Zazen e Nanquim

Certa vez, em um texto de apresentação para uma exposição de seus quadros, meu pai escreveu:

Na contramão…

Creio no suporte, no sagrado, no trabalho construindo o conceito, no gesto, no pincel, na pintura.

Creio em botar a mão na massa e misturar na fervura os elementos, como quem gira a roda da fortuna e manipula as potências explosivas, os impulsos contraditórios, as afinidades eletivas para extrair da realidade crua os ingredientes mágicos, medicinais, as poções transformadoras.

Creio no exercício, no ofício, no zazen; que na prática está a coisa, o espírito da coisa.

Creio no processo, no valor do ato criativo independente do produto e do seu próprio destino de comunicação.

Creio na obra como autora do autor’”. – Apon

Ele se define melhor nesse texto do que eu poderia tentar aqui fazer. Crianças aprendem a olhar para nuvens e enxergar coelhinhos, cachorros, corações etc. Eu dominava essa arte e, além disso, sabia “ler” borra de café como se fosse um velho mago; não enxergava o futuro, apenas via formas diversas ganharem vida. Sabia ainda ler cascas de árvores, toalhas sujas de comida e toda e qualquer mancha que aparecesse pela frente. Tinha aprendido que as coisas mais belas estavam nos detalhes e que formas e fábulas se escondiam na sujeira, nas árvores e nas nuvens.

Meu pai me ensinou tais segredos e, também, o valor do silêncio; pois só com ele se pode ouvir o vento e a chuva. Assistíamos, da janela, a tempestades e até hoje os trovões me trazem sua presença, assim como o faz o fogo da lareira para o qual olhávamos adivinhando mundos. Assim, a arte era indissociável do cotidiano e, desde que me lembro, desenho e pinto. Mais tarde, vim a escrever e as letras ocuparam o lugar que antes era da imagem.

Recentemente, me lembrei de uma conversa durante um almoço na qual ele me contou sobre um homem que passou nove anos meditando encarando as paredes de uma caverna chinesa. Eu, criança, fiquei assustado com tamanha imobilidade e somente anos mais tarde descobri que se tratava da história de Bodhidharma. Assim, o Zen também entrava quase que secretamente em minha mente em formação.

Vamos fluido pelo tempo, fazendo escolhas, assumindo papéis e, com isso, fui sendo chamado de estudante, jornalista, faixa preta, professor. E, assim, se nos permitirmos, logo estamos completamente presos à imagem que criamos de nós mesmos. Como Monge Genshō ensina, usamos essas máscaras para transitar pela realidade aparente e o verdadeiro problema acontece quando começamos a acreditar nelas.

Algumas máscaras herdamos e outras compramos, mas as que mais apreciamos costumam ser as construídas trabalhosamente ao longo dos anos. Na última década, venho esculpindo com dedicação e cuidado a de estudante e praticante budista. E o mais interessante para mim é que quanto mais seriamente me aplico, talhando as feições do praticante, mais me percebo sendo capaz de relativizar todas as outras. Tudo se revelou menos importante do que parecia. Mesmo a que me custou anos de estudos como a de professor ou a que me exigiu uma vida de esforços físicos e mentais, e me levou a três cirurgias no joelho, como a de faixa preta. Não me entendam errado, por favor, continuo gostando muito de praticar atividades que me exigiram tanto tempo para exercê-las em um bom nível. A diferença, agora, é que não me olho no espelho e penso que aquelas são as minhas verdadeiras faces. Não me encantam mais as fábulas que eu mesmo escrevi, apenas as uso conforme a necessidade.

O desafio então passa a ser: saber que até mesmo a feição do praticante não é a verdadeira, mas, sim, um meio hábil para, quem sabe um dia, chegar-se a ela. Como na famosa analogia budista do barco (os ensinamentos) que usamos para chegar à outra margem (despertar) e, uma vez lá, não há sentido algum em carregá-lo nos ombros por mero apego, pois sua função já foi exercida.

Por outro lado, devemos manter em mente que as fantasias causam efeitos reais no nosso mundo, na realidade aparente. Da mesma forma, que o poder de um déspota, por exemplo, pode ser devastador para outras vidas humanas ou o de um caçador para os animais, o poder do praticante é real e deve ser exercido pela libertação de todos os seres. Por isso, é preciso praticar com toda a nossa energia. A prática é a própria vida, cada pequeno ato cotidiano deve refletir o Dharma. Essa é a busca à qual nos dedicamos. No Zen, estamos sempre caminhando nesse limiar, é preciso entrega e devoção à prática e ao mesmo tempo não podemos nos deixar seduzir pela nossa própria imagem de budista a ponto de nos perdermos e cairmos em mais uma armadilha do ego.

Assim, mantendo isso tudo em mente, uni, no último ano, o desenhista e o praticante, mesclando nanquim e Zen, fazendo ilustrações baseadas em textos que estudava no momento. Muitas vezes, com limites indefinidos, as imagens criadas são uma mistura de formas e manchas – como as que eu aprendi a ler em cascas de árvores e fundos de xícaras em minha infância. Figuras se dissolvem em borras de nanquim, ambiente e indivíduo se interpenetram.

Para que as imagens não ficassem esquecidas em meus cadernos, passei a publicá-las na conta @zensutras no Instagram. Abaixo, algumas das ilustrações com os textos que as inspiraram. São desenhos simples, feitos em silêncio e com concentração por alguém que crê “na obra como autora do autor”. São estudos e são parte da minha prática. São também, é claro, mera fantasia…

“O grande mestre Bodhidharma (Daruma Daioshō) é tomado como o responsável por ter trazido o Zen da Índia para a China, ele é normalmente representado com barba, estranho na tradição em que os monges e monjas budistas, desde os tempos de Buddha, raspam barbas e cabelos para demonstrar seu desapego da aparência mundana e qualquer resquício de desejar agradar os olhos alheios.
Assim perguntei em um mondo público a Saikawa Roshi:
– Por que Bodhidharma tinha barba? O mestre, (antes do golpe ritual com o bastão no ombro do interrogador):
– Nem ele sabia! (Bodhidharma, tendo superado o eu, não prestava atenção em si mesmo)”
– Monge Genshō[1]

A Barba de Bodhidharma

Dogen, em suas “Recomendações Universais para o Zazen”, diz no primeiro parágrafo: “Considere os nove anos de Bodhidharma de frente para a parede. Considere Shakyamuni sentado por sete anos’. Vá lá apreciar o que o zazen está lhe oferecendo, nos oferecendo. Em certo sentido, Bodhidharma está disposto a dramatizar, a nos empurrar para lugares que não são confortáveis, quando ele pergunta: ‘O que é mais importante para você, sua vida ou sua clareza?’ E ele não nos deixa escapar.”[2] 

Nove Anos de Frente para a Parede

Um monge chinês chamado Huike (em japonês, Taiso Eka) veio ao Bodhidharma em um dia frio de inverno, enquanto Bodhidharma estava sentado, e implorou para se tornar seu aluno. Huike recusou-se a ir embora, apesar de Bodhidharma agora parecer como se não tomasse conhecimento dele. Por fim, Huike cortou seu braço na altura do cotovelo e o apresentou a Bodhidharma como oferenda. Impressionado com sua determinação, Bodhidharma perguntou o que buscava Huike.

“Por favor, pacifique minha mente”, ele implorou.

 Bodhidharma disse a Huike que lhe trouxesse sua mente e ele a pacificaria.

 Depois de uma longa pausa, Huike disse: “Não consigo encontrar minha mente”.

 “Veja”, ele disse, “eu já a pacifiquei.” Depois de ouvir isso, Huike se iluminou e se juntou a Bodhidharma como seu primeiro discípulo.[3]

Por favor, pacifique a minha mente
Bodhidharma e o braço de Huike

Bodhidharma entrega seu manto e sua tigela, além de uma cópia do sutra Lankavatara para Huike, reconhecendo-o como seu sucessor.

A Transmissão

 

Não-eu: Dharmas todos

vazios.

Morte, Vida, pequena

diferença.

Coração da transformação do mistério:

saber, e ver.

A verdade clama

onde a flecha atinge o alvo. [4]

O poema de Huike

Shikantaza é praticar ou efetivar o vazio. Embora você possa ter uma compreensão teórica por meio do seu pensamento, você deve compreender o vazio mediante sua experiência.” – Shunryu Suzuki[5]

Shikantaza

Quantos seres passam suas existências às margens de sua vida, sem nunca terem vivido com todo o seu ser todos os momentos da sua própria vida? A maioria, creio.” Taïkan Jyoji[6]

Às Margens da Existência

Muitos até gostam de receber o kyosaku, o monge vem e você pede, se inclina para frente, recebe, agradece, então dá para se mexer, não é? Nos nossos sesshins eu costumo ser parcimonioso, então passo bem pouco kyosaku, para o pessoal não ficar pedindo muito. Porque dá trabalho também, você tem que levantar, bater nos ombros de todo mundo que está tenso, e surgem também outras coisas, eventualmente angústia, às vezes as pessoas estão sentadas e começam a chorar, você pergunta porquê e ela não sabe. É só emoção sem saber de onde veio, só as lágrimas correndo. Por isso o rakusu pode ficar sujo de lágrimas de sangue, então ele pode ficar muito bom, muito precioso por causa disso.
Nós estávamos fazendo um pouco mais de zazens nos retiros, mas quando chega ao ponto de sofrimento excessivo, a dor não funciona mais. Um pouco de sofrimento é bom, para ficar aqui, ter que resolver isso. Mas depois de um certo ponto, a pessoa só pensa que quer que termine, que quer que acabe, e aí então esse pensamento ocupa toda a mente e não dá mais para sair. Então um pouco de sofrimento é bom, mas não demais.”
– Monge Genshō[7].

O Kyosaku

Este corpo não sou eu; não estou preso neste corpo, sou a vida sem limites, nunca nasci e nunca morri. Logo ali, o vasto oceano e o céu com muitas galáxias. Tudo se manifesta a partir da base da consciência. Desde os tempos sem início, eu sempre fui livre. Nascimento e morte são apenas uma porta pela qual entramos e saímos. Nascimento e morte são apenas um jogo de esconde-esconde. Então, sorria para mim, e pegue minha mão, e acene se despedindo. Amanhã nos encontraremos de novo ou antes mesmo. Sempre estaremos nos reencontrando na verdadeira fonte. Sempre nos reencontrando nas miríades de caminhos da vida.” Thich Nhat Hanh[8]

Quando soube da morte de Thich Nhat Hanh

 

Os seres humanos são estranhos. Embora pareçamos inteligentes, estamos simplesmente tateando na escuridão. Os seres humanos trabalham diligentemente apenas para evitar o tédio. Há muitas coisas que nos atraem neste mundo. Queremos fazer isso e aquilo. Mas uma vez que experimentamos ou obtemos essas coisas, descobrimos que não são nada importantes. Há pessoas que nunca descobrem seu verdadeiro caminho.” Kōdō Sawaki[9]

O Mestre sem Lar

A liberdade não nos é dada por ninguém; temos que cultivá-la nós mesmos. É uma prática diária… Ninguém pode impedi-lo de estar atento a cada passo que você dá, ou a cada inspiração e expiração…” Thich Nhat Hahn

Meditação Caminhando

“Seu corpo é como uma gota de orvalho na grama da manhã, sua vida é tão breve quanto um relâmpago. Momentânea e vã, ela é perdida em um instante.” – Dōgen Zenji

Gota de Orvalho

 

Podemos ouvir o professor com bastante reserva e não somos obrigados a aceitar nada. Uma relação mestre/discípulo, não é uma relação professor/aluno, ela é, no Zen, uma relação em que escolhemos alguém para ser nosso mestre na vida e essa escolha deve demorar, não deve ser apressada. Normalmente os alunos visitam vários lugares, ouvem diferentes pessoas até encontrar um local onde se sentem conectados, se sentem bem, sentem que aquele lugar fala ao seu coração, que aquele professor especificamente está falando ao seu coração.” – Monge Genshô

Mestre e Discípulo

Texto e ilustrações

Thomás Muryo 無量, professor de Teorias da Comunicação e jornalista.  Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Tradução das citações

Tamara Kakuji 覚慈, linguista aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen

 

[1] GENSHÔ. Zen e Bodhidharma. Acesso em: https://www.daissen.org.br/zen-e-bodhidharma/

[2] MARCHAJ, Konrad Ryushin. “Ok, Here’s the Deal”. Acesso em: https://www.lionsroar.com/ok-heres-the-deal/

[3] ATWOOD, Hal. Who Was Bodhidharma? Acesso em: https://www.lionsroar.com/who-was-bodhidharma-2/

[4] A Drifting Boat: An Anthology of Chinese Zen Poetry edited by Jerome P. Seaton & Dennis Maloney, White Pine Press, Fredonia, New York, 1994, p. 21

[5] SUZUKI, Shunryu. Nem sempre é assim. Editora Religare, 2003. p. 63.

[6] JYOJI, Taïkan. Itinéraire d’un maître zen venu d’Occident. Paperback. 1996.

[7]GENSHÔ, Monge. Um pouco de sofrimento. Acesso em: https://www.daissen.org.br/um-pouco-de-sofrimento/

[8] No Death, No Fear: Comforting Wisdom for Life. Paperback, 2003.

[9] ROSHI, Kosho Uchiyama. The Zen Teaching of Homeless Kodo. Wisdom Publications, 2014.

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