O Cristo Oculto no Budismo

Desde que o monge trapista Thomas Merton se interessou pelo Zen, os muitos pontos de contato entre o Budismo e o Cristianismo ficaram mais evidentes. Merton não foi pioneiro nessa busca por pontos de vista comuns entre duas grandes correntes espirituais. Antes dele outros, de ambos os lados, se deixaram fascinar por tantas coincidências, a que se pesar as divergências, que também são muitas.

Antes de prosseguir preciso esclarecer que em todas as grandes correntes religiosas há duas formas de prática: uma mais popular, centrada em ritos, liturgias, orações públicas para diversas finalidades; outra, mais profunda, busca o essencial. A primeira atrai multidões, a segunda, poucos. A primeira tende a frisar as diferenças irreconciliáveis entre as religiões; a segunda, mesmo sem o pretender, encontra a convergência e o diálogo. Quanto mais profundo se vai em uma determinada proposta religiosa, mais se percebe que aquela tem muitos pontos em comum com as demais.

Meu primeiro encontro com o Zen ocorreu há 20 anos, aproximadamente. À época eu era religioso católico, vivia em um Mosteiro em um lugar maravilhoso aos pés da Serra da Mantiqueira. Li o que havia disponível na internet e dois livros de Merton. A abordagem era meramente acadêmica e, confesso, achei o Zen extremamente sem graça. Definitivamente não estava preparado para uma religião cuja principal prática é sentar-se voltado para uma parede branca; o que vem exatamente depois disso?

Vinte anos mais tarde reencontrei-me com o Zen. Agora não mais como monge, mas como leigo, casado, empregado público. Com vinte anos de distância e um bocado de experiências positivas, algumas outras negativas, o Zen me pareceu mais apetecível. Fazia sentido parar, sentar e olhar para uma parede branca, cujo único objetivo era funcionar como espelho de minha própria realidade. Foi a partir daí, praticando e estudando, que percebi o quanto o Zen tem em comum com o cristianismo. E entendi o fascínio que ele exerceu sobre Merton e sobre outros monges católicos.

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova!

Tarde demais eu te amei!

Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!

Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.

Estavas comigo, mas eu não estava contigo.

Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem.

Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez.

Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou minha cegueira.

Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti.

Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti.

Tu me tocaste, e agora ardo no desejo de tua paz. ”

 Agostinho de Hipona, Confissões

 

Esse texto de Agostinho de Hipona, escrito após a sua conversão, é um grito de alívio e ao mesmo tempo o reconhecimento do tempo perdido na busca de sentido para a sua vida. O jovem Agostinho buscava fora, aquilo que já estava ali, dentro dele mesmo. E não é que resume bem a minha história e, talvez, a sua também? Não seria possível fazer uma leitura “zen” de um texto tão profundo? É óbvio que no Budismo não há um Deus pessoal, mas há algo que me intriga e que, pelo que tenho percebido, também a alguns escritores zen-budistas. O que é exatamente o Nirvana? O que é a Iluminação? O que significa exatamente esse mergulho nesse mar de luz infinita que acontece depois que nos livramos do nosso Eu? Essa realidade descrita não parece tão inexprimível quanto o conceito de um deus? Tão inominável quanto o Deus judaico, sem nome e que a auto apresentação a Moisés um judeu não ousa repetir, preferindo trocá-la por Hashem (Ha, representa O e Shem, nome; literalmente “O Nome”)?

Por acaso já imaginamos que a Iluminação é algo que só conhece quem a experimentou e, uma vez experienciada, não é possível descrevê-la sem diminuir-lhe o valor? Tente descrever a beleza de alguém e você terá uma boa analogia.

“Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora ardo no desejo de tua paz.” Gosto de pensar, por mais que soe herético aos ouvidos de um cristão católico, que Agostinho teve uma experiência de Kenshô. Iluminou-se de tal modo que, naquele momento, queria aquilo para sempre! De repente as paixões que o subjugavam se foram, as correntes se despedaçaram. Já não havia mais a vontade de poder ou a busca da satisfação dos sentidos. Tudo era paz, tudo era visto no seu tamanho real, na sua real importância, ou na absoluta falta dela.

Essa é minha história, embora esteja longe de qualquer tipo de iluminação, obviamente. Talvez seja a sua também. Caminhamos, corremos, caímos, nos decepcionamos de mil formas, nos colocamos nas mãos de pessoas incapazes ou até desonestas e descobrimos, depois de muito correr, que o que procurávamos estava muito perto de nós: em nossa mente e no nosso coração. Descobrimos que o caminho até o que buscávamos não demandava sair pelo mundo, mas entrar em nós mesmos, finalmente nos enxergando tal como éramos. E, para isto, bastava sentar…

Texto de Zaqueu de Paula Collecta. Praticante na Daissen. Escola Soto Zen.

 

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