Matrix: Uma Metáfora Budista

 

Cedo ou tarde você vai perceber, como eu, que há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”.

Morpheus, Matrix

 

Lançado em 1999, Matrix conquistou fãs e críticos com espetaculares efeitos especiais que revolucionaram o cinema e com um roteiro inovador e inteligente. No entanto, muito além de cativar os espectadores com planos-sequências jamais vistos, o filme garantiu materiais que nos levaram a muitos interessantes debates por anos.

Entre os pontos mais impressionantes de Matrix está a utilização de simbolismos religiosos como embasamento para as ideias propostas na história. As enigmáticas irmãs Wachowski, criadoras e diretoras da série, assumem que absolutamente todas as referências foram cuidadosamente plantadas e intencionais, incluindo todos os nomes de personagens, e que todas elas têm múltiplos significados. Uma dessas referências é a religiosa, pois há muitas referências ao catolicismo, gnosticismo e ao budismo. Neste texto buscaremos apresentar alguns pontos sobre o Budismo expostos no primeiro filme da série.

Há pouco mais de duas décadas, Matrix estreava nos cinemas, o conceito central do filme era de que toda humanidade estava aprisionada em uma simulação chamada “A Matrix”. Até hoje muitos ainda discutem a questão primordial do enredo: “Vivemos em uma ilusão?”.

Do ponto de vista budista podemos dizer que sim. Não em uma realidade simulada por uma inteligência artificial, mas, categoricamente, vivemos em um mundo de delusões, que são sistematicamente criadas pelas nossas mentes.

“Você é um escravo. Como todo mundo. Você nasceu num cativeiro, nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para sua mente”.

Morpheus, Matrix

Buda solucionou essa questão há mais de dois milênios, ao sentar sob a árvore boddhi ele pode enxergar as delusões que nos mantem cativos e nos impedem de compreender nossa verdadeira natureza, de certo modo, ao despertar ele enxergou a Matrix. Estar presos a uma ilusão talvez seja a maior razão para que muitas pessoas vejam Matrix como uma alegoria budista, sendo a própria Matrix a prisão ilusória da mente construída pela e para a humanidade, uma metáfora para o conceito budista de samsara.

Em determinado momento do filme o agente Smith diz a Morpheus: “Eu acredito que, como espécie, os seres humanos definem sua realidade por meio do sofrimento e da miséria“. Quando Buda saiu de seu palácio, ele buscou o conhecimento junto aos mestres, praticou o ascetismo por anos, até sentar-se sob a árvore boddhi; tudo o que ele queria era se libertar do sofrimento, era romper esse ciclo de nascimento, doença, morte e, por conseguinte, do sofrimento que permeia a vida de todo ser senciente.

Podemos não estar presos em uma realidade simulada, construída por uma inteligência artificial, mas isso não significa que não estamos aprisionados, estamos presos em nossas próprias prisões mentais, e apesar dessa prisão mental nos causar grande sofrimento, muitas vezes nos mantemos aprisionados, já que, de certa forma, estamos cegos ao caminho do despertar, ao caminho de Buda. E essa cegueira, decerto, nos faz ter aversão aquilo que contraria nossas “certezas”, aquelas apreendidas ao longo da nossa experiência de vida, e com isso nos apegamos ainda mais aos nossos conceitos, opiniões, sentimentos, à nossa ignorância, e nos afastamos da realidade, da vida como ela realmente é; nos mantemos cativos dos nossos ciclos mentais.

Você precisa entender, a maioria destas pessoas não está preparada para despertar. E muitas delas estão tão inertes, tão desesperadamente dependentes do sistema, que irão lutar para protegê-lo”.

Morpheus, Matrix

Neo, o herói interpretado por Keanu Reeves, pode ser visto, posteriormente, como um bodhisattva (um ser desperto, movido por grande compaixão, que deseja ajudar todos os seres a libertam-se). Mas como muitos de nós, no início da trama, encontra-se preso na Matrix, no entanto, algo dentro dele o alertava para essa ilusão que vivia, ele buscava libertar-se, mas não sabia do que, buscava respostas aos seus conflitos, mas não sabia onde obtê-las. Quantas vezes em nossas vidas sentimos o mesmo conflito interno, que nos impulsiona em nossa busca pelo Caminho do Meio?

Você já se sentiu como se não soubesse se está acordado ou se está sonhando?

Neo, Matrix

A resposta está aí, Neo. Ela está à sua procura. E ela te encontrará se você desejar”.

Trinity, Matrix

Logo no começo da jornada, Neo recebe a visita de um grupo, cujo membro é um comprador de um programa de computador produzido por Neo, ao finalizar a venda Neo lembra-o que aquela transação é ilegal, ao que o comprador responde: “Isso nunca aconteceu. Você não existe”. O filme já começa a nos dar pistas sobre a realidade alternativa vivida pelo personagem. No contexto budista nos remete ao conceito da Vacuidade: o não-eu, o conceito diz que não existe um eu inerente a nenhum ser. Não somos separados, fazemos parte do todo.

Quando Neo percebe que está vivendo uma ilusão, Morpheus, uma espécie de guia espiritual ou um professor, ou como dizemos no Zen Budismo, um Sensei, um mestre, alguém que trilhou o Caminho antes de nós; ele mostra ao Neo como abrir sua mente para a realidade, para a vida como realmente é. Contudo, assim como nossos mestres budistas, Morpheus não pode trilhar o caminho por Neo, ele só pode mostrar como fazer, o jovem discípulo precisará caminhar por si mesmo e buscar a libertação da sua própria mente.

Quero libertar sua mente, Neo. Mas só posso te mostrar a porta. Você tem que atravessá-la” Morpheus, Matrix

Atualmente, com a tecnologia, tornou-se muito mais fácil encontrar os ensinamentos, o Dharma, encontrar comunidades budistas (sanghas) para praticarmos, informações sobre as diversas escolas budistas para escolhermos qual seguir, mas depende de cada um de nós trilhar esse caminho. Nosso mestre não nos pegará pela mão para nos manter na prática, depende somente de nós sentarmos em nossas almofadas de meditação, de praticar diligentemente os Preceitos, de encontrarmos tempo em nossas vidas delusórias para seguirmos o Dharma. As portas estão abertas, mas somente nós podemos atravessá-las.

Ninguém pode nos salvar, a não ser nós mesmos. Ninguém pode e ninguém consegue. Nós mesmos devemos trilhar o caminho“. Buda

Outro tema comum que aparece em Matrix é o dos espelhos e dos reflexos. Se observar atentamente, verá reflexos em vários momentos, geralmente, nos óculos de sol que os heróis usam. Tanto os espelhos quebrados ou distorcidos quanto os reflexos podem ser entendidos como metáforas importantes dos ensinamentos budistas, ilustram a ideia de que o mundo que vemos ao nosso redor é na verdade um reflexo do que está em nós. Assim, compreendemos que a realidade que percebemos é apenas uma ilusão, é necessário primeiro controlarmos nossas próprias mentes.

“Todas as coisas são precedidas pela mente, guiadas e criadas pela mente. Tudo o que somos hoje é resultado do que temos pensado. O que hoje pensamos determina o que seremos amanhã̃. Nossa vida é criação de nossa mente”. Buda

 

 

Outro aspecto budista pode ser visto no filme quando Neo visita o Oráculo, ao entrar no apartamento ele se depara com uma criança, que é retratada no filme como um monge. O menino entortava colheres por meio da telecinese, o que intriga Neo, que ao pegar uma colher recebe o seguinte conselho do pequeno:

– Não tente entortar a colher. É impossível. Em vez disso, apenas tente ver a verdade. Disse o menino.

– Que verdade? Neo.

– A colher não existe.

– A colher não existe? Neo.

– Você verá que não é a colher que entorta. É você mesmo. Disse o menino.

Buda ao despertar compreendeu que as coisas não são como se parecem, que o mundo não é realmente como percebemos, mas sim que tudo é uma construção mental, você e o mundo que o cerca dependerá de como está sua mente, do que você alimenta sua mente. Por isso, vemos e somos aquilo que pensamos. Ao despertar Buda disse: “você não me engana mais”. Essa frase não foi proferida a nenhum ser externo a ele, ele descobriu que a mente o enganava, a ilusão do eu o enganava, e a partir daquele momento não mais enganaria.

Quando o menino diz: “Você verá que não é a colher que entorta. É você mesmo”; podemos compreender nessa frase uma mudança de perspectiva, entendemos que as coisas não possuem uma natureza inerente, tudo é uma construção da nossa mente. Se os conceitos são construídos pela mente não devemos nos agarrar a eles, desta forma, poderemos construir a realidade da maneira que for melhor, ou seja, “não é a colher que entorta. É você”. Portanto, nossa capacidade de mudar o mundo ao nosso redor é uma questão de mudar nossas próprias mentes.

No entanto, um importante ideal budista não é respeitado no filme. Trata-se do conceito de não-violência e compaixão, na qual é ensinado que não devemos causar sofrimento a nenhum ser sensciente. Obviamente, entende-se que um filme de ação não sobreviveria sem tiros, armas e mortes, numa infeliz constatação que a iluminação ainda está longe de ser alcançada por nós.

Quando o final da história se aproxima, Neo, confiando no que lhe foi dito pelo Oráculo toma a decisão de resgatar Morpheus, aceitando a premissa que o levará a morte, mas salvará Morpheus, ele se sacrifica para salvar o amigo. Neo renuncia a tudo, incluindo qualquer esperança de escapar da Matrix, e a própria vida. Nessa rendição final, após sua morte na Matrix, ele renasce em sua nova vida como O Escolhido, O Único, e agora tem a clareza de ver através da ilusão da Matrix. Essa seria uma interessante metáfora sobre o momento do despertar. Ele, finalmente, pode enxergar as coisas como realmente são.

Na última cena, Neo, por meio de um telefone, envia à Matrix uma mensagem:

Eu não vim aqui te dizer como isso vai acabar. Eu vim aqui te dizer como vai começar. Vou desligar este telefone e vou mostrar a essas pessoas o que não quer que elas vejam. Vou mostrar a elas um mundo sem você“.

Após despertar Neo pode, talvez, ser visto como um Bodhisattva, pois agora desperto, enxergando a realidade, ele fará de tudo para despertar as outras pessoas da ilusão em que vivem. Ele não usará sua verdadeira natureza para o bem pessoal, mas deseja atravessar outras pessoas para o outro lado da margem. Isso nos remete aos primeiros trechos dos votos do Bodhisattva, ideal do Budismo Mahayana:

“Os seres são inumeráveis, faço votos de libertá-los

Delusões são inexauríveis faço voto de extingui-las…

Que nós também possamos todos nos libertar da Matrix que se encontra em nossas mentes e ajudar aos outros a se libertarem também!

 

Texto de Débora Muccillo. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Referências:

lionsroar.com/buddhism-and-the-matrix

wegotthiscovered.com/movies/matrix-about-buddhism/

learnreligions.com/the-matrix-religion-and-buddhism-25055

omelete.com.br/matrix-reloaded/a-religiao-e-a-mitologia-de-imatrixi

olharbudista.com/2016/03/30/filme-matrix-um-filme-sobre-budismo/

sobrebudismo.com.br/theres-no-spoon-a-mudanca-de-perspectiva-sobre-o-mundo/

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