Entrevista Monge Mushin – Daissen 20 Anos

Nesta edição tivemos o prazer em entrevistar o monge Mushin, recém ordenado na comunidade zen-budista Daissen Ji.  Conversamos sobre sua trajetória no Budismo, seu encontro com a comunidade Daissen e sua ordenação.

Ao longo desses 20 anos a Daissen Ji ajudou muitas pessoas a encontrarem e trilharem o caminho de Buda, sempre acolhendo a todos com muita amorosidade e gentileza. Em nosso bate-papo com Mushin san fica evidente a importância da sangha em sua jornada.

 

O senhor poderia contar sobre sua trajetória no Budismo, como começou, como encontrou o Budismo e daí por diante.

Monge: Eu sempre tive uma família muito católica e desde criança minha avó tinha oratório em casa. Uma família bem católica, tanto por parte de pai como por parte de mãe. Só que eu tentei ser católico, desde criança, por muito tempo, e na adolescência tem um período que a gente fica mais desligado, mas depois eu tentei entrar na religião de cabeça mesmo, tentei mergulhar. E aí eu li muito, eu li a Bíblia inteira, que é uma coisa que, sei lá, é o livro da religião, é uma base da religião e muita gente nem leu o livro inteiro.

Então uma das minhas ações foi essa: eu li a Bíblia, eu li biografias, eu li filosofia, eu tentava colocar aquelas ideias de uma forma racional dentro da minha mente, mas não era para mim. Eu li Santo Agostinho, as confissões, foi uma tentativa, eu estava tentando fazer com que aquilo entrasse dentro da minha razão, que aquilo fizesse sentido para mim. Mas eu não consegui, então em dado momento eu desisti.

Eu fui para o Espiritismo e também não consegui me convencer. Não que sejam religiões piores, não que não sejam um caminho válido, mas que para mim, não fazia sentido.  E aí eu fiquei um tempo sem religião, ateu e tentando viver minha vida normalmente. E quando eu fui para Florianópolis no ano de 2011, um amigo já tinha me falado: “Ah, tem um mestre budista lá que é muito legal!”. Ele me mostrou um vídeo dele no Youtube, tinha um vídeo ou dois do Sensei só, aí eu achei bem interessante, falei: “Nossa, que legal, acho que um dia eu vou lá ver como é que funciona isso”. E aí eu li alguns livros antes, que já me direcionaram e pensei: “Taí, isso é interessante, isso faz sentido”.

Em 2014 foi a primeira vez que eu fui praticar na sangha. Eu cheguei lá, fui recebido eu não lembro se Gymiô san estava lá, e a gente recebeu as primeiras instruções de zazen, aquilo fez muito sentido para mim. Ah, não foi Gymiô san, corrigindo. A gente foi primeiro numa quarta-feira que era o dia de iniciantes e era o Leo Kohô e a Kátia Shohô que estavam lá. Receberam a gente de uma forma muito acolhedora, a gente praticou zazen. Foi muito dura a primeira vez, mas foi algo que começou a fazer sentido para mim. E aí a gente começou a meditar desde aquele dia e estamos lá até hoje, eu e Fusô san.

Nesse primeiro encontro o senhor sentiu que era o caminho que o senhor queria seguir? E também percebeu que era a comunidade que o senhor queria fazer parte? 

Monge: Primeiramente eu queria aprender a meditar. Pelo que eu tinha lido, e o que realmente fez sentido para mim era o meu primeiro objetivo. Eu não tinha essa coisa de comunidade, eu não conseguia enxergar a importância da sangha. Tanto que a gente praticou por uns dois anos ou mais até pedir ao Sensei para fazermos os votos como leigo, costurar o rakusu, fazer os votos dos preceitos de leigos.

E foi uma cena bem marcante que eu me lembro até hoje, algumas vezes a gente tinha vontade “ah não, a gente não precisa vir aqui, a gente pode meditar em casa” e a gente tinha essa ideia assim. E eu lembro um dia, Gymiô san, que era praticante antigo, um dos fundadores, ele vinha todas as segundas-feiras. Ele não morava em Florianópolis, morava fora e todas as segundas-feiras ele vinha para abrir a sangha para que outras pessoas pudessem praticar. Estava frio e chovendo quando ele comentou um dia, mas despretensiosamente: “Ah não, da mesma forma que um dia teve alguém que se dispôs a oferecer um lugar de prática, eu venho como obrigação retribuir isso”.

Daí foi um tapa na cara. E aí eu percebi que não era sobre mim, que era muito além disso, que era coletivo, que a meditação não faz sentido se uma pessoa praticar sozinha. Desde esse dia eu vi que realmente eu estava sendo muito egoísta pensando só em mim, e eu me entreguei mais à sangha.

 Sobre esse caminho como praticante e agora também como monge, como o senhor fez essa transição, como o senhor teve esse ímpeto para seguir a carreira monástica na Daissen?

Monge: Primeiro a sangha começou realmente a se tornar minha família. A gente pegou um período em que o Sensei não estava presente na sangha, porque ele estava em treinamento no Japão e vinha praticar basicamente Gymiô san, às vezes vinha Shoshin san e Hakudô san. Então, sem o mestre normalmente tem uma esvaziada e a gente começou a criar laços até de amizade nesse momento: poucas pessoas, a gente reunido todas as segundas indo praticar e a gente vai criando laços, a gente vai se identificando, são pessoas que vão caminhando mais ou menos no mesmo caminho que a gente, muitas vezes nossas famílias mesmo não entendem aquilo que a gente está fazendo, qual o caminho que a gente está seguindo e aí a gente começa a ser visto como estranho.

Em contrapartida, a sangha é um lugar que a gente se sente acolhido, a gente se sente em casa, a gente sente uma relação de família mesmo. E foi assim para mim. E o caminho monástico, a pandemia teve um pouco de responsabilidade nisso também porque eu estava sempre esperando. Eu tinha já vontade de entregar totalmente minha vida para o Dharma, para o caminho monástico, para a sangha. Só que eu estava sempre esperando que as condições fossem mais favoráveis, que eu tivesse um trabalho melhor, que tivesse melhores condições financeiras, que eu estivesse estável em algum lugar.

Porque a gente já saiu de Florianópolis, foi para Belo Horizonte com essa possibilidade de ir para a Austrália e quando a gente estava quase conseguindo ali em 2020, já estava com passagem comprada, com visto, a dois dias da viagem, a gente não foi, pela pandemia, e tudo mudou. Até que Fusô san me disse: “Você ainda tem vontade?”. E eu disse: “É claro que eu tenho”. E ela me cutucou, ela me falou: “O que você está sempre esperando?”. Eu respondi: “É, realmente, a gente fica sempre esperando e a gente nunca vai ter as condições que a gente considera ideais”. E aí eu tomei coragem e fui falar com o Sensei. Assim, foi em março de 2021 que eu falei com o Sensei. E aí a gente foi conversando por quase um ano, fui falando das dificuldades, mostrando as pedras no caminho, se a gente realmente quer isso, e aí foi assim.

Ao longo desses anos seu papel dentro da comunidade foi mudando. Como foi isso para o senhor e também quais os trabalhos que o senhor faz hoje na Daissen?

Monge: Eu acredito que quando a gente entra de corpo e alma numa comunidade, a gente tem que se doar para que aquilo aconteça. Igual Gymiô san me ensinou há anos: “Eu venho aqui todas as segundas para que outras pessoas possam meditar”, e muitas vezes ele praticou sozinho, de não ir ninguém, de ele acender o incenso, acender a vela, sentar-se, tocar o sino, depois tocar o sino, tomar o chá e ir embora.

Na comunidade, eu percebi que algumas pessoas chegavam mais cedo, para limpar, e eu comecei a me sentir incomodado com aquilo: “Eu chego e já está tudo pronto, eu já vou meditar” e aí a gente começou a chegar mais cedo também, lá bem no início a gente começou a chegar mais cedo para ajudar a limpar, e isso se tornou uma prática comum. Às segundas-feiras era o dia que a gente chegava pelo menos uma hora mais cedo para ajudar com alguns trabalhos.

E nesse período a Daissen foi crescendo muito, então a gente começou a ter outras demandas. A gente teve o CED, o curso que a gente tem, o curso de ensino do Dharma, e eu entrei já desde essa primeira turma. O Sensei tinha pedido: “Faça essa parte de alongamento”, me deu essa responsabilidade. E aí eu tenho participado do CED desde o início. E com a pandemia veio também o Daissen Virtual.

O Daissen Virtual, na verdade, já existia há muito tempo com a Monja Sodô. Mas como a gente tinha sempre um lugar de prática presencial, a gente nem tinha se atentado para o Daissen Virtual, que poderia ser algo interessante. Então, quando veio a pandemia, a gente começou a ajudar também no Daissen Virtual e foi muito interessante porque foi muito bom para todo mundo ter uma sangha e mostrou para a gente também que é uma possibilidade. Mesmo estando em lugares espalhados pelo Brasil, a gente poderia sentar-se junto com o Sensei e escutar as palestras dele.

Foi uma oportunidade maravilhosa e com isso comecei a ajudar também, a gente já tinha essa postura de sempre estar disponível para a sangha. Não sei se foi Monja Sodô que perguntou: “O senhor poderia fazer um dia?” E eu falei: “É claro, sem problemas”. E aí a gente começou com a Daissen Virtual também.

E com esse crescimento foram surgindo outras demandas: o jornal Budismo Hoje que a gente auxilia também, a gente tem outros grupos de que eu estou até um pouco fora, estou com outras demandas então não estou conseguindo me dedicar como eu gostaria. A gente tem um projeto de livro de receitas veganas que está um pouco parado também. São muitos projetos acontecendo ao mesmo tempo, na medida do possível a gente sempre se dispõe a contribuir um pouquinho. Eu vejo que a Daissen é muita gente dando um pouquinho de si.  Várias pessoas dando uma gotinha até formar esse conjunto maravilhoso que é essa comunidade.

O senhor poderia deixar uma mensagem para os nossos leitores a respeito da nossa sangha? Desses 20 anos da sangha que é formada por todas essas pessoas e que nos acolhe tão amorosamente e sempre em frente levando o Dharma para todos aqueles que procuram.

Monge: A Daissen para mim foi e é uma família. Independentemente de onde eu esteja e para onde eu vá, eu me sinto muito conectado a essa força dessa grande família que está com tantas comunidades surgindo em vários lugares do Brasil. E eu acho que é isso, a gente tem coisas em comum, a gente tem um mestre que é uma pessoa muito séria, muito dedicada e isso dá força também para a comunidade.

Além disso, a gente tem outros Senseis, a gente tem Sensei Kômyô que é um grande mestre, que dá palestras maravilhosas, o Sensei Joken que é responsável pelo CED… Toda essa comunidade é muito bonita, eu sinto que realmente tem um Dharma vivo, um Dharma acontecendo, uma reconexão com tempos passados talvez onde a gente via o Dharma prosperando. Então eu só me alegro muito que tantas outras pessoas estejam entrando nessa família também e é isso, a gente continua praticando. É o que mais fez sentido na minha vida e eu acho que a prática tem feito sentido para outras pessoas também.

Entrevista realizada por Débora Muccillo. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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