Os Outros Somos Nós

 

O Final de Ano e a Prática da Tolerância

 

Não gosto da palavra tolerância, mas não consigo encontrar uma melhor.
O amor empurra para ter, em relação à fé dos outros,
o mesmo respeito que você tem pela sua
”.
Mahatma Gandhi

 

Quando morei em São Paulo, um amigo peruano veio ao Brasil e queria muito assistir um jogo no Estádio do Morumbi. O Peru não tem muita tradição no futebol e os poucos estádios são todos pequenos. Pesquisei para ver qual jogo haveria na semana que ele estaria aqui: São Paulo X Corinthians. Para ficar longe do calor das torcidas e eventuais brigas, comprei os ingressos para área VIP. No final do jogo, vitória do São Paulo. Eu não sabia, mas, para nosso azar, eu havia estacionado o carro no lado da saída da torcida do Corinthians. O percurso do estádio até o estacionamento foram os vinte minutos mais tensos da minha vida. O que havia ali eram centenas de egos carregando suas opiniões, seus medos, seus traumas, seus conflitos e suas angústias potencializados pela derrota do seu time.

Um time de futebol não é só um grupo de pessoas uniformizadas participando de um jogo com regras definidas. Um time de futebol, para alguns torcedores, é como um país. Possuí sua bandeira, seus símbolos, suas cores, seu hino, seu território, que é o bairro e arredores de seu estádio, possuí também seus ídolos e seu exército de soldados, os torcedores, que o defenderão a qualquer custo, contra tudo e todos que lhe sejam contrários. Numa partida de futebol estão presentes, portanto, todos os ingredientes para uma guerra entre nações, inclusive alguns torcedores chamam seus times de nações, Nação Rubro-negra, Nação Tricolor etc. De certa maneira, todos os grupos que estamos inseridos, para o Ego, obedecem a mesma regra. É um jogo de nós contra os outros e geralmente são nossos medos e instintos primitivos que guiam a mente. Estamos sempre a buscar fora de nós mesmos o culpado por nossa infelicidade, isso é verdadeiro como país, como religião, como clubes de futebol ou como indivíduos. Praticamente todos os grupos que existem no mundo reivindicam para si a verdade de suas perspectivas: “a minha ideia de mundo é que é a correta e única possível”. Ao afirmar que a verdade está do nosso lado perpetuamos a existência de nosso grupo.

Como indivíduos donos da verdade temos muitas dificuldades em nos relacionarmos, pois do outro lado da balança há outro indivíduo armado com sua verdade e igualmente disposto a colocar sua ideia de mundo acima dos outros. Atualmente, além da política, outro campo que costuma gerar muita discussão e conflitos é o religioso. É interessante observar que culturas politeístas, a rigor, têm uma tendência maior à tolerância religiosa. É como se para eles, um Deus a mais ou a menos não fizesse diferença. Como o Budismo não é uma religião, apesar de algumas escolas conterem uma série de liturgias que as aproximariam de algumas religiões, seus praticantes conseguem, com bastante facilidade, circular pelos diversos meios das mais variadas doutrinas graças à prática da tolerância.

Um dos ensinamentos de Buda é sobre os Seis Paramitas ou Perfeições e uma destas Perfeições é a tolerância. Quando Rahula fez 18 anos, Buda havia feito uma palestra sobre a tolerância. Alguns anos depois um discípulo foi até Buda reclamar que havia feito uma pergunta a Shariputra e este lhe deixou sem resposta, além de joga-lo ao chão. Buda mandou que Ananda fosse chamar Shariputra e reunisse os monges. Buda então se aproximou e perguntou à Shariputra se a reclamação de seu irmão do Dharma era verdadeira. Shariputra respondeu: “Senhor, eu me lembro do discurso que o senhor fez há doze anos para o monge Rahula, quando ele fez dezoito anos. O senhor ensinou-o a contemplar a natureza da terra, da água, do fogo e do ar, para desenvolver as virtudes do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade. Apesar de seu ensinamento ser dirigido a Rahula, eu também aprendi com ele, e tenho tentado observar e praticar este ensinamento” e continuou Shariputra, “Senhor, eu tenho tentado praticar como a terra. A terra é grande e aberta, e tem a capacidade de receber, aceitar e transformar. Quando as pessoas jogam sobre a terra substâncias puras e perfumadas, como por exemplo flores, perfumes ou leite fresco, ou mesmo quando jogam nela substâncias repugnantes como excremento, urina, sangue, catarro ou cuspe, a terra recebe tudo da mesma maneira, sem apego nem repulsa. Não importa o que jogamos na terra, ela sempre acolhe, aceita e transforma tudo aquilo que recebe. Eu faço o que posso para ser como a terra, a tudo recebendo sem resistir, sem me queixar, nem sofrer. Senhor, eu pratico a atenção plena e a bondade amorosa. Um monge que não pratica a atenção plena ao corpo no corpo e às ações do corpo nas ações do corpo, poderia derrubar outro monge e deixa-lo lá deitado, sem pedir desculpas. Mas eu não costumo ser grosseiro com meus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas”. Shariputra seguiu falando sobre a água, o fogo e o ar quando foi interrompido pelo monge que havia reclamado de sua atitude, ele ajoelhou-se, pediu perdão e disse: “Senhor, eu violei a Vinaya (regras de disciplina monástica). Por raiva e por ciúmes, eu disse uma mentira para desacreditar meu irmão mais velho no Dharma. Eu imploro à comunidade que me permita praticar o Começar de Novo“.

Tolerância é a capacidade de receber, aceitar e transformar os acontecimentos que transcorrem em nossas vidas. Não existe a necessidade de sofrer ou resignar-se. Quando não temos a mente pura tocada pela prática e alguém nos ofende, isso nos fará sofrer, mas se tivermos a mente serena, a compreensão correta e compaixão, não há palavra ou ação que nos afete o humor. O que conta aqui é a capacidade de transformação. Quando guardamos raiva ou ressentimentos é sinal de que não estamos praticando a tolerância.

Nos aproximamos do final de ano e das festas tradicionais de famílias e isso por si só já é um grande desafio pois, como disse Freud, a família é um caldeirão de loucuras. Muitos psicoterapeutas são unanimes em afirmar, embasados em casos clínicos, que a afirmação de família como um núcleo de amor, união e harmonia não corresponde à realidade das relações e encontros familiares. A história nos mostra, através das narrativas, dos depoimentos, dos livros e filmes que as festas familiares são, via de regra, recheadas de conflitos, ciúmes, dominações, assédios, assassinatos e rivalidades. Há milênios que esses relatos nos acompanham e segundo a Bíblia, a primeira família composta por Eva, Adão, Caim e Abel, já se inicia, ou termina, com um caso de ciúme e assassinato. É muito difícil a convivência, comungar espaços e estar perto do outro, mas a psicanálise nos diz – e isso o Budismo concorda em parte – que o outro é um espelho e reflete justamente aquilo que nos é mais familiar. Se o que vemos no outro é arrogância, pretensão ou cinismo, isso é a característica dele que encontra eco em nós e exatamente por isso nos incomoda, pois essa é igualmente uma característica que possuímos e desejaríamos não ter. Quando alguém fala mal de outra pessoa, revela mais de si do que possa imaginar.

Mas o Budismo vai além, ele diz que o outro não existe, somos manifestações temporárias de um mesmo e único estado, o Vazio, Shunya. Esse talvez seja um dos conceitos mais difíceis do Budismo, pois dá a ideia de que nada existe, mas shunya significa a ausência de uma identidade independente, ou seja, a existência da interdependência. Ao observar o outro, ou nosso conceito de outro, como sendo uma manifestação igual a nós mesmos, oriundos de uma mesma origem e em constante e infinito estado de interdependência, fica mais difícil de ignora-lo, culpa-lo, julga-lo e condena-lo.

Existe uma crônica, se não me engano do Veríssimo, que uma pessoa entra num bar e pede uma bebida. Começa a reclamar de sua vida com o garçom e dizer o quanto sua vida estava ruim e do quanto era infeliz. Em determinado momento o próprio garçom começa a reclamar também de sua vida e ele olha para o garçom e se vê. Olha ao redor e vê que cada pessoa no bar a reclamar e se embebedar é ele, se tivesse tomado diferentes decisões. Nesse momento ele se dá conta da vida maravilhosa que tem.

Uma vez estava de carro e um morador de rua passou vagarosamente na frente do carro fora da faixa de pedestres. Quando ele me viu diminuiu ainda mais o passo, parou e ficou me encarando, como quem diz: “qual é o problema, vai me atropelar? ”. Nesse momento minha vontade foi de abrir o vidro e xingá-lo. Porém eu pensei, e isso é raro de acontecer comigo, minha primeira reação seria xingar, que essa pessoa atravessando a rua era eu, se eu tivesse nascido nas mesmas condições que ele, tivesse tido as mesmas experiências, tivesse passado pelas mesmas dificuldades, tivesse tido as mesmas relações, sofrido pela falta de amor e afeto, sofresse as mesmas violências, tivesse passado pela falta de oportunidades e pelo descaso que ele passou. Eu sou cada pessoa do mundo vivendo em situações diferentes. Não sou diferente e nem estou desconectado de seus sofrimentos. Se tivesse essa mente no passado teria participado de mais encontros familiares e quem sabe poderia até ter me divertido e proporcionado momentos felizes para meus pais e irmãos.

 

Texto de Monge Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Referências:

http://www.viverconsciente.com/textos/seis_perfeicoes_2.htm

https://www.youtube.com/watch?v=rOp9XSKVDWU

 

 

 

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