Música e Zen: Uma Reflexão Sobre a Influência do Zen nas Músicas de Leonard Cohen

 

“Não sei, fico feliz com as folhas de outono, saias vermelhas em movimento”. Leonard Cohen

 

Quando comecei a me interessar e estudar o Zen, percebi que, talvez, um dos pilares da investigação e despertar de Sidharta Gautama tenha sido a observação da natureza. Nos processos naturais podemos perceber muitos conceitos da doutrina do Budha, como os sons, por exemplo. Uma vez que as moléculas vibram e emitem frequência, tudo que existe no Cosmos produz som, sendo o som, portanto, um processo natural.

A música, por sua vez, é resultado de um trabalho humano, transformando o som em ciência e arte. Seus princípios fundamentais são ritmo, tonalidade, dinâmica e timbre. Ao se ouvir música nossos sentidos despertam. Sons graves atuam nas vísceras e nos conectam com o chão, com instintos mais básicos. Os agudos, por sua vez, são mais mentais, intelectuais. Determinadas músicas incitam nosso corpo a movimentos específicos. O impulso para fazer com que a dança expresse emoções é algo tão antigo quanto se possa imaginar. O ritmo aliado ao gesto certamente foi uma das primeiras formas de comunicação humana. Ainda que a dança possa ocorrer sem acompanhamento musical, o movimento em si sugere música e vice-versa”, explica Sensei Pádua, professor de Aikido e músico.

O que Pádua Sensei fala anda de mãos dadas com Platão, que dizia que a música tem o poder de produzir estados emocionais nos ouvintes. “Deixe-me compor a música de um país” disse Platão, “e não me preocuparei com quem fará suas leis”. Ele propunha um governo musical. Aristóteles ia mais longe, ele falava que a música imita ou representa as emoções.

Ainda que a música seja algo artificial criado pelo homem, seus efeitos na mente podem torná-la um importante instrumento de transformação, assim como o zazen, que também é uma criação humana. Civilizações milenares como hindus, maias, egípcios entre outras já se utilizavam dos sons como forma de cura. Monges, aborígenes e ameríndios entoam sons repetitivos, os mantras, em suas cerimônias. Os sons repetitivos, como mantras, não são estranhos para nossa mente, muito pelo contrário. Segundo a neurociência grande parte daquilo que percebemos como realidade é, na verdade, um conjunto de repetições que o cérebro coloca a nossa disposição para montar o conceito do objeto que está sendo observado. Isso nos leva a uma questão muito interessante: o quanto do que vemos é realmente o que estamos vendo e não uma sequência de imagens puxadas de nossas lembranças para compor o que pensamos que estamos vendo?

Além de que o que vemos não é a representação exata do objeto que estamos observando, ainda somos limitados e percebemos apenas uma parte infinitesimal da realidade que nos rodeia. Essas frequências de ondas que nossos ouvidos não são capazes de perceber, atravessam nossos corpos e tem o potencial de influenciar nossas emoções. Estudos comprovam que os sons alteram os batimentos cardíacos, a respiração, pressão arterial, a digestão e liberam adrenalina. Van de Wall, em seu livro “Music in Hospitals”, explica que as vibrações sonoras causam contrações e colocam em movimento os membros superiores e inferiores automaticamente sendo, muitas vezes, necessária a contenção do paciente. Mas não somente os animais são influenciados pelos sons, na década de 70 uma mulher chamada Dorothy Retallack publicou um livro que detalhava seus estudos com música e plantas, no qual ela relatava suas experiências com os mais diversos ritmos musicais e seus efeitos sobre as plantas. Colocadas em salas separadas, as plantas se aproximavam, afastavam ou morriam, dependendo da música a qual fossem expostas.

A arte é uma maneira do homem expressar suas emoções, sua história e sua cultura por intermédio de alguns valores estéticos, como a beleza, a harmonia e o equilíbrio. A música, a escultura, a dança, a pintura e a poesia são algumas das muitas formas de representar a arte. Alguns autores colocam a natureza como uma referência para a arte e durante boa parte da história os artistas desejavam mesmo copiar a natureza de alguma forma, de maneira mais fiel possível.

Muitas artes orientais receberam o toque do Zen, como o Haikai que, como disse Hattori Tohô, um discípulo de Bashô, considerado o poeta mais famoso do período Edo no Japão, “É uma forma de canto”. Bashô foi tão importante para a cultura Zen e japonesa que conseguiu alçar o Haikai ao status de DÔ, um caminho espiritual, uma forma de ver e viver o mundo. Para entendermos um Haikai, precisamos ter em mente que no Japão as questões éticas, religiosas e estéticas são com frequência as mesmas questões, no entanto, conceitos estéticos como universalidade, particularidade e verossimilhança que são familiares à arte ocidental, são estranhos à tradição japonesa. Outra questão importante é o contexto histórico em que o Haikai se desenvolveu, um produto do pensamento sincrético entre o animismo xintoísta com o mundo de ilusões do Budismo. Segundo Ezra Pound, um poeta e crítico americano do século XIX, “Não existe no Haikai uma preocupação com a rima, e no processo de composição duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre elas”. Para Pound a composição se dá por justaposição, onde a relação entre as partes é de natureza metafórica.

Ao sol da manhã, uma gota de orvalho, precioso diamante”, Matsuo Bashô

Dentre os artistas ocidentais, um dos mais aclamados poetas e músicos do século XX, o canadense Leonard Cohen foi monge Zen em uma fase da vida e tinha uma busca pela estética que era quase uma obsessão, “Da voz às letras, dos arranjos às melodias, sua obra avançava em um todo coerente, escapando aos apelos da simplificação e do formalismo” disse sobre ele Pedro Gonzaga, doutor em Letras pela UFRS. Cohen começou a praticar o Zen da Escola Rinzai com Roshi Sasaki no Mount Baldy Zen Center, nas montanhas de San Gabriel, ao norte de Los Angeles no início dos anos 70 e disse em uma entrevista que “a meditação Zen estava adoçando meu dia-a-dia até limites insuspeitados. De repente, a vida tinha um significado próprio. Lembro-me de sentar na cozinha da minha casa, olhando a rua pela janela, vendo os raios de sol refletindo na carroceria dos carros e pensando: ‘nossa, que maravilha’. ” As primeiras músicas de Cohen tinham uma produção minimalista e intimista que se resumia a voz e violão. Talvez suas canções mais famosas sejam Hallelujah e Dance me to the end of love e também seja nelas onde se pode observar um pouco da influência monástica em sua vida. Mas com certeza onde mais se observa um toque Zen em sua poesia é na música Anthem, como nos versos:

 

Os pássaros cantam no romper do dia,

Comece de novo, eu os ouço dizendo

Não se apoie naquilo que passou

Ou naquilo que está por vir

 (…)

Toque os sinos que ainda podem tocar,

Esqueça sua oferenda perfeita,

Há uma falha em tudo

E é assim que a luz entra

 

Cohen teria dito em uma entrevista à revista Rolling Stone que “Este mundo é cheio de conflitos e cheio de coisas que não podem ser reconciliadas, mas há momentos em que podemos transcender o sistema dualista, reconciliar e abraçar toda a desordem e é isto que quero dizer com Hallelujah… O único momento em você pode viver aqui confortavelmente nestes conflitos absolutamente irreconciliáveis, é quando você abraça tudo isso” e diz “Olha, não entendo nada dessas coisas mesmo, Hallelujah”. Este é o único momento em que vivemos aqui plenamente como seres humanos”. Nos versos de Anthem acima, é possível notar conceitos de Wabi Sabi e Kintsugi, que são caminhos japoneses que destacam a beleza da imperfeição.

A subjetividade da arte e observação subjetiva da natureza feita pelo Zen podem, eventualmente, atender nossas necessidades abstratas, muito embora não os entendamos logo de cara. Chikamatsu Monzaemon, dramaturgo japonês do século XVIII, dizia que “A arte é algo que repousa sobre a margem delicada que separa o real do irreal… É irreal, ainda assim não é irreal; é real e ainda assim não é real”. Para que possamos entender o mundo a nossa volta necessitamos de nossas experiências, estas, porém, muitas vezes não são suficientes pois o mundo é inconstante e nossas experiências não dão conta de decifrar um mundo em contínua transformação. Mas são o que temos. Porém isso faz com que cheguemos a cada nova situação como se fosse a primeira vez. E na verdade é. Artista e observador também têm visões diferentes do mesmo imaginário, pois suas experiências são distintas e a cada revisita essa perspectiva muda, pois estamos munidos de novas experiências.

A arte como representação subjetiva da natureza é um instrumento fundamental para o autoconhecimento e de construção de novos arranjos neurais que podem nos levar a uma mudança da maneira como nos relacionamos com a Vida.

Buda foi enfático, “Não creia em mim, experimente”.

 

Texto de Monge Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen

 

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