“A sala de exercícios em que se aprende a arte da espada tem, desde a antiguidade, este nome: lugar de despertar.
A arte do arco e flecha não consiste de forma alguma em perseguir um resultado externo com um arco e flechas, mas apenas em fazer algo em si mesmo.
Não teria eu então chegado ao ponto em que a influência do zen sobre o tiro com arco e flecha começava a se fazer sentir?
A descoberta, nas profundezas do ser, da essência sem fundo e sem forma flui de
uma meditação metodicamente dirigida nos caminhos do Zen”.
(Tradução livre)
Professor E. Herrigel, em “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”
Neste artigo, o primeiro de uma série sobre Zen Budismo e Artes Marciais, falaremos brevemente sobre o Budō, o caminho das artes marciais, e traçaremos possíveis considerações sobre a prática da arte marcial em relação à prática da religião Zen Budista, com o intuito de criar um espaço para que, em outros artigos, as mais variadas artes possam se mostrar pela luz do Dharma.
Nas filosofias orientais encontramos o conceito de dō, que significa “caminho”, com conotações de “escola” ou “filosofia”. Dō, utilizado neste contexto, encontra sua origem no termo chinês tao, o conceito central da filosofia taoísta que representa, basicamente falando, a ordem natural do universo a que seus praticantes procuravam se ater à para adquirir sabedoria. O encontramos no nome de muitas das artes marciais japonesas, como por exemplo: Aikidō, Judō, Iaidō, Kendō e etc.
O termo tem um significado filosófico especial para além das artes marciais. Falar de um dō é falar sobre um caminho, um estilo de vida, uma doutrina ou conjunto de práticas. Temos vários dō, como chádō, o caminho do chá, ou shodō, o caminho da caligrafia, e até mesmo o butsudō, o caminho de Buddha, que designa a prática e o estilo de vida budista. Falar em dō implica dedicação à uma disciplina, a uma forma de enxergar e interagir com a vida.
De maior importância para este artigo temos o Budō, que é compreendido como o termo guarda-chuva de todas as artes marciais japonesas, que significa “caminho marcial”, podendo ser interpretado como o caminho das artes marciais, ou o caminho da guerra. Há também o bushidō, o caminho do guerreiro, que faz referência ao código de ética e as virtudes do samurai, o tradicional guerreiro japonês, e hoje se encontra amplamente difundido em vários aspectos da cultura japonesa, como nas artes marciais e nos negócios, representando para alguns um estilo de vida.
Para traçar um caminho entre o Budō e o Butsudō contaremos com o apoio de Taisen Deshimaru, mestre Zen e discípulo de Kodo Sawaki. Tanto Deshimaru Sensei como Sawaki Sensei tinham um histórico nas artes marciais, e também na guerra, ambos atuando na segunda guerra mundial, o que trouxe para o ensinamento desta linhagem conceitos imbuídos pela filosofia do budō e do bushidō, o que vemos amplamente no livro “Zen e Artes Marciais” de Deshimaru.
Deshimaru Sensei considera a prática do Zen e as artes marciais altamente compatíveis, e seu mestre concorda: “Kodo Sawaki dizia que o Zen e as artes marciais têm o mesmo sabor e estão em unidade”.
Deshimaru Roshi continua:
“O Budō é o caminho do guerreiro: reúne todas as artes marciais japonesas. O Budō aprofundou diretamente a relação entre ética, religião e filosofia. A sua relação com o esporte é muito recente. Os textos antigos dedicados a ele dizem essencialmente respeito à cultura mental e à reflexão sobre a natureza do eu: Quem sou eu?
Em japonês, Dō significa o Caminho. Como praticar este Caminho? Por que método pode ser obtido? Não se trata apenas de aprender uma técnica, e muito menos de uma competição esportiva. O Budō inclui artes como o Kendō, Judō, Aikidō e Kyudō (tiro com arco), pois no Budō não se trata apenas de competição, mas também de encontrar paz e autocontrole.
Portanto, Dō é o Caminho, o caminho, o ensinamento para entender perfeitamente a natureza do próprio espírito e ser. Este é o caminho de Buda, também chamado Butsudô, que permite realmente descobrir a sua própria natureza original, acordar do sono do ego adormecido (o nosso eu
estreito), e atingir a maior e mais total das personalidades.”
(Tradução livre)
No zazen, a meditação sentada zen budista, harmonizamos corpo e mente com o objetivo final de alcançar o despertar total das ilusões, para o benefício de todos os seres. Na prática da arte marcial, no waka (técnica) e no kata (forma), o objetivo pode ser compreendido, também, como harmonizar corpo e mente.
Historicamente, conta-se, as artes marciais nasceram nos monastérios: foram desenvolvidas por monges errantes que sofriam ataques e precisavam se defender, mas sem o uso de armas, já que seus preceitos o proibiam de utilizá-las. No conto, Bodhidharma, o principal patriarca do Chan Budismo (Zen chinês), foi o que instaurou no templo Shaolin, através de compreensões do yoga indiano, técnicas de combate corpo a corpo, tanto para ajudar os monges a se defenderem, quanto para preparar seus corpos para a prática demandante da meditação sentada, após notar que os monásticos estavam muito enfraquecidos. É deste berço, acredita-se, que as várias artes marciais orientais se desenvolveram.
De acordo com os mestres dessas artes, treinar a técnica e evoluir no caminho marcial pode se converter em algo muito semelhante à prática budista: cortar como com uma espada, as ilusões, projeções e distorções pessoais e alcançar a “verdadeira força”, que não é a de conseguir derrotar fortes oponentes, mas a de tomar refúgio em uma “sabedoria imóvel”, sabedoria e domínio de corpo e mente. Como diz Deshimaru Roshi: “O método do caminho que almejava cortar as pessoas em dois, se transformou então em um método para cortar o próprio espírito”. Antigamente, os caminhos, na vida destes monges e dos guerreiros japoneses, entre a prática espiritual e a marcial, se cruzavam em uma interdisciplinaridade. Hoje, isso continua possível.
Ao compararmos os dois caminhos, o da arte marcial e o da prática zen budista, podemos traçar algumas outras afinidades, já que ambas compartilham de uma doutrina que é muito representativa da cultura japonesa, imbuída tanto pelo zen budismo como pelo caminho marcial. Como, por exemplo, a reverência pelo relacionamento entre mestre e discípulo, a rigorosidade e a constância do treino, a importância da respiração, do autoconhecimento e a compreensão de que o que fazemos, seja zazen ou kata (forma), devemos fazer como fins em si mesmos, colocando todo nosso esforço e energia, mas despreocupados com expectativas e resultados supérfluos: mushotoku, “sem meta nem espírito de proveito”.
Como diz o mestre Zen Kosho Uchiyama, também discípulo de Sawaki Roshi: “As pessoas querem que o Dharma de Buddha seja útil ou que satisfaça os seus desejos. Isso não é bom. O correto caminho de Buddha é praticar o Dharma de Buddha por si mesmo”. (Tradução livre). As pessoas costumam procurar artes marciais para aprender a lutar, se defender ou atacar. Da mesma forma que alguns procuram o budismo para se livrar do sofrimento, alcançar um estado elevado de consciência ou poder espiritual. Mas, tanto na arte marcial como no caminho budista, percebemos que nossos objetivos iniciais são fracos perante a profundidade da prática. Logo, ela se torna um modo de vida: uma forma de existir.
É claro, isto não quer dizer que não se deve se esforçar para evoluir na prática e na técnica. Pelo contrário, o esforço é necessário. Como diz Igarashi Roshi, sempre citado por Monge Genshô Sensei: “Com esforço não se consegue nada. Mas sem esforço é que não vamos a lugar nenhum”. Este é o paradoxo da prática, tanto da arte marcial quanto do Budismo.
Vale lembrar que o zazen também é uma técnica, uma forma, um kata, que praticamos com um objetivo: treinar nossas mentes. Deshimaru Roshi descreve perfeitamente: “Zen significa o esforço do homem que pratica meditação, zazen. Esforço para alcançar o domínio do pensamento sem discriminação, consciência para além de todas as categorias, abrangendo todas as expressões da linguagem. Esta dimensão pode ser alcançada pela prática do zazen e pelo Bushidō (Caminho do guerreiro, Budō) ”. Sentados em zazen, nós imitamos Buddha. Assim como fazendo o kata no treinamento das artes marciais, imitamos nosso mestre.
Compreendemos, é claro, que as artes marciais atualmente tomam um tom esportivo: podem ser apreciadas como esporte, atividade física saudável e, em alguns casos, profissão, sem necessariamente o envolvimento do espiritual. Porém, acredito que a história dessas, a forma em que trazem o espiritual em unidade com a experiência corpo-mente e as virtudes da disciplina, da constância e do respeito para a vida, lhe garantam um lugar permanente no coração do budismo japonês.
A partir deste breve artigo, abrimos as portas para que outros praticantes budistas das artes marciais possam trazer sua vivência sobre a profundidade dessas artes e dizer com suas palavras, como elas podem se relacionar com o caminho de Buddha.
Texto de Matheus Coutinho. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Referências:
Foto 1, taminator, kendo48.jpg, CC BY-NC-ND 2.0
Foto 2, Wilhelm Joys Andersen, Samurai, CC BY-SA 2.0
Foto 3, Uriel Soberanes, man doing karate on gym, licença Unsplash
Foto 4 Mokuso: la meditación del guerrero, https://www.judonoticias.com/mokuso-la-meditacion-del-guerrero/
Zen y Artes Marciales, Taisen Deshimaru
Opening The Hand of Thought, Kosho Uchiyama
Monge Genshô no Twitter Zen Daissen