As Doenças da Normalidade


“O que chamamos de civilização exige a negação das necessidades humanas”, Gabor Maté.

Em alguma grande cidade do Brasil, Paulo acorda as 00h:00min, rola de um lado para o outro na cama, pensa no dia cansativo que teve e no tanto de trabalho que terá no dia seguinte. Levanta, vai no banheiro, na cozinha, liga a TV, desliga a TV, liga o celular, confere as mensagens, desliga o celular. Fica sentado por alguns minutos na cama e começa a ter uma crise de raiva, toma um chá para se acalmar, volta para a cama e quando consegue dormir já são 02h:30min da manhã.

Logo ao amanhecer liga para marcar um horário com um psiquiatra, afinal, ficar acordado de madrugada não é normal. Seu médico, como bom entendedor da “normalidade” receita logo um sedativo hipnótico como Frontal, Rivotril ou Lexotan, ou um antidepressivo como Prozac, afinal ficar acordado algumas horas durante a noite pode ser sintoma de ansiedade e depressão. O “problema” da insônia vai desencadear em Paulo uma cascata de outras doenças, que ele muito provavelmente não tem ou não teria.

Os medicamentos irão despejar em seu corpo uma infinidade de efeitos colaterais que podem transformar suas refeições em uma dúzia de caixa de medicamentos como prato de entrada.  Remédio para tirar efeito de remédio. Paulo faz parte de um grupo com mais de 11 milhões de brasileiros que toma alguma medicação para dormir.

O processo civilizatório e tudo que o acompanha afeta nosso sistema imunológico e nos causa mais dores, angústias, medo, insegurança e transtornos de humor do que benefícios. Quando as pessoas falam nas vantagens de morar numa cidade grande, ter um bom emprego (entenda-se ter um ótimo salário) e ter acesso a todas as comodidades que a civilização nos proporciona, não coloca na conta o estresse, a ansiedade, as doenças e a infelicidade que tem se mostrado cada vez mais frequentes nos habitantes das metrópoles.

É como a pessoa que diz que comer carne é mais barato que se alimentar de comida vegana. Quem pensa desta forma não coloca no valor final do quilo da carne a poluição, a Pegada Hídrica¹, o desmatamento, emissão de gases que afetam a camada de ozônio, poluição de lençóis freáticos com as fezes e urina do gado alimentado e vacinado com antibióticos e, o mais incalculável, o sofrimento animal.

Jiddu Krishnamurti, um filósofo indiano, dizia que “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. É isso que estamos fazendo, nos adaptando e pensando que toda essa parafernália tecnológica e todo esse pseudo avanço científico nos proporciona uma vida melhor.

Na verdade, estamos cada vez mais afastados de nossa verdadeira natureza, não conhecemos nosso corpo/mente e a vida automatizada, a busca frenética por cumprimento de metas, a necessidade de estar sempre à frente, de chegar primeiro e de estar no topo modificaram nosso comportamento e nossa mentalidade e nos brindam com enfermidades que não teríamos se nossas vidas não fossem desconectadas da natureza. Não precisaríamos da indústria farmacêutica com seus “milagrosos” medicamentos e nem de aumentar mais parágrafos na lista no CID² que já é imensa.

Se nosso personagem Paulo vivesse antes da invenção da luz elétrica, ou mesmo séculos a.C., não precisaria de um médico para lhe dar remédios para dormir. Paulo iria para cama tão logo o sol se pusesse, dormiria algumas duas ou três horas, acordaria juntamente com os outros membros da família, conversariam, colocariam lenha na fogueira, iriam urinar, dar comida para os animais, costurar roupas ou mesmo teriam relações sexuais. Voltariam para a cama e por volta das 02h;00min estariam dormindo novamente até o dia amanhecer.

Nessa época era comum as pessoas terem sonos em dois turnos e Paulo não seria considerado um insone, ansioso ou depressivo. Hoje Paulo é um doente.

A normose³ afetou a maneira de nos relacionarmos com nossos corpos e com outros corpos a ponto de não conseguirmos viver a menos que nos anestesiemos. Estamos proibidos de sentir dor, ansiedade ou tristeza. As redes sociais estão cheias de pessoas famosas e “felizes” para nos dizer o quanto nossa vida é ruim e o quanto precisamos de remédios, de dinheiro, de um emprego muito bem remunerado, de um celular novo ou mesmo de algum relacionamento para sermos felizes, sim, porque pessoas que não possuem um companheiro estão fadadas a infelicidade eterna.

Para suportarmos o peso desta carga (o nosso corpo) que atrapalha nossa busca pelo futuro de sucesso, que adoece, fica ansioso, deprimido, que entra em pânico e que não está em sintonia com a “normalidade”, precisa ser anestesiado, precisamos nos entorpecer, precisamos nos sedar para podermos continuar a correr essa corrida insana que apenas nos aproxima mais das doenças e da morte.

Isto tudo já é muito ruim para adultos, mas como dizem por aí, “não há nada ruim que não possa piorar”. Nosso sistema educacional montado como uma fábrica, vai desde o ensino fundamental moldando a mente das crianças e guiando-as para acostumarem-se com a vida corrida e exaustiva. É a normatização da insanidade. Quando eu era criança, e isso não é uma exaltação do tipo “No meu tempo era melhor”, tínhamos uma praça em cada bairro com quadras esportivas e levava-se uma vida de criança, fazendo coisas de criança, bagunça de criança.

Hoje as crianças são trancadas em caixas e vivem em tocas (seus quartos), com um celular ou computador nas mãos, com acesso a todo tipo de informação que a internet pode fornecer. O entretenimento infantil consegue ser nivelado ainda mais por baixo que dos adultos. Quando finalmente saem das tocas, vão para tendas maiores (os shoppings) ou para as fábricas (escolas), onde poderão aprender que a vida é isso e que precisam perseguir desde pequenos as metas que os farão felizes em algum momento, que não será agora, óbvio.

Existe uma lista de coisas a serem realizadas, uma série de “tarefas”, uma check list. Está lá, terminar o ensino fundamental, check. Terminar o ensino médio, check. Entrar numa faculdade. Terminar a faculdade. Conseguir um emprego bem remunerado. Namorar. Casar. Comprar casa. Ter filho ou filhos. Se falharmos em algum destes itens é sinal de que nós perdemos o rumo, estamos fora do sistema, já não nos enquadramos mais. É preciso um plano B e como a Vida nunca segue nossos planos, muito provável que iremos precisar de um plano C. Teremos que tomar algum medicamento para suportar a frustração de não seguir as normas e de não nos enquadrarmos no sistema.

Quase nenhum médico fala sobre educação emocional, trauma, sobre amor, sobre criança ser criança e fazer coisa de criança, sobre pressão por resultados, sobre abandono, sobre Terceirização das Relações, sobre escolas sendo usadas como depósito de crianças, sobre uma infinidade de atividades para preencher o dia das crianças ou sobre pais ocupados demais para serem pais. Falam em dislexia, TDAH ou em Fluoxetina, Sertralina ou Imipramina e todo um arsenal para acalmar a criança que é agitada “demais” ou que está depressiva e ansiosa.

Estamos criando marcas profundas nas crianças, traumas que as condicionarão de forma quase definitiva, levando-as a uma vida vazia, com propósitos fúteis e um sentimento de incompletude impossível de ser preenchido onde a saída será inevitavelmente medicamentosa.

Precisamos entender que padrão de vida não é o mesmo que qualidade de vida e que ter sobre a mesa das refeições dezenas de remédios não significa avanço da medicina. Precisamos compreender que termos assistência médica quando ficamos doentes não é termos um Plano de saúde, isso é Plano de Doença.

Plano de Saúde é entrarmos no supermercado e termos comida sem açúcar, sem sódio, sem agrotóxico, sem veneno e sem conservantes. Plano de Saúde é termos tempo para nossa família, nossos amigos e filhos, é poder desligar o celular no final de semana sem o risco de sermos demitidos na segunda-feira, é termos tempo para atividades físicas e tempo para não fazer nada, se assim o quisermos, é podermos ficar em silêncio sozinhos por um tempo, é termos uma vida que valha a pena ser vivida e não que tenhamos que esperar pelo happy hour na sexta-feira, pelas férias no fim do ano ou pela aposentadoria no final da vida para sermos felizes.

Afinal, o que estamos deixando acontecer em nossas vidas? Quando teremos tempo para termos uma felicidade genuína? Até quando iremos direcionar nossos filhos para que se enquadrem no mesmo sistema que só produz doença e infelicidade?

Precisamos pensar mais sobre tudo isso, sobre o que de verdade importa. O verso do despertar é muito enfático ao dizer: “O tempo rapidamente se esvai e a felicidade se perde”.

 

Texto de monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

1-Mede o consumo direto ou indireto de água em todo o ciclo de produção, da cadeia de suprimentos ao usuário final de um produto. A Pegada Hídrica de um quilo de carne fica em torno de 15.500 litros de água, isso mesmo, para um quilo de carne são necessários 15.500 litros de água potável.

2-Classificação internacional de doenças.

3-Ose, sufixo que indica uma doença, exemplo: tuberculose. Normose pode ser definida como um conjunto normas, conceitos e valores, hábitos de pensar ou agir que são aprovados pela maioria da sociedade e que causam dor, sofrimento, doenças e morte.

 

Bibliografia:

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2022/01/29/dois-turnos-de-sono-a-forma-esquecida-como-nossos-antepassados-dormiam.htm

Normose, a patologia da normalidade – Pierre Weill, Jean Yves LeLoup

 

 

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