Renúncia Traz Liberdade

 

Uma coisa que as pessoas em geral não têm muito conhecimento a respeito é a relação entre contentamento e frugalidade; frugalidade não, porque às vezes frugalidade tem um aspecto de raiva. As pessoas às vezes são frugais porque elas têm avareza, são muquiranas. As pessoas às vezes são frugais não por sabedoria, mas por apego. Mas contentamento, ser uma pessoa que se satisfaz com pouco, uma das consequências de ser uma pessoa que se satisfaz com pouco, além de você estar facilmente satisfeito, que já é um benefício em si, você não precisa de muito para estar satisfeito, você não precisa de muito para estar feliz, para estar contente. Contentamento. A pessoa que tem contentamento está contente.

Uma coisa que as pessoas não estão cientes, é que existe uma relação também com a liberdade. Quando você é uma pessoa facilmente satisfeita, que nem tem nos sutras, uma pessoa facilmente satisfeita, é mencionada essa qualidade. Buda elogiava essa qualidade. A pessoa experiencia maior liberdade do que antes. Porque agora ela pode ir basicamente para onde ela quiser, ela não tem muitas restrições, não tem muitas exigências. “Eu só posso participar dessa atividade se tiver isso, isso e isso e isso”. “Eu só posso dormir num quarto se ele tiver ar-condicionado, tem que ter isso, tem que ter aquilo, tem que ter aquilo outro”. “Só posso comer se a comida tiver assim, assim, assim, assado, não pode ser uma comida sem essas características”. “Só posso vestir a roupa se ela for a última roupa da última moda”. “Tem que estar elegante, tem que estar assim, tem que estar assado, senão não tenho coragem de sair na rua”. E também com relação às pessoas, como é que você espera que as pessoas sejam, o que é que você espera das pessoas.

Se você é uma pessoa facilmente satisfeita, você não tem muito problema com as pessoas ao seu redor. As pessoas têm maior liberdade perto de você, e aí se você estabelece um relacionamento de amizade com elas, elas continuam te ajudando, e a qualidade da forma como elas te ajudam melhora, não por você ter brigado com elas, por você ter exigido isso aquilo. Elas melhoram porque elas têm bem-querer por você, elas têm amizade por você.

As pessoas pensam por exemplo: “não, eu tenho que exigir que as pessoas me tratem assim, eu tenho que exigir que as pessoas façam isso, desse jeito, dessa forma, de maneira correta, assim, assim, assado”. E aí as pessoas fazem, mas por medo. Medo de tomar bronca, medo de você brigar com elas, medo de você expulsar elas, o que quer que seja.

Então é uma coisa curiosa, às vezes a gente conversa com outros monges, outros monges que são abades de mosteiros, muitos deles também relatam esse erro quando eles começam, quando eles recebem a função de líder do mosteiro. Então eles querem colocar uma regra, todo mundo tem que seguir essa regra, se alguém faz algo errado ele dá bronca naquela pessoa. E aí as pessoas começam a errar mais, mais e mais. As pessoas começam cometer mais erros, porque acontece elas estão tensas, elas estão o tempo todo tensas e preocupadas: “Será que eu vou levar bronca?”, elas acabam fazendo coisas erradas sem perceber e sem intenção de fazer. Às vezes, quando você simplesmente ensina o modo correto de fazer e dá espaço para as pessoas cometerem erros, você percebe que as pessoas cometem muito menos erros. As pessoas acham que a maneira para não cometerem erros é dar bronca nelas e ficar de olho e criticando elas o tempo todo para ficarem atentas e não cometerem erros. Depende do tipo de relacionamento que você estabelece, depende do local.

Se é um local que as pessoas já têm vontade de acertar, elas querem acertar, às vezes funciona melhor você dar espaço para elas cometerem erros, porque aí elas ficam relaxadas e tranquilas, elas então ficam mais eficientes. Às vezes também tem essa característica, quando você não tem tanta exigência com as pessoas, as pessoas ficam melhores ainda.

Mas nem sempre é assim. Se é um relacionamento é abusivo, as pessoas estão querendo levar vantagem de você, as pessoas querem levar o máximo possível dando o mínimo possível, quanto mais você relaxa, mais as pessoas te abusam. Mas se é um relacionamento de amizade, de bem-querer, então você pode relaxar que as pessoas naturalmente vão ter desejo de fazer melhor. Então se você tem contentamento com relação às pessoas, às vezes pelo contentamento você consegue coisas ainda melhores do que você conseguiria em vez de pedir ou exigir e coagir as pessoas.

Essa é uma coisa que se observa também com relação aos monges pedindo esmolas. Se você fica pedindo para as pessoas, “me dá isso, me dá aquilo, não tá boa o suficiente, eu quero comida assim, eu quero comida vegetariana, eu quero comida vegana, eu quero comida fresca, eu quero comida que tem essa, essa e essa característica”, a tendência é que as pessoas vão dar, vai ser um fardo para elas. Elas vão ficar “lá vem aquele monge, eu tenho que fazer um monte de coisa agora”. E a comida não sai tão boa.

Quando você não tem exigência alguma, fala “olha, a comida que você quiser, pode dar o que você quiser, não tem exigência nenhuma, zero exigência, ofereça o que você quiser, o que for possível”, aí a pessoa fica tranquila na hora de preparar a comida. O ato de preparar a comida não é um fardo, não é uma coisa pesarosa, tensa. E o resultado que você enxerga é que a comida está melhor ainda do que se você exigisse. Se você não exigir, a comida sai melhor ainda do que se você exigir. Então não é só o fato de você passar a experienciar bem-estar aonde quer que você vá, você tem liberdade e movimentação porque eu não tem exigência de que tipo de coisa tem que estar disponível no local onde vá. Qualquer local está bom. Não tem exigência nenhuma, aonde quer que vá está bom. Você consegue frequentar qualquer lugar. E também às vezes você consegue coisas melhores do que você conseguiria exigindo.

Se você estabelecer um relacionamento de amizade com o ambiente ao redor, você percebe que, na verdade, consegue mais do que você conseguiria exigindo e brigando e oprimindo as pessoas. Mas a questão da liberdade não é só o fato de você, por exemplo, comer em qualquer restaurante. Não tem exigência com relação ao nível. Você pode ter alguma exigência no que diz respeito à sua saúde. Mas entende assim: a comida tem que estar boa a esse ponto. Se não estiver boa a esse ponto, não come. E aí a quantidade de opções que você tem vai diminuindo. Mas se você tiver uma exigência bastante básica, por exemplo, tem que estar limpo, não perfeitamente limpo, mas limpo o suficiente, aí você tem muito mais opções de onde você pode frequentar. Mas também afeta o seu estilo de vida.

Se você percebe “não, eu consigo estar bem com pouco”, então a exigência de dinheiro diminui bastante. O quanto de dinheiro você precisa para estar bem diminui bastante. E aí acontece, às vezes nem troca de emprego, às vezes você continua no mesmo emprego, agora não tem pressão. Você tem essa tranquilidade “se eu precisar largar esse emprego, tranquilo”. Você não está mais com a corda no pescoço. Mesmo se eu trocar de emprego, se eu for demitido, tudo bem. Eu sei que vou estar bem mesmo com um emprego pior do que esse. Com um salário pior do que esse eu ainda vou estar bem. Então você nem precisa sair do emprego, agora não está mais com a faca no pescoço. Você vai trabalhar tranquilo, relaxado. E aí mais uma vez, às vezes você vai trabalhar tranquilo e relaxado, você trabalha melhor ainda, você fica mais eficiente, as pessoas gostam mais ainda de você. E aí você ganha uma promoção. Quando finalmente largar a preocupação, vem ainda mais. Às vezes acontece isso.

Mas também, na mesma linha, você pode achar: “Quer saber uma coisa, vou largar esse emprego. Não vale a pena, o salário que eles pagam não vale o estresse, eu não preciso desse salário”. Então se quantificar a quantidade de estresse e a quantidade de benefício, não vale a pena. Aí você larga e arruma um emprego que não pague tão bem, mas que não tenha tanto estresse, que seja mais satisfatório, que nutra em vez de sugar as suas energias, sugar o seu bem-estar. Ele nutre o seu bem-estar, nutre o seu nível de felicidade. Você pode arrumar um emprego que te deixe feliz, vai pagar menos, mas você fica mais satisfeito fazendo aquele trabalho e aí seu nível de bem-estar aumenta.

Às vezes você pode mudar de cidade, às vezes está morando numa cidade específica por causa de emprego, o emprego tem a ver com dinheiro e dinheiro tem a ver com prazeres. Então, se não tem tanta necessidade de prazeres, não tem tanta necessidade de dinheiro. Se não tem tanta necessidade de dinheiro, não é obrigado a morar ali. Pode ir para um local mais espaçoso, mais tranquilo, menos trânsito, menos violência, clima mais agradável, acesso à natureza. Então você tem liberdade de movimentação.

Ainda mais hoje em dia com a internet, porque antigamente, quando eu era mais jovem, o que estou falando agora não era tão verdade. Você podia sempre argumentar “mas eu não vou ter acesso à cultura, eu não vou te acesso à informação, a livros a música, a filmes”. Imagine antigamente: tinha que ter uma locadora de vídeo para se ter acesso a um vídeo, ainda assim se quisesse acessar um filme de qualidade, um filme de arte, tinha que ir a uma locadora específica. Com certeza não teria uma locadora numa cidade pequena nem média, só em cidade grande, em metrópoles. Na Av. Paulista tinham algumas, em São Paulo inteira devia ter duas ou três no máximo.

Mas hoje em dia tem internet. Se você andar ao redor do mosteiro, tem umas casas aí atrás, isso é aqui é perfeito, se for aluguel, o aluguel é barato, tem eletricidade, tem conforto, tem acesso a internet e fibra óptica. O que você vai querer na cidade? Fazer o que na cidade grande, se você conseguir trabalhar em casa ainda por cima, nossa senhora. É muito mais eficiente em termos de custos, você tem melhor qualidade de vida. Então, às vezes vale muito a pena. Mas aí você vai ter que abrir mão de todos os prazeres extras. Eu quero ir ao restaurante japonês, eu quero ir ao show de não sei quem, eu quero ir ao teatro não sei aonde, eu quero ir ao boteco da moda.

Então, se você tem esse tipo de desejo por estímulos sensoriais, as suas possibilidades diminuem, você não tem muita liberdade de movimentação. Suas escolhas estão limitadas a certos ambientes. Isso também tem um pouco a ver. Você pode observar isso, pelo menos eu posso observar, eu não sei se vocês conseguem observar isso, mas a gente que vira monge observa isso. Os monges seguem centenas, centenas de regras de conduta e aí uma pessoa observando pode pensar “puxa, você não tem liberdade de fazer as coisas, você não tem liberdade. Você tem que seguir essas regras todas”.

Mas eu já olho ao contrário, não na verdade o problema que acontece é que suas regras não são declaradas. As minhas regras são declaradas, mas estas regras todas se aplicam. Todas as regras de conduta que os monges seguem tem sempre um princípio espiritual por trás delas, como frugalidade, respeito, humildade e honestidade. São todos princípios espirituais que eu já ia seguir isso, quer tivesse regra ou não. As regras, na verdade, só aumentam ainda mais, potencializam ainda mais a prática desses princípios espirituais. São princípios espirituais que são bons, independentemente de haver regras de conduta ou não. Não é um sacrifício tão grande para uma pessoa que tem esse interesse. Se é esse seu interesse na vida, não é um sacrifício muito grande, pelo contrário.

Agora quando eu olho a vida de algumas pessoas, das pessoas que vêm conversar comigo às vezes, você vê que vocês é que tem um monte de regras para seguir. Até na hora de oferecer a comida, às vezes os monges vão recolher comida como esmola, e você tem uma tigela e a pessoa coloca comida na tigela. E na hora de colocar salada “não, não pode colocar aqui” “porque não?” “ah, vai ficar murcha a folha”. Eu não estou preocupado se a folha de alface vai ficar murcha ou não. Isso não é um assunto que ocupa minha mente, nunca. Nunca isso ocupa minha mente, a folha de alface. Já as pessoas têm essa regra “não, não pode colocar porque murcha a folha de alface”, é uma regra não declarada. “O café está frio”, pronto, não pode mais beber o café, está frio, joga fora. Não pode beber esse café, é proibido. Vão morrer se beber esse café, que parece envenenado. As pessoas têm tanto apego que virou ritual: café é um negócio que virou um ritual para a pessoa. Acontece várias vezes: eu tomo café para ajudar um pouco na digestão também, aí eu falo “tem um resto de café” “ah, não, não, o café está morno” “tudo bem, eu só quero tomar para ajudar um pouco na digestão” “não, não pode, eu vou fazer um café novo para você” e eu só queria um café, uma coisa tão simples…

Mas as pessoas têm regras que elas não conseguem sair daquele labirinto de regras que elas têm na cabeça. Elas nem param para perceber que isso é uma regra. Então tem todo tipo de coisa, com relação à roupa, comida, as pessoas têm regra para tudo. Só que são regras não declaradas, quem dita essas regras são os desejos. São os desejos e as aversões. Você vive um estilo de vida que reforça aumenta, exacerba, deixa pior ainda, aumenta ainda mais os desejos e as aversões, você tem a ilusão de que você tem liberdade, na verdade você está aumentando ainda mais a sua prisão. Mais regras a serem seguidas, mais deveres a cumprir. Mais coisas proibidas para fazer.

Enquanto tiver ego envolvido não há fim para isso. Não pense que chega num ponto que “ok agora parou”. Não para, às vezes você vê essas notícias dos políticos roubando dinheiro, então o cara tem uma carreira já de roubar dinheiro: dez milhões, vinte milhões, cinquenta milhões… Você imagina: há dez anos o cara roubou cinquenta milhões, se ele tivesse parado com cinquenta ele estaria livre, ele ia para casa com cinquenta milhões de reais, ele ia ser milionário para o resto da vida. O cara não consegue parar, ele continua roubando até ser preso. Se você somar tudo deu quanto? Duzentos e setenta milhões. Não dava para parar em duzentos? Se parasse em duzentos sairia livre. Não consegue, quando o ego está envolvido a pessoa vira escrava, ela não tem limite, não existe isso.

Aí você investiga um pouco mais a vida da pessoa e descobre que ela é alcoólatra, usa drogas, ela é uma pessoa com todo o tipo de disfunção sexual, todo os sintomas de ego estão presentes. Então você pensa: não é uma opção, a pessoa vira escrava. Ele vai falar “eu tenho liberdade total, esse dinheiro todo eu posso fazer o que eu quiser”. Não pode não, só pode fazer o que o ego manda. O que o desejo, a aversão, a vaidade e a ganância mandam. Não consegue fazer o que você quiser, você é o maior escravo de todos a ponto do ridículo. A pessoa não consegue parar com duzentos milhões de reais que ela conseguiu de graça. Não consegue parar, tem que roubar mais dez. Vai roubando até ir para a cadeia, até ser humilhada publicamente, sair no jornal. É uma coisa tão fácil ela fazer e não consegue fazer. Não consegue.

O Buda nunca explicou exatamente o que é a iluminação, nirvana, ele não explicava, as pessoas insistiam e perguntavam e ele não respondia. A única coisa que ele fazia com relação a isso, ele qualificava, ele dava exemplos, usava adjetivos que passavam uma ideia do que era nirvana, do que é nirvana, e um dos adjetivos mais comuns vimutti, liberdade. Liberdade suprema, vimutti. Mesmo a ideia de liberdade que as pessoas têm não está bem alinhada com o Dharma.

Uma vez eu dei uma palestra, não lembro mais o conteúdo, mas o título que eu coloquei era “mesmo a bondade mundana aponta para o lado errado”. Também nos conceitos bons, que a gente considera como bons como liberdade, se você for investigar o que você entende como liberdade, é uma liberdade que na verdade joga as pessoas de volta na prisão do samsara. O que as pessoas entendem como compaixão é bem esquisito às vezes. O que as pessoas entendem como liberdade vai no sentido oposto do que os arahants, do que os budas diziam. Mesmo esses conceitos, essas coisas que são entendidas como boas qualidades às vezes tem que estar atento e olhar de novo “espera, o que você está querendo dizer com isso?” Até o que nós estamos entendendo aqui como liberdade, como bondade. Também conceitos que às vezes as pessoas entendem como ruim é bom olhar de novo.

Quando a gente fala em humildade, algumas pessoas veem uma conotação negativa nisso. Quando a gente fala em disciplina, algumas pessoas enxergam uma conotação negativa nisso. Quando você fala em renúncia, em abrir mão, em contentamento, muitas pessoas criticam isso, essas qualidades são dignas de crítica. Elas acham que isso é ruim, tem que querer mais. Tem que lutar e querer mais. Se olhar da perspectiva do que a pessoa está dizendo, você pode até mais ou menos concordar ou não com ela. Também quando você olha como é que o Buda contextualizava contentamento, você também pode concordar mais ou menos com isso. Isso tem que ter um contexto correto.

Buda também não ensinava as pessoas a ter contentamento com coisas ruins. Com más qualidades mentais. Não esteja satisfeito em ser uma pessoa ruim. Buda ensinava as pessoas a ter vergonha, medo de fazer coisas ruins, ter vergonha de fazer coisas ruins. Então não é que você está contente em estar uma pessoa ruim, uma pessoa baixa, uma pessoa desonesta. Você tem que primeiro estabelecer a sua mente no caminho correto, e aí sim desenvolver a qualidade de contentamento. Contentamento requer uma fundação. Por isso que a gente sempre fala, sila é a base, a conduta moral é a base, primeiro você corrige seu comportamento, você estabelece uma linha de comportamento correta baseada em princípio espirituais, princípios da humildade, do respeito, do querer, da honestidade. Você cria uma fundação de algo saudável. E tendo estabelecido bem essa fundação, aí sim você pode ter firmeza na ideia do contentamento. Aí sim isso vira uma coisa realmente correta, tem que ter um contexto. Então, estou falando aqui em termos de que contentamento significa a não queimação por prazeres sensuais, a não queimação por prazeres sexuais. A não aversão também baseada em prazeres sensuais. Se você tem desejo por um estímulo, você automaticamente desenvolveu aversão a tudo aquilo que não é aquele estímulo. No momento que eu falar eu quero o sorvete x, então eu não quero nenhuma outra coisa, as outras coisas eu não quero mais. Então eu quero isso. Junto com todos os desejos vem uma aversão. Se você tem uma pessoa que tem um hábito constante de desejos, então você com certeza é uma pessoa que tem um hábito constante de aversão, de insatisfação, de não satisfação. Então a sua mente é muito facilmente irritada. É muito fácil surgir uma situação que não era aquilo que você queria. E é pior do que não ser aquilo que você queria, é ser justamente aquilo que você não quer. É o oposto, é repulsiva aquela situação. Porque às vezes a coisa não é o que eu queria, mas também não é uma coisa repulsiva. Então a pessoa não tem Coca-Cola, tem só guaraná. “Ok, eu queria Coca-Cola, mas eu não odeio guaraná”. Então está bom, eu tomo guaraná.  Agora não tem Coca-Cola, só tem tubaína, acho que o pessoal nem sabe o que é tubaína hoje em dia, só o pessoal da minha geração deve lembrar. Tem tubaína “ah que nojo, eu não quero isso em hipótese nenhuma, leva isso embora daqui eu não quero isso de jeito nenhum”. E você fica com raiva e fala “não tem nada pra eu beber, vou ter que comer sem beber nada porque não tem nada a meu nível, só tem tubaína ou groselha ou Crush”. E aí, caramba, fiquei com raiva, agora vou ter que comer sem nada para beber, é desagradável, então a pessoa fica com raiva. Tem gente hoje em dia que não bebe água, não sei se no Brasil tem isso, mas o pessoal que mora nos Estados Unidos estava me contando isso. Tem gente que não bebe água, tem aversão à água, o cara só bebe Coca-Cola. O cara não consegue, ele sente nojo de beber água. A distorção chega a tanto que chega a esse ponto. A coisa está ficando cada vez pior.

Fique atento, às vezes pare para se questionar um pouco.  Porque as pessoas têm desejo de bem-estar, elas querem felicidade. Então você busca bem-estar procurando mais recursos, mais conforto, uma situação mais agradável. Mas às vezes você tem que olhar para dentro de si mesmo. Quanto eu consigo fazer aqui dentro que poderia gerar bem-estar? Sem ter todo esse fardo envolvendo o mundo material, envolvendo as demais pessoas, porque as demais pessoas são difíceis de controlar. Então eu quero bem-estar, eu quero que as pessoas me tratem assim, eu quero que elas falem dessa maneira, eu quero que elas se comportem dessa maneira. É difícil você conseguir que as pessoas ajam da maneira que você deseja, às vezes é bom se perguntar: “O que é que eu consigo fazer que não depende dos outros, não depende do que os outros dizem ou fazem? Que não depende tanto de dinheiro ou prazeres, sensuais, sensoriais?” Você pode perceber que existem coisas que você pode fazer aqui e agora, consigo mesmo. Você pode treinar a sua mente a ter contentamento. Pode treinar a sua mente para estar satisfeita aqui e agora.

Um dos melhores exercícios para fazer isso é praticar meditação. Um dos grandes segredos da meditação é o contentamento. Você coloca a mente na respiração e fica satisfeito só com a respiração. Não tente entrar em samadhi, não tente alcançar a iluminação, não tente cessar os pensamentos, não tente fazer as distrações sumirem. Você coloca a mente na respiração e só isso. Aí você tem que ter firmeza nesse contentamento. Sempre que a mente tentar escapar “eu quero” “não, você não quer nada, pode ficar aqui mesmo, relaxa, fica aqui mesmo”. Desenvolva uma atitude de contentamento, assim você, fica mais fácil, porque a mente busca distrações porque ela quer bem-estar. Se você conseguir sentir bem-estar na respiração, as distrações diminuem bastante. Fica bem mais fácil manter a mente focada na respiração. É uma das coisas que eu percebia bastante em termos de praticar meditação, desconforto, a mente está acostumada aos pensamentos, se você é uma pessoa que pensa freneticamente, como é o caso de oitenta por cento das pessoas hoje em dia, o que acontece é que a mente se acostuma àquele ritmo, tem um certo som, tem ritmo os pensamentos. As pessoas pensam em frase, então a língua portuguesa tem um ritmo, a língua tem outro ritmo, a língua tailandesa tem outro ritmo, então a mente fica viciada nesse ritmo, nessas frases. É como se fosse uma música que se precisa ouvir constantemente.

Quando você vai colocar atenção na respiração e tentar relaxar e apaziguar os pensamentos, relaxar a mente, até só o contato com a respiração já é aversivo para a maioria das pessoas porque não é o mesmo ritmo, é um ritmo lento, inspira, expira, inspira, expira, não tem variação é um ritmo monótono. É um ritmo constante, não tem variação, não tem o mesmo ritmo rápido das frases das palavras, então as pessoas ficam com aversão à respiração. Um bom truque para conseguir concentrar melhor a mente é aplicar metta, é aplicar bem querer à respiração. Muitas pessoas conseguem progredir com isso, elas aplicam bem-querer à respiração, uma atitude de amizade, uma atitude de amor pela respiração e isso apazigua essa aversão que eu acabei de mencionar. Aí fica mais fácil, a mente não foge tanto para distrações, ela encontra contentamento em estar observando, experienciando, a respiração. Então fica bem mais fácil meditar quando é assim. Então é uma coisa que é tão útil, no dia a-a-dia, no bem-estar do dia a dia, em abrir, ganhar liberdade, movimentação dentro da sua vida, como também está diretamente conectado ao caminho que leva à iluminação.

Voltando ao assunto anterior, as regras monásticas que os monges seguem também são assim. É um treinamento de qualidade, mas se você observar, essas qualidades estão diretamente relacionadas às práticas que levam a iluminação, então o Dharma é algo que leva à iluminação, o propósito do Dharma é isso. O propósito do Dharma não é autoajuda, ou melhorar a sociedade, resolver os problemas da injustiça social, o propósito do Dharma é levar as pessoas à iluminação. Coincidentemente o caminho para a iluminação passa pela bondade, aquilo que as pessoas hoje em dia entendem mais ou menos como bondade, então não há contradição entre bondade mundana, bondade assim no nível mais grosseiro e o caminho para a iluminação. Até um certo ponto. Chega um ponto em que pode ser que haja contradição sim. Dependendo do ponto de vista das pessoas então pode ser que haja.

Um dos paramitas que o bodhisattva desenvolve é a perfeição, antes de alcançar a iluminação é o paramita da renúncia. É dito que ele renuncia a tudo até ao próprio filho. Na última vida antes de alcançar a perfeição da capacidade da caridade, da doação, ele dá o filho de presente que é a coisa que as pessoas têm mais apego. O que as pessoas têm mais apego no mundo é o próprio filho, é a própria família. Então aí para alcançar a perfeição da caridade ele doa a própria família, ele dá de presente para uma outra pessoa. Algumas pessoas podem julgar isso como falta de bondade, falta de amor, falta disso, falta daquilo, mas se enxergar o quadro maior do que é que ele está construindo, você enxerga de que forma isso é benéfico, onde é que isso se encaixa no quadro maior que está sendo construído do propósito maior que ele tem em mente, que ele tem como objetivo.

Concluindo, só queria chamar atenção para esse fato: existem certas coisas que, ao contrário do que diz o senso comum, a noção normal das pessoas, tem certas qualidades que levam à liberdade: a renúncia, o contentamento, a frugalidade. São coisas que, na verdade, podem aumentar ainda mais a sua qualidade de vida. As pessoas acham que isso leva a piorar a qualidade de vida, porque quem decide o que é boa ou má qualidade de vida são empresas, então contentamento não pode ser boa qualidade de vida, tem que ser o contrário: desejar e obter é que leva à boa qualidade de vida porque elas vendem coisas. Assim sendo, depende para quem você está perguntando o que elas vão dizer pode ser um pouco diferente. Portanto, é bom refletir a respeito dessas coisas.

 

Palestra de Ajahn Mudito. Monge da Tradição da Floresta. Budismo Theravada. Abade do Mosteiro Budista Sudhavāri, em São Lourenço, Brasil.

 

Transcrição realizada por Estela Ikezire. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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