A Segunda Nobre Verdade

 

Dukkha Samudaya ou origem do sofrimento é a Segunda Nobre Verdade e está diretamente ligada a Originação Dependente.  Esse ensinamento é comum a todas as escolas do Budismo.  A Gênese dependente é a matriz existencial que gera de forma continuada a realidade manifesta, afirmando que todos as coisas são o resultado da existência mutuamente dependente; “com o surgimento disto, aquilo surge; com a cessação disto aquilo cessa”. O princípio da Origem Dependente mostra a interdependência de todos os fenômenos sob a forma de um continuum.  Esse princípio afirma que a verdadeira natureza de todas as coisas é um processo determinado pelas três propriedades básicas da existência, mostrando a inter-relação de todas as coisas para gerar seus fenômenos. A primeira propriedade é efemeridade, originação e cessação constante e que é chamada de anicatta.  A segunda propriedade, a de estar sujeito a impermanência, a instabilidade das constantes mudanças e ao sofrimento dessas imperfeições é chamada de dukkhata. Por fim, a terceira propriedade é a qualidade de vazio de um eu real ou substância em qualquer fenômeno material ou mental e é chamada de anattataEssas propriedades significam que todas as coisas são inter-relacionadas e interdependentes. Todas as coisas existem em relação umas às outras. Todas as coisas dependem de causas e condições para se manifestarem. Todas as coisas não possuem existência duradoura, nem por uma fração de tempo. Todas as coisas não possuem uma identidade intrínseca. Todas as coisas não possuem uma Causa Primeira.

A verdadeira natureza dos fenômenos é a de um movimento cíclico e ininterrupto de transformações.  As formas em sua diversidade, ou seja; seres, objetos, cores, sons, imagens, propósitos, fatos, pensamentos e toda uma miríade de formações, são resultantes de uma dinâmica de surgimento e cessação.  Assim, na sua essência, o princípio da Origem Dependente, é uma descrição do surgimento e da cessação dessas formações.  Esse princípio demonstra como a nossa mente se estrutura e opera por causação, gerando condicionamentos que a aprisionam numa visão limitada de nossa existência. Apesar desse processo mental automático e condicionante, a verdade da realidade se impõe e o continuum se move e segue alterando, na sua impermanência, os determinantes e elementos que compõem todos os fenômenos compostos nas suas formas, tanto os fenômenos materiais como os mentais. O resultado desse movimento é a impermanência constante das formas, seus elementos não cessam de interagir entre si mudando suas configurações e sua representação resultante. Essa impermanência revela a inexistência de algo intrínseco no interior das coisas, uma identidade própria e independente, que sustentaria uma hipotética solidez e permanência.  Em suma, o contínuo que permite que todas as coisas sejam como realmente são, que permite o surgimento de novos fenômenos, sustentados apenas por seus determinantes, só pode operar porque tais coisas são transitórias, efêmeras, constantemente surgindo e cessando sem possuir uma identidade intrínseca própria. Essa qualidade em potencial de surgimentos de fenômenos chamamos de Shunya e significa vacuidade, uma forma de abertura, de liberdade para a manifestações.  Assim é como a realidade se configura em sua forma mais verdadeira. É através da Segunda Nobre Verdade que surge a possibilidade de harmonizarmos a visão budista do vazio com a realidade que nos permeia, pois é nesse ponto que a doutrina da vacuidade encontra seu ponto de contato com a realidade contingente, possibilitando uma transição de um percurso na exterioridade para uma busca existencial interna e individual.

O Budismo diz que há um estado natural que antecede todas as coisas, um lugar de lucidez e luminosidade, de onde a mente livre, dependendo de causas e condições, dará origem a fenômenos e processos mentais, é esse o lugar de abertura, de potencial de possibilidades.  É a partir desse lugar que surgirá o processo mental por Originação Dependente. No estágio inicial, os estados da mente se apresentam de forma dividida e desorientada, livre para movimentar-se por impulsos e tendências.  Ao mesmo tempo existe um aturdimento e incerteza em nosso estado de ser, impedindo que vejamos para onde nossa mente se dirige.  Esse entorpecimento gerado por vacilações do pensamento faz com que os movimentos da mente sempre sigam na mesma direção, criando condicionamentos.  Esses condicionamentos fixam a nossa visão e retiram a flexibilidade de um olhar sensível e atento a diferentes possibilidades. Impede de criarmos saídas além de nossas limitações e mais profundamente, nos tiram a abertura e amplitude de visão do mundo.  O reconhecimento de que dukkha é o objeto de uma construção mental, processo natural e intrínseco de nossa condição humana, bem como compreender como ocorre esse processo, nos permite descobrir a origem e as causas do sofrimento.  Conhecer a Segunda Nobre Verdade nos dá a possibilidade de interferir nesse processo para que possamos superar o sofrimento e regressar ao estado búdico que antecede todas as coisas.

Por meio da contemplação, Buddha Shakyamuni compreendeu como se constitui o processo de construção de padrões mentais. Compreendeu as dinâmicas de condicionamentos da mente e o modo como ela age em originação dependente num processo causal muito específico. Percebeu também, como as causas e condições do sofrimento se fixam de modo imperceptível em nossa mente e se unem em cadeia, formando assim, uma corrente constituída de doze elos, chamados de Nidanas.  Por meio de formações, que se originam na mente, onde são criadas todas as impurezas e dores, nasce os elos da corrente da causação; são os Doze Elos da Originação Dependente.

Buddha compreendeu que esses elos se ligam em forma interdependente e causal.  Compreendeu que se trata de uma construção da mente, que nos define e nos coloca em relação com a realidade. Percebeu que é uma construção delusória, um constructo mental que não corresponde aos nossos anseios como seres que aspiram ao Nirvana. Em sua época, o conceito de gênese condicionada já era conhecido, mas Buddha realizou em um só momento, em um profundo insight, como a mente opera de forma condicionada para construir e manter uma identidade social, cultural e existencial.  Através desse insight, Buddha viu a origem sistemática do sofrimento, da dor e da inadequação do ser humano.  Viu que, por ser livre, a mente pode gerar ignorância Avidya e, por estarmos presos na ignorância, brotam as marcas mentais Samskara.  Com o surgimento das marcas mentais, surge uma espécie de proto-identidade, a consciência da dualidade Vijnana.  Quando surge a nossa identidade, tentamos perpetuar a experiência da existência ao aspirarmos um corpo Nama-Rupa. Ao aspirarmos a um corpo, surge as Esferas dos Seis Sentidos Shadayatana. Surgindo o nosso corpo, fazemos contato com o mundo Sparcha.  A partir do contato, temos sensações.  Quando temos sensações, tentamos sustentar as agradáveis e nos afastar das desagradáveis Vedana.

Até aqui todos os elos se apresentam num nível inconsciente, a partir de Vedana a experiência se torna consciente e o processo todo é simplificado por gostar ou não gostar, querer ou não querer.  Devido ao surgimento de sensações agradáveis surge uma ânsia, uma pulsão de apego, ou ao surgimento de sensações desagradáveis uma pulsão de aversão Trichna, este elo reflete um anseio fundamental em direção à permanência, à estabilidade ou mesmo uma tentativa de ignorar a impermanência. A partir desse ponto nossos hábitos estão estabelecidos e nossas ações se apresentam contaminadas por esses hábitos. O reconhecimento de nós mesmos nesses hábitos adquiridos cria uma identidade que será traduzida em um tipo de relação entre o sujeito e o mundo Upadana. Uma vez que criamos uma falsa sensação de identidade pela repetição dos hábitos, começa a desenvolver um sentimento de “eu” e “meu” e a partir desse elo começamos a montar estratégias lógicas e operacionais para sustentar e justificar as ações de “apego” e “aversão” Bhava. O próximo elo expressa a incessante fixação em manter o equilíbrio de nossa identidade e todas as artificialidades construídas pelos elos antecedentes nas circunstâncias da vida, porém expressa também o pressentimento da aproximação do momento em essa delusão será abalada pela realidade da impermanência e a solidez da identidade será posta em xeque, esse elo é Jeti. O último elo é Jana-Marana, onde o sustentável torna-se insustentável, o fim de um ciclo se aproxima, a “bolha de realidade” estoura e a morte inevitável surge. Fechamos o décimo segundo elo. É o momento da morte.

Os ensinamentos budistas mostram que até a morte, tão definitiva, também é uma experiência construída, também é vazia de substancialidade. Porém, enquanto não realizamos a vacuidade da morte, ao sustentarmos essa última construção, somos assaltados por tristeza, lamentação, dor, ansiedade e todas essas sensações convergem para uma experiência de sofrimento nesse ciclo kármico.  Contudo, como a impermanência é inevitável, em certo momento tudo irá desabar e o sofrimento cessará por um tempo, sendo a semente kármica preservada assim mesmo, para perpetuar esse movimento cíclico de condicionamentos, que é a causa e origem de Dukkha.

Essa é a Segunda Nobre Verdade; Dukkha Samudaya.   A verdade da origem do sofrimento, a verdade da ignorância em ver e se integrar à impermanência e à vacuidade da existência. Verdades que quando realizadas fazem brotar uma imensa e insuperável compaixão por todos os seres.  Compaixão essa, que nos redime e nos liberta da delusão da separação do todo, e do sofrimento causado por ela. Conhecer a Segunda Nobre Verdade é ver a natureza ilusória da mente. É realizar o nível mais profundo de insight.

 

Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

 

 

 

 

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