Prática e Despertar: Atividades Indivisas

 

O Caminho para Tornar-se o Caminho

 

“Não há, estritamente falando,

uma pessoa iluminada. Existe apenas atividade iluminada”

Shunryu Suzuki

 

Uma vez um professor de uma amiga propôs a ela um exercício, ele pediu que ela contasse, o mais detalhadamente possível, como havia sido seu dia. Após uns quinze minutos ela terminou sua descrição e ele perguntou: “você contou todo o seu dia em poucos quinze ou vinte minutos. Onde você estava nas outras 23h40min do seu dia? Tudo que você contou foi o mais importante e onde, teoricamente, você estava presente. Mas e o resto? ”. Assim passamos nossos dias, perdidos num emaranhado de atividades ordinárias que realizamos automaticamente e sem nossa presença ou atenção plenas. Chamamos de vida toda essa quantidade de atividades, responsabilidades e coisas para fazer, e passamos toda uma existência sem sequer desconfiarmos de quem somos. Acreditamos que somos esse corpo e vivemos com medo, consciente ou inconscientemente, de que essa estrutura orgânica a qual somos identificados e apegados irá desaparecer. O caminho do Zen para o despertar dessa delusão envolve meditação.

O mais importante a fazer na almofada é treinar nossa mente. Não há nada para alcançar, nenhuma linha de chegada. Nenhum troféu. Tudo que podemos fazer é inspirar e expirar. Shunryu Suzuki disse que algumas vezes ouviremos sons e pássaros, mas não é verdade, ele dizia, são seus ouvidos que ouvem, não você. Sentados, devemos deixar nossa verdadeira natureza falar por nós. Não devemos ter planos ao sentar. Planos como iluminar-se ou despertar, ter este ou aquele tipo de mente. Planos de nos tornarmos melhores, não há nada nem ninguém a ser melhorado. Não existe nenhum lugar para voltar, não há como voltar para um lugar de onde nunca saímos. Dogen Zenji chamava isso de Shikantaza, sentar por sentar. Na almofada devemos morrer antes de morrer. Mas se sentamos para não fazer nada, como iremos treinar a mente? Acredito que um dos problemas esteja na palavra “fazer”. Quando digo que tudo que podemos “fazer” é inspirar e expirar, note que isso não é algo que eu faça, isso acontece, pois sem usar nenhum instrumento não me é possível parar de respirar por muito tempo voluntariamente, minha mente não deixará, o sistema autônomo voltará a respirar tão logo seja necessário. Então, de verdade, não iremos fazer nada, simplesmente permaneceremos sentados. Assim, sentados, treinamos nossas mentes. Mas se não existe um ir e vir, se não existem planos, para que treinar a mente? Porque Mestre Dogen disse que a iluminação é a prática e a prática é a iluminação. Minha interpretação para isso não é que estejamos despertos apenas com a prática, mas sim que as duas atividades, despertar e prática, são atividades indivisas. Se apenas nos sentarmos sem levar essa mente do zafu para a vida diária, não sentiremos nenhuma mudança. Devemos nos tornar o caminho e não apenas percorre-lo.

Tornar-se o caminho é preservar a mente da almofada e aplicá-la em nossa vida diária. A vida diária é como um teste, uma pós-graduação do zafu. Será mesmo que nossa mente mudou? É no mundo interior que a primeira mudança deve ocorrer. Ficar sentado imóvel de frente para a parede é relativamente fácil, difícil é pegar essa mente que pensamos que adquirimos e aplicar no dia-a-dia. Porque, se formos sinceros, a maioria das vezes é apenas o Ego nos dizendo que mudamos. Podemos treinar nossa mente também nas atividades diárias, tentando nos manter presentes. Isso é “tornar-se o caminho”. Quando for lavar uma louça, devo apenas lavar a louça. Minha irmã quando vai cozinhar coloca o celular na janela da cozinha, liga o fone de ouvido sem fio e assiste um filme, um seriado ou uma novela. Ela não está cozinhando, não está vendo o filme e nem tampouco escutando algo. Ela está apenas dormindo, dormindo e sonhando. Ser o caminho é buscar uma vida de presença. Uma vida sem julgamentos, sem críticas, sem conflitos e com mais compaixão e equanimidade. Ser o caminho é diminuir as opiniões pessoais, pois elas são a base dos conflitos, as opiniões e nossas dificuldades em aceitar que outros possam ter as suas próprias e que nem sempre – ou quase nunca – serão iguais às nossas.

A maneira que um japonês faz suas refeições é um ótimo exemplo de pratica. Não temos tempo, graças a nossa vida insana e delirante, para fazer uma refeição com oryoki todos os dias, mas não é necessário. Nos basta manter a mente atenta e presente em cada refeição. Diferentemente de países como o Brasil onde quase sempre colocamos várias comidas no mesmo prato e as misturamos, no Japão e nos mosteiros a refeição é servida em várias porções separadas, cada comida em sua tigela. Ao comermos, dedicamos total atenção ao alimento de uma única tigela, a pegamos com as duas mãos, aproximamos da boca e colocamos a comida na boca, saboreamos por alguns segundos, colocamos a chawan de volta à mesa, pegamos outra e repetimos o ritual, com calma, sem pressa e sem distrações. As refeições formais nos mosteiros são feitas em silêncio. Não há uma televisão ou celular ligado, não existe uma música tocando ou conversas. Mesmo sem o hábito japonês de separar a comida, podemos comer cada alimento separadamente, sem misturar tudo no prato, dando real atenção aos sabores, as texturas, aos temperos e aos aromas diversos.

Creio que tornar-se o caminho seja transformar nossas ações ordinárias em atividades indivisas, convertendo nossas praticas diárias em despertar, o despertar será nossa pratica diária.

 

Texto de Monge Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

 

 

 

 

 

 

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