Quando o Apego Se Disfarça de Amor

 

Um dos aspectos que sempre me fascinou no Budismo é a importância central atribuída ao sofrimento nos ensinamentos de Buda. Se pensarmos nos passos do Nobre Caminho Óctuplo, nos preceitos ou em quaisquer práticas ou conjuntos de ensinamentos, sempre buscaremos de alguma forma evitar o sofrimento para os outros e para nós mesmos. Sabemos que a insatisfação (dukkha) é uma das marcas da existência, e que a compreensão de que a vida é intrinsecamente insatisfatória e sujeita a sofrimento constitui por si só a Primeira Nobre Verdade, de forma que sempre esbarraremos com o sofrimento em diversos momento da vida. A libertação do sofrimento é por si só o objetivo último da busca por um caminho espiritual.

O apego a uma permanência, que é impossível, constitui-se numa das principais causas desse sofrimento intrínseco. Seja o apego a bens, posses materiais, títulos, pessoas amadas, ou a qualquer fenômeno nesse mundo. E mesmo assim, insistimos em nos apegar de forma irresistível e incurável até nos momentos mais complexos e desafiadores de nossa existência. Na Segunda Nobre Verdade, apego e desejo são invariavelmente considerados como a causa principal de nosso sofrimento ou insatisfação.

O estudo do Dharma e essa compreensão das Nobres Verdades me fizeram inevitavelmente me lembrar dos muitos anos em que trabalhei com pacientes que se encontravam no final de suas vidas nas diversas UTIs em que atuei como médico intensivista em São Paulo.  Preciso deixar claro que não me refiro aqui a pacientes vítimas de acidentes ou doenças agudas como casos graves de COVID-19, ou pacientes que naquele mesmo dia acordaram normalmente em suas casas, mas que 6 horas depois encontravam-se no fio da navalha entre a vida e a morte. Embora esses mesmos casos também sejam um grande aprendizado no que diz respeito a impermanência, esse texto abordará mais especificamente o apego e os cuidados de fim de vida aos pacientes que estão no processo de morrer. E também não falarei a respeito de assuntos polêmicos como eutanásia, suicídio assistido ou desligamento de aparelhos que mantem a vida artificialmente. A discussão é mais simples. O ponto aqui é a morte comum mesmo. Morte morrida.

O que sempre me causou espanto e até mesmo um pouco de tristeza foi cuidar de pacientes com doenças terminais, sejam os mais diversos tipos de câncer, ou as insuficiências cardíaca, respiratória ou renal em fases avançadas, ou ainda doenças degenerativas como as demências, mas cujos familiares e os seus próprios médicos jamais haviam conversado com eles, os pacientes, sobre o fim da vida, e sobre a morte. Ou como e onde ela deveria ocorrer. Pacientes com cânceres metastáticos avançados, com o organismo completamente tomado por diversos tumores, já sem opções de tratamento curativo, sendo submetidos a tratamentos invasivos, muitas vezes penosos e dolorosos, como a instalação de cateteres, máquinas de hemodiálise ou ventiladores artificiais, apenas para “viver” por mais uma ou duas semanas se tanto. Mas a que custo e por quê? Para que?

Ao invés de estarem junto de seus filhos, esposas, maridos, irmãos no conforto de suas casas, no seu ambiente mais acolhedor e afetuoso, esses pacientes muitas vezes estarão na frieza de um leito de UTI, sendo cuidados por bons profissionais do ponto de vista técnico, mas que muitas vezes estarão discutindo o episódio passado do Big Brother Brasil ou a final da Copa Libertadores da América, enquanto eles os pacientes se despedem desse mundo. E isso é muito mais frequente do que imaginamos. E é bem triste.

Por várias vezes, presenciei em diversos momentos aquele olhar do próprio paciente, como que pedindo paz. Pedindo que o deixasse finalmente descansar daquilo tudo. O paciente havia compreendido que todo aquele sofrimento não fazia mais sentido. Isso quando ele não estava suficientemente consciente para falar abertamente isso a equipe médica. Nesses casos, o paciente de alguma forma sabe que a morte está próxima, e na imensa maioria dos casos, o semblante é de serenidade, tranquilidade. Como se ele soubesse que por um momento deixará de ser onda, e retornará a fazer parte do oceano, até que os ventos formem uma nova onda.

Mas na nossa cultura latino-americana de forte influência cristã, falar sobre a morte é um grande tabu. As pessoas preferem temer profundamente a morte a falar sobre ela, nossa única certeza nessa vida. Como se falar sobre a morte pudesse de alguma forma atraí-la. E mesmo nesse cenário de um paciente hospitalizado, as pessoas se apegam aos santos, divindades e a sua fé e não permitem ou tem grande resistência em iniciar uma conversa sobre o morrer.

Então nesses casos muitas vezes os familiares trazem seus remorsos, complexos de culpa, emoções não resolvidas para a situação, e confundem o amor ao seu ente querido com um apego imenso. E esse apego acaba por impedir que o paciente tenha uma morte digna, serena e cheia de amor e compaixão. Porque nesses casos, esses familiares tem um medo tão intenso da morte iminente, que acabam por tentar toda a sorte de tratamentos em sua maioria fúteis que acabam por retardar o inexorável as custas de uma grande carga de sofrimento adicional ao principal interessado em todo o processo, mas que muitas vezes já nem mesmo se encontra consciente nesse momento: o paciente que está morrendo.

Felizmente, nos últimos anos temos já muito bem definidos e estabelecidos os conceitos de Ortotanásia e Distanásia, além de diversas equipes multidisciplinares de cuidados paliativos, que visam buscar conforto ao paciente e evitar o sofrimento adicional e desnecessário.

A ortotanásia é o não-investimento de ações obstinadas, e mesmo fúteis, que visam postergar a morte de um indivíduo cuja doença de base insiste em avançar acarretando a falência progressiva das funções vitais. Na medida em que recursos terapêuticos não conseguem mais restaurar a saúde, as tentativas técnicas tornam-se uma futilidade ao intensificarem esforços para manter a vida. Trata-se, portanto, de um conceito relacionado aos cuidados paliativos, ou seja, cuidados dispensados à pessoa cuja doença não tem possibilidades de cura. Orto vem do grego Orthos, de correção, retidão. Então Ortotanásia, a morte correta, com retidão, como deveria ser.

No entanto, a medicina hipocrática deve ter como intuito não somente a cura, mas também o alívio do sofrimento. Exatamente por isso, a busca pelo prolongamento da vida em pacientes que não apresentam mais chances de cura, sem a preocupação com a qualidade de vida, constitui uma futilidade e esse prolongamento exagerado e desproporcional é denominado distanásia, tendo como consequência a morte prolongada, lenta, e acompanhada de sofrimento físico e emocional, dor e agonia, sendo sua prática proibida pelo Código de Ética Médica (CEM). Aqui o prefixo Dis, de distanásia, tem origem grega e significa dificuldade. Morte difícil. Morte como não deveria ser.

Então, quando nos deparamos com essa situação de um ente querido acometido por uma doença grave, incurável e que cause sofrimento a ele, precisamos entender que o amor muitas vezes não é querer “salvar a vida” que já não pode mais ser salva, mas simplesmente evitar sofrimento adicional através do desapego, do deixar ir e do amor verdadeiro, colocando sobretudo o bem-estar e a vontade do paciente em primeiro lugar.

 

Texto de Marcus Vinicius Costa. Médico pneumologista e intensivista. Praticante da Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referência Bibliográficas:

Borsoi, A. L., Tomielo, F. L., & Bonamigo, E. L. (2018). Distanásia: ampliar a vida ou adiar a morte?. Anais De Medicina, (1), 45–46

Reiriz et al., 2006; Pessini, Bertachini, 2004

 

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