Existe o Ciclo da Decadência, mas Também do Progresso

Um dos problemas que as pessoas têm hoje em dia é sofrimento interior, as pessoas são fenômenos dolorosos, a existência delas é dolorosa. Não precisa nem fazer nada, a pessoa pode estar à toa em casa e aquilo já ser doloroso. As pessoas sofrem, elas têm bastante aversão por si mesmas, tem bastante raiva de si mesmas, vergonha e insatisfação consigo mesmas etc.

É a mente que está doente. Uma pessoa normal, que é chamada normal hoje em dia, é um fenômeno saudável. Isso reflete quando a pessoa vai praticar meditação: tenta, mas não consegue suportar a experiência do silêncio, a experiência de estar consigo mesma sem distrações e de ter um olhar contínuo sobre si mesmo. As pessoas acham aquilo extremamente desagradável.

Então isso gera essa agitação mental que deixa as pessoas queimando, elas têm sempre essa agonia, esse impulso em tentar buscar prazeres para aliviar aquele sofrimento. Essa sede insaciável por distrações, por prazeres, por estímulos agradáveis ocorre graças a esse desconforto que as pessoas sentem interiormente, causado por várias frentes, várias coisas que acabam virando um sistema, um ciclo vicioso em que até mesmo essa busca por alívio acaba reforçando o sofrimento.

Tem várias coisas que contribuem para esse mal-estar: visão incorreta, ponto de vista incorreto, as pessoas entendem o mundo errado. Elas têm atitudes erradas com relação ao mundo, com relação à vida e a si mesmas, com relação à sociedade, às demais pessoas, ao seu corpo e a sua mente, com relação ao passado, ao futuro e ao presente. Resumindo: as pessoas fazem tudo errado, não sabem viver.

É uma questão do ponto de vista como as pessoas lidam com a vida delas. Além disso tem mal comportamento: as pessoas não têm noção, não há essa percepção de que aquilo que eu faço é importante. As pessoas só pensam aquilo que eu faço é importante se tiver alguém olhando. Se ninguém estiver olhando eu posso fazer qualquer coisa porque não tem importância. Não entendem como funciona o sistema de autoestima, elas mentem para si mesmas, acham que “Ah, tudo bem, ninguém vai ficar sabendo, então isso não tem consequência”.

Não entendendo como é que é autoestima funciona, acabam agindo de maneira a sabotar a autoestima delas próprias; elas mesmas não têm respeito ou admiração por si próprias, não sentem confiança em si mesmas, não têm admiração e sentem vergonha. Isso é outra fonte de dor e sofrimento, pois não conseguem agir de uma maneira limpa, honesta, que não traga vergonha ou arrependimento. Além disso tem a vaidade: as pessoas no mundo têm desejo por estímulos sensoriais, tem desejo por prazer. Em termos budistas chama-se tanhā, bhava-tanhā, vibhava-tanhā, mas de qualquer forma é desejo por sensações agradáveis e físicas.

Desejo por ser, desejo por um “eu” fantástico, maravilhoso, agradável, poderoso, talentoso, simpático, rico, famoso, que todo mundo admira, que todo mundo possa sentir inveja, que tenham medo de mim, que tenham respeito por mim etc. Cada um tem sua loucura, dentro do espectro de vaidade. O problema é quanto mais desejo por um “eu” fantasioso você tem mais insatisfação com seu “eu” aqui agora, mas no meio daquele prazer que ela sente em fantasiar sobre um “eu” perfeito vem junto um veneno da baixa autoestima. Quanto mais você sente atração por um “eu” perfeito, mais aversão você sente por “eu” real aqui e agora, este eu que já existe aqui e agora.

Então isso vai envenenando a autoestima das pessoas também. As pessoas que vivem cercadas e obcecadas por vaidade são muito sofridas. Quer essa vaidade se expresse, mesmo que elas tenham um corpo agradável, aquilo é um prazer que nem o prazer das drogas; é um prazer, mas é um prazer tenso, não é um prazer sereno e relaxado. Enquanto a pessoa está drogada ela sente prazer, mas nunca relaxa, tem sempre uma tensão e um medo envolvido, porque logo em seguida esse prazer vai passar. É um prazer artificial que tem que ser sustentado, é um trabalho para sustentar aquilo.

Sobre os prazeres da vaidade, a mesma coisa. Trata-se de um prazer artificial e por ser um prazer artificial sempre tem um medo forrando aquele prazer, tem um chão de medo, de tensão, de preocupação. É um prazer tenso, é um prazer frágil. Outro ponto é esse: as pessoas são seduzidas pela vaidade e aí a vaidade vem junto com abaixa autoestima. São dois lados da mesma moeda. É uma coisa curiosa, as pessoas que são muito vaidosas têm muito baixa autoestima. As pessoas com baixa autoestima são extremamente vaidosas, mas eles não expressam essa vaidade da forma que estamos acostumados a enxergar. Não é em roupa, em cabelo, em carro, em fama, essa vaidade se expressa de uma maneira diferente, as vezes é assim “Ah, eu sou a pior pessoa do mundo, eu sou horrível, ninguém é tão ruim quanto eu”, essa é outra forma de vaidade.

As pessoas têm “eu sou especial”, porque se a pessoa não consegue ser especial de forma positiva, ela que ser especial de forma negativa, mas ser normal, não. É preciso ser especial. Geralmente uma pessoa quando é criança só recebeu atenção do pai e da mãe quando fez algo errado, aquilo fica gravado na mente dela. “Ah, para eu receber atenção eu preciso ser ruim”, a pessoa fica num vício, nesse tipo de mentalidade, não passa nunca, as pessoas morrem enfiadas nesse buraco e não conseguem sair.

As pessoas que têm muito baixa autoestima têm muita vaidade, as pessoas que têm muita vaidade têm muito baixa autoestima. Só que está escondido, ambos estão escondidos. Visão incorreta. Visão incorreta chama micchā-ditthi. O segundo seira bhava-tanhā, que se expressa na forma de vaidade, esse exemplo que estou dando. Bhava-tanhā vai um pouco mais longe do que isso. Mas nesse caso se expressa na forma de vaidade. E aí bhava-tanhā também é aversão, é não querer que as coisas sejam.

Esse é outro ponto de sofrimento das pessoas: elas se recusam a fazer as pazes com o ambiente ao seu redor, elas querem que seja assim, querem que seja daquele outro jeito. E ficam assim queimando ali, querendo que o mundo seja feito do jeito que não é. Por exemplo, as pessoas não querem envelhecer, não querem ficar feias, não querem que a pele fique flácida. Não querem que os músculos fiquem fracos, que os olhos fiquem turvos, que a saúde decaia, que as pessoas queridas morram ou então que elas mudem, antigamente as pessoas eram assim, agora já não são mais daquele jeito. As pessoas não querem isso, elas têm aversão. Isso é bhava-tanhā elas têm aversão à realidade, ao que é.

Então é fonte de sofrimento. E kamatanhā é desejo por prazeres, todos eles na verdade acabam virando um ciclo vicioso, mas kamatanhā é o mais óbvio, é o ciclo vicioso mais óbvio. Porque nele já está o sofrimento. Todos eles são assim, mas kamatanhā é o desejo por prazeres sensoriais, é tão óbvio. Ele não se sustentam. O mais característico desse, porque como é algo que requer o corpo físico, o estímulo físico, é extremamente efêmero, não sustenta. Você sente prazer durante alguns segundos às vezes, alguns minutos, não é um prazer estável, você sente aquele prazer e passa, se distrai, fala aquilo, fala aquilo sente prazer e passa. Conforme você consome começa a mastigar, já some aquele prazer, já vira uma coisa desagradável, uma massa suja na sua boca.

É um prazer assim muito efêmero, e mesmo que seja um prazer que se mantenha, por exemplo um cheiro agradável, quanto tempo você consegue sentir prazer por aquilo? Depois de alguns minutos fica indiferente. Não se sustenta. Prazeres sexuais, prazeres do paladar, prazer do olfato, prazer da música. A música é outra também: “Quantas vezes você consegue ouvir a mesma música sem ficar entediado”? E logo depois de ficar entediado fica irritado. Aquela música era super agradável agora irrita, causa sofrimento, então é um prazer que não se sustenta. Daí, o que as pessoas fazem? Ficam trocando, ficam rodando, tentando prazer aqui e ali, ficam rodando entre prazeres o tempo todo, nesta queimação constante.

No final as pessoas acabam fazendo cada coisa esquisita para conseguir, como se fosse uma pessoa que está ficando surda e cada vez tem que fazer um barulho mais alto para conseguir ouvir, vai aumentando o volume porque vai perdendo a capacidade ouvir, só que conforme aumenta o volume ela fica mais surda ainda. É um ciclo vicioso.

Então as pessoas que buscam satisfação em prazeres sensuais é a mesma coisa: elas ficam buscando estímulos cada vez mais fortes. E cada vez que elas conseguem um estímulo mais forte, mais elas ficam incapacitadas de sentir prazer. É exatamente como aquele contrato com o demônio que tem na cultura, no folclore, é exatamente um contrato com o diabo, você é enganado pelo seu próprio prazer. Aquilo que você busca destrói a capacidade de experienciar o que você queria. Então é o prazer sensual.

E o comportamento também, todos eles na verdade não têm uma divisória exata entre esses diferentes fatores que eu estou falando. Em todos eles funciona um sistema bastante hermético. Então é uma coisa que fecha no sistema e a pessoa fica presa ali dentro, rodando.

Uma das consequências de tudo isso e também uma causa de sofrimento é o mau comportamento. As pessoas se comportam movidas por desejo de prazeres sensuais, por vaidade, por aversão ao que é aqui agora, por compreensão incorreta do que é o que. As pessoas agem mal, tomam más ações. A mente delas as engana a agir de maneira estúpida, ridícula, patética, retardada, ruim, e aí elas se queimam.

Quando chega no nível físico, é como se assinasse um contrato, porque tem consequências, as pessoas notam. Enquanto é algo só na sua mente, só na sua imaginação, você consegue sair fora rápido porque não tem esse… não tem uma expressão. As pessoas não viram, ninguém viu ninguém sabe. Se você mudar de ideia ninguém ficou sabendo, tudo bem, né?

Então você consegue largar mais facilmente, mas os atos que você realmente comete, que você faz com seu corpo, que você faz com sua fala, tem as testemunhas. Mesmo que você entenda que o que você fez foi errado, que você se arrependa daquilo, ainda tem as pessoas que lembram do que você fez, que vão te cobrar pelo que você fez, que vão te criticar pelo que você fez, vão ter uma atitude ruim com relação a você, por causa dos seus atos. Então é uma coisa que perdura de uma maneira muito mais agressiva. É uma coisa muito mais grosseira.

Buda ensinava as pessoas a urgência de botar um estanque neste tipo de ação, ação corporal, ação verbal. Quem consegue ter um pouco de autocontrole, seria bom que levasse a sério esses cinco preceitos, porque realmente resultam em bem-estar. As pessoas acham que a contenção, conter as suas ações é sinônimo de sofrimento, porque elas enxergam do ponto de vista dos desejos. Se perguntar para um desejo “Desejo, o que você acha disso aqui?”  “Isso aqui é sofrimento, óbvio”. Da mesma forma, se você perguntar para a preguiça “O que você acha de fazer esse trabalho aqui?”, a preguiça responde: “Oh, esse trabalho é horrível, medonho”. Se você perguntar para a diligência: “O que você acha de fazer esse trabalho aqui”, “Opa, esse trabalho vai ser bacana, vamos fazer que vai ser legal”. Se perguntar para a moralidade, para honestidade, para a compaixão, perguntar para o bem-querer “O que você acha da gente restringir as nossas ações, ter mais contenção no que a gente faz ou não?” “Opa, parabéns, muito bom, assim a gente para de agredir as pessoas”.

O que motiva sua disciplina pode ser mil coisas diferentes, pode ser respeito pelas demais pessoas, pode ser compaixão, pode ser respeito por si mesmo, você falar “Eu quero ser uma pessoa nobre, não é digno de mim me comportar de uma maneira tão baixa. Eu mereço melhor que isso, eu mereço fazer algo bom para mim mesmo, eu não vou agir e falar de maneira baixa e suja”.

Por exemplo, às vezes você não briga e nem entra em bate-boca com aquela pessoa, porque nem é questão de compaixão, a questão é a seguinte: você não merece o meu mal-estar, eu não vou me sujar com isso. Vai brincar sozinho, eu não estou interessado, eu tenho mais o que fazer com minha vida, eu valho mais do que isso.

Em último caso você pode fazer até por medo, medo de más ações, medo de cair no inferno, medo de karma, mas não é o mais ideal. O ideal seria uma coisa positiva para não se parecer com uma coisa tensa e supersticiosa. Seria melhor que você tivesse uma coisa mais clara e racional, uma coisa fácil de se relacionar aqui e agora com inteligência. Uma emoção positiva, não uma emoção negativa. Mesmo que for uma emoção negativa ainda assim você consegue controlar o seu comportamento, o que não é ruim. Simplesmente porque é bom você evitar de cometer maus atos.

Uma intenção saudável e agradável, algo bom, algo que alimente o coração. Assim você mata dois coelhos com uma cajadada só. Você tanto limpa o seu comportamento, constrói uma boa fundação de bom karma, como também nutre a mente, deixa a mente saudável, deixa a mente feliz, energética e saudável. Gera autoestima, gera bem querer por si mesmo. É muito mais proveitoso você fazer desta forma do que fazer através de repressão, medo, raiva e vergonha etc.

Vergonha e medo deveriam ser só em caso de emergência. Em uma situação muito séria, se o bem-querer e a autoestima não chegaram junto, aí o medo tem que segurar a bronca como se fosse uma rede de segurança. Quando nada mais segurou, aí o medo vai lá e segura, não faça isso, porque isso é mau karma, isso é ruim. Ter medo das consequências, alguém vai ficar sabendo, alguém vai me criticar, aí o medo segura a bronca. Mas o ideal é que isso seja um recurso em último caso, para que em último caso você tenha essa rede de segurança.

O ideal é fazer as coisas por inteligência, por bem-querer, por compaixão, por autoestima, por respeito, qualidades nobres. E aí gerando mais bem-estar você fica cada vez menos aversivo, quanto mais você tem bem-estar dentro de si, mais capaz de tolerar aquilo que não é agradável no mundo você fica. A questão de vibhava-tanhā começa a diminuir um pouco. E quanto mais bem-estar você tem dentro de si, mais fraco fica este impulso desesperado em buscar prazer fora de si. Então kama-tanhā abranda. E quanto mais bem-estar você tem dentro de si mesmo, e esse bem-estar vem dessas boas qualidades da mente, menos necessidade vaidade, exibição de vaidade que depende da opinião alheia você tem. Então bhava-tanhā também abranda, fica mais tranquila, você tem autoestima.

Quem tem autoestima não precisa de vaidade, a vaidade não é necessária, é dispensável. Eventualmente ela começa a experienciar bem claramente paz. A mente fica tranquila, fica um fenômeno, sereno e tranquilo, agradável, suave e harmoniosa. Quando a mente é assim ela tem a característica da clareza. Ela enxerga claramente sem aquela bagunça toda de queimação constante, medo, ansiedade, ganância e preocupação.  Sem isso queimando, as coisas são bastante óbvias, você olha ao redor e pensa: “Ah, é isso, é óbvio”. Aquilo é tudo complicado por causa dessa bagunça que é a mente das pessoas.

Quando a mente se abranda, fica tranquila, é tudo bastante óbvio, não tem nada de mais no mundo, não tem mistério. Era para isso ser fácil, é tudo tão óbvio. O que é incrível é o tamanho da cegueira das pessoas. Mas o mundo em si é um negócio bem tranquilo, as pessoas é que são esquisitas. Então com a mente clara, o problema de micchā-ditthi também se abranda porque a pessoa começa a enxergar claramente, a começar a ter a atitude correta com relação ao mundo, o ponto de vista dela fica correto, o ponto de vista dela sobre o que é naturalmente fica alinhado com a verdade. Micchā-ditthi também se abranda naturalmente. E micchā-ditthi se abrandando, a mente fica ainda mais tranquila porque ela entende do mundo, quando ela entende o mundo aquilo em si já gera bem-estar, apazigua aquela queimação.

Entendendo o mundo, a pessoa age de maneira correta. Então ela não comete mais essas gafes medonhas, essas tolices absurdas que a gente comete no dia a dia achando que está sendo esperto. Então as pessoas não fazem mais esse tipo de besteira. Como eu falei, tem o ciclo que leva a pessoa para baixo, tem um ciclo que faz as pessoas ficarem cada vez piores. Mas também tem o ciclo reverso, tem o ciclo que faz as pessoas ficarem cada vez melhores. É uma coisa que pega embalo e vai rodando sozinha, é uma coisa que chega uma hora que fica bem agradável.

Por isso que aí talvez esteja uma diferença crucial entre Budismo e Cristianismo. Essa ideia de que bondade é sinônimo de sacrifício e sofrimento, nunca. Na verdade, se você fizer bem-feito, a bondade fica um negócio natural e tranquilo. Tem um pouquinho né, quando você está trocando de um pé para o outro tem esse período de atrito, até você conseguir virar esse jogo. Mas quando você vira o jogo, é a coisa mais agradável que existe, muito mais agradável que o ciclo dos prazeres sensuais. É muito mais agradável que o ciclo da vaidade, o ciclo da loucura que as pessoas fazem.

Dentro do Budismo essa ideia é totalmente falsa, não existe isso. Na verdade, se olhar com atenção, se perguntar para uma pessoa inteligente dentro do Cristianismo ela também vai explicar que “não, não é assim que isso funciona, isso é uma visão incorreta do que é”. Na verdade leva a felicidade, mas não é a felicidade dos prazeres sensuais, não é a felicidade mundana. Mas existe essa compreensão de que boa pessoa é a pessoa que sofre e sacrifica, algumas pessoas entendem assim, mas não é bem isso.

 

Palestra de Ajahn Mudito. Monge da Tradição da Floresta. Budismo Theravada. Abade do Mosteiro Budista Sudhavāri, em São Lourenço, Brasil.

 

Transcrição realizada por Estela Ikezire. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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