Imortalidade

 

Desde cedo, na aurora de nossas vidas, quando surge-nos o primeiro lampejo de que os nossos familiares, amigos e bichinhos de estimação morrem, inclusive, nós mesmos, procuramos deixar isso obliterado em nossas mentes e corações, numa vã tentativa de postergar a morte certa; para isso, criamos inumeráveis conjecturas, tentando obter a imortalidade com um paraíso, no qual estaremos sob a égide da perfeição, onde a estabilidade e calma serão inexoráveis, ou até mesmo uma alma infinita que logrará êxito após a morte e reencarnará em novos corpos.

Porém, no Budismo, a concepção da imortalidade do “eu” está intrinsecamente relacionada a uma visão limitada da vida, oriunda do apego. A ideia    da imortalidade é a própria negação da vida. Nossa manifestação kármica é como a  famigerada símile dos redemoinhos que surgem no rio da vida, formações temporárias que, aparentemente, são distintas e separadas, mas que fazem parte do     próprio rio da vida. À medida em que vamos esmorecendo, os redemoinhos enfraquecidos vão entrando no fluxo maior, e assim, saem de sua particularidade e descambam de uma só vez no rio, nos unindo indissociavelmente em suas profundezas, como explica Charlotte Joko Beck:

“Somos bem parecidos a redemoinhos no rio da vida . Em seu fluxo, o rio ou  riacho encontra pedras, galhos ou irregularidades de leito que levam ao aparecimento espontâneo de redemoinhos aqui e a li. A água que passa por esses pontos rapidamente os atravessa e se reintegra ao rio, podendo mais adiante entrar em outro redemoinho e prosseguir depois. Embora por curtos períodos ela pareça distinta, um evento separado, a água do redemoinho é apenas o próprio rio. A estabilidade do redemoinho é temporária […] e aquele torvelinho é desfeito e toma a entrar no fluxo maior… “

JOKO BECK, 1994, p. 8

 

Mas tendemos complicar isso, por quê? Uma das formas mais elementares para compreender tal questionamento é analisando a nossa incessante busca nas realizações de empreendimentos enquanto estamos vivos. Isso configura-se na necessidade de deixar a nossa “marca” na posteridade, numa incessante busca de extensão do nosso eu evanescente. Essa temática percorre épocas e pode ser encontrada na literatura mais longínqua, como no poema épico “A Epopéia de Gilgamesh”, uma das primeiras obras literárias mundiais, compilada por 12 tábuas de argila, escrita em meados de 2.000 a.C, encontradas na Mesopotâmia, narrando a vida de Gilgamesh, o rei de Uruk, que cometia uma série de arbitrariedades no seu reinado.

Para combater esse implacável rei, os deuses enviaram Enkidu, um semideus feito do barro, para combatê-lo, e ensiná-lo a ter humildade ante o seu povo; todavia, após uma grande batalha entre ambos, surge uma amizade profunda  e admiração recíproca. Então, resolvem partir em uma jornada, enfrentando deuses e monstros, o que acaba causando a morte de Enkidu. A partir daí, tal infortúnio provoca questionamentos a Gilgamesh, fazendo com que mude a sua postura e decida ir à procura da imortalidade, para não lidar mais com o sofrimento.

Nesse itinerário conhece um homem que, a mando dos deuses, criou uma arca, colocando todos os animais nela, para sobreviverem a um grande dilúvio, sendo assim, recompensado com a imortalidade. Gilgamesh indaga a esse indivíduo, de nome Utnapishtim, como fazer para obter a vida eterna. Sendo assim, Utnapishtim, resolve impor-lhe uma série de desafios aos quais Gilgamesh precisa superar, porém, não os consegue. Regressando para Uruk, morre como qualquer humano, e grandes estátuas são colocadas para homenageá-lo por seus grandes feitos.

Doravante, essa antiga obra nos resgata sentimentos que versam sobre a frustração de nós humanos em compreendermos as marcas da existência, entre elas, a primeira nobre verdade de que a vida é dukkha (insatisfatória), pelo nosso apego ao “eu”; bem como, de que a vida é anicca (impermanência), e assim sendo, não temos a capacidade de reter coisas, pois tudo está em constante mudança, e atingir a imortalidade, mesmo que relutemos com todas as nossas forças, torna-se impossível. Podemos realizar grandes projetos, e ser lembrados por um determinado tempo, mas assim como Gilgamesh, não iremos escapar da finitude, e seremos gradativamente vagas reminiscências.

Por fim, quando estudamos o Zen Budismo, descobrimos que a vida é continuação, e não somos apenas meros torvelinhos num riacho, mas o riacho todo, como preleciona Charlotte Joko Beck; somos a vida por excelência, e, portanto, não há nascimentos nem mortes, ir e vir, apenas continuação. Sempre estivemos aqui, e  para isso devemos abraçar a vida com todas as suas vicissitudes, cientes de que ela jamais cessará, mesmo com a morte do “eu”. Nossa eternidade se dá justamente aí, como pode ser analisado no precioso diálogo transcrito por Monge Genshō com Kahner Sama:

“Ele perguntava: – Se eu passar a chama da primeira vela para a segunda, acendendo-a, é a mesma chama? Sim, é! Mas também não é! É outra chama. É a mesma chama… Assim a vida não cessa nem começa, ela continua. A vida é um processo, não uma sucessão de começos e fins.

Somos todos fogo, não chamas individuais, mas também somos cada um uma chama, porém não separada da anterior e posterior. Entenderam?” (GENSHŌ, 2007).

 

Texto de José Soares. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen

 

 

Referências:

JOKO BECK, Charlotte. Nada de Especial: Vivendo o Zen. 1ª edição. Editora Saraiva, 1994

SILVA, Daniel Neves. “O que é a Epopeia de Gilgamesh?”; Brasil Escola. Disponível em:

https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-epopeia-gilgamesh.htm. Acesso em 01 de novembro de 2021.

GENSHŌ, Monge. Kahner Sama. Blog O Pico da Montanha, 2007. Disponível em:

<Uhttps://www.daissen.org.br/kahner-sama/>. Acesso em: 28, outubro, 2021.

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