atenuar o giro dessa roda e descobrir suas contradições, para que em algum momento possamos encontrar suas fissuras e nos libertar dessa prisão.

A cada edição apresentaremos um dos doze elos da Originação Dependente, deixaremos nesta edição, para reflexão, os ensinamentos sobre o primeiro elo:

 

Primeiro Elo

AVIDYA

Ignorância

 

Avidya é uma palavra sânscrita védica composta por a e vidya, significando “sem vidya”.  A palavra vidya é derivada da raiz sânscrita vid, que significa “saber, perceber, ver, entender”.  Então avidya significa “não saber”.  Na literatura védica, refere-se a “ilusão, ignorância espiritual” ou ainda “ignorância com a inexistência”.  Sendo o primeiro dos doze elos, é simbolizado na Roda da Vida por um cego tateando o chão com sua bengala. O primeiro dos doze elos da corrente pode ser explicado em diferentes níveis, dentro de diferentes ensinamentos ou tradições budistas.  No nível mais fundamental, pode ser explicado como um estreitamento mental, um obtusamento, ou ainda um confinamento da mente e não apenas uma ausência de conhecimento.  O estreitamento mental é um processo que envolve um foco energético em direção a um determinado objeto, que pode ser concreto ou subjetivo e tem como consequência a perda da visão ampla da realidade. Esse é o processo de delusão, que tecnicamente se dá quando olhamos para uma coisa e esquecemos todas as outras, ou seja, exatamente porque um objeto surge, ignoramos todos os outros.  “Porque vemos, somos cegos”.  Na delusão é possível ver, mas não é possível perceber uma outra realidade subjacente. A delusão engana a experiência e bloqueia qualquer outro raciocínio, ela é a fonte das tendências kármicas, da identidade, das situações da vida e da morte. Dessa forma avidya pode ser entendida como a incompreensão da natureza da realidade, não apenas uma incapacidade de conhecer a verdade, mas uma distorção dessa verdade, uma má compreensão ativa de si mesmo, da própria mente ou corpo e do que são os outros e todos os outros objetos.  É a concepção ou suposição de que os fenômenos existam de uma maneira muito mais concreta do que realmente existem. Portanto, esse estreitamento, esse direcionamento excessivo da energia em direção a um foco, ao mesmo tempo que distorce esse foco apaga todas as outras possibilidades de visão.   O mundo relativo e sólido se sobrepõe ao mundo absoluto; ou seja, a sobreposição de um objeto, uma paisagem mental ou uma bolha de realidade se dá em detrimento de uma visão ampla, de uma perspectiva a partir do espaço amplo da mente.  Essa perspectiva pode ser traduzida como a vacuidade e a luminosidade dos fenômenos. É possível transcender a obtusidade da visão ao trocar o foco de energia, direcionado a um objeto, para a prática de estabilização dessa energia a partir do espaço amplo da mente e então experienciar a vacuidade e luminosidade oriundas desse lugar.

Outras distorções decorrentes do estreitamento da visão causados por avidya são em relação aos “Três selos do Dharmma”; são eles anicca, anatta e dukkha.  O primeiro selo é Anicca e pode ser traduzido como “impermanência”.  Diz respeito a constante mutação de todas as coisas que compõem o universo, isto significa que todos os fenômenos são impermanentes.  Entenda-se por fenômeno qualquer ideia de existência, seja de um “eu”, de um “outro”, de um “objeto” ou de uma “experiência”.  Os fenômenos são impermanentes devido a sua natureza composta e existem a partir de causas e condições, sendo que, quando as causas e condições cessam, o fenômeno cessa também e deixa de existir. Ao considerarmos nós mesmos e o mundo como entidades sólidas, estáveis e duradouras, apesar de constantes evidências de que tudo está sujeito ao primeiro selo; Anicca, estreitamos nosso entendimento e sofremos de avidya.

O segundo selo anatta é um dos conceitos básicos da doutrina budista, significa, literalmente “não eu”.  Diz respeito à inexistência de um “eu” permanente e imutável nos elementos que compõem o universo, ou seja, descreve a insubstancialidade de todos os fenômenos do universo. Segundo os ensinamentos do budismo um dos maiores enganos consequentes de anatta é a separatividade entre sujeito e objeto, a origem da dualidade.  O último selo é Dukkha que significa sofrimento.  Sofrimento que abarca desde os níveis mais sutis aos mais grosseiros de não satisfatoriedade, atrito e desconforto causados por nossas emoções perturbadoras.  Dukkha manifesta Avidya pelo sofrimento que a obtusidade em perceber a transitoriedade e insubstancialidade podem causar. As distorções causadas pelo primeiro elo da originação dependente, no entendimento correto dos três selos do budismo, podem ter as causas investigadas e então se extinguirem.   Isso significa que, somente a partir do espaço amplo da mente, onde se vivencia a vacuidade e a luminosidade sem solidificar as visões e percepções, mas navegando na liberdade de um olhar criativo e lúdico da realidade, é possível quebrar as amarras de avidya e experienciar a liberação.

 

Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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