O origami é, em uma definição simples, a arte de dobrar o papel, criando representações de seres ou objetos, sem cortá-lo ou colar pedaços. Tradicionalmente praticado no Japão ao menos desde o século XVII, durante o Período Edo (1603-1868), sua popularização em vários países do mundo possui uma longa história, que passa por alguns lugares e pessoas chaves, mas que não iremos abordar aqui, o objetivo desse texto é uma elucidação do origami em si. Hoje, quase todos conhecem ou já ouviram falar dessa arte, praticada por lazer ou para fins lúdicos em escolas e por pessoas de todas as faixas etárias.
Apesar de poder atingir grandes níveis de sofisticação, com representações bastante complexas, valendo-se de técnicas que vão desde a acoplagem de mais de uma folha de papel para se representar animais de quatro patas, até o uso de tesselações para formar figuras geométricas abstrusas, o origami mais conhecido do mundo é sem dúvida o singelo Tsuru (grou). Um símbolo importante na cultura japonesa, existem algumas histórias muito interessantes sobre o Tsuru que valem a pena mencionar. Escolhi compartilhá-las, porque a meu ver, ao mesmo tempo em que são informativas também oferecem a possibilidade de aprendizados que conectam estas histórias com a nossa prática cotidiana no Zen.
Figura 1 – Tsuru. Feito enquanto escrevia o texto
O grou-japonês
Muitas pessoas, ou pelo menos eu pensava assim, acham que o Tsuru representa uma garça. Porém se trata de um animal diferente. Grou é o nome dado comumente à família das aves gruiformes, que possui 14 espécies distribuídas pela América do Norte, Europa, África, Ásia e norte da Austrália. O grou-japonês (Grus Japonensis), que figura nas pinturas e outras representações artísticas tradicionais do Japão e outros países asiáticos, é a segunda espécie de grou mais raro que existe. Atualmente em risco de extinção, pode ser encontrado no leste da Rússia e no sudoeste da Ásia. É uma espécie migratória, de hábitos gregários, ou seja, vive em grupos e se comunicam umas com as outras. Costumam passar as primaveras e verões nos pântanos das regiões temperadas no leste da Ásia e os invernos nos pântanos de água doce ou salgada da China, Japão e Península Coreana. Há atualmente também uma população não migratória que permanece todo o ano em Hokkaido, no Japão, uma ilha mais ao norte do país.
Figura 2 – Ilustração do grou-japonês
Algumas peculiaridades do grou-japonês me chamaram atenção durante minha rápida pesquisa. Primeiramente, parece tratar-se de um animal que está há bastante tempo no mundo, cerca de 60 milhões de anos segundo evidências fósseis. Não consegui na verdade confirmar esta informação, mas não pude deixar de pensar que se for mesmo assim, é bastante triste que depois de todo esse tempo, hoje, por nossa causa, esse animal esteja em risco de desaparecer. Esta espécie não é a única, claro, dado que vivemos em um tempo de grandes perdas e extinções, e muitas outros seres menos carismáticos, digamos, vêm desaparecendo sem que nem percebamos. Sempre que me deparo com uma informação dessas sou levado a contemplar nascimento e morte, a interdependência entre as coisas e os seres, e a continuidade dos processos que permeiam a vida e o universo. Apesar de isso constituir a realidade nua e crua da existência, a humanidade, ou parte dela pelo menos, parece ter a capacidade de acelerar e intensificar esse ciclo.
Outras coisas também me levaram a imaginar o caráter particular do grou-japonês. Em seus hábitos alimentares, diferente das outras espécies da mesma família que preferem procurar alimento em águas rasas, este tipo de grou escolheu se alimentar em pântanos com águas mais profundas, ricos em matéria em decomposição. O estabelecimento de uma relação de constituição mútua entre o grou-japonês e esse ambiente levou-o a tornar-se mais especializado em seus hábitos e técnicas de caça. Optando por tentar conseguir seu alimento em lugares desprezados por outros, o grou-japonês desenvolveu um bico afiado tal como uma lança e uma precisão sem igual na captura de suas presas, graças a sua técnica de “andar-e-bicar”.
Em relação aos seus hábitos reprodutivos, descobri que após formarem um casal, as aves parceiras assumem ambas o compromisso na elaboração do ninho e no cuidado da prole durante a postura e após a eclosão dos ovos. O ninho, por sinal, é feito de lama e vegetação morta, materiais abundantes nos pântanos e que os grous sabem aproveitar muito bem, usando-os para preparar a chegada de uma nova vida no mundo. A parceria costuma durar durante todo o ano ou mesmo até uma das aves morrer. Além disso, os casais não se formam de maneira trivial, mas ao longo de um período de intensas performances artísticas, no qual as aves se entregam a uma espécie de festival, durante o qual os casais se formam por afinidade, sincronismo e poder de atração mútuo entre seus cantos e danças (The Crowned Crane’s Courtship Dance | Japan – YouTube). Daí para frente, muitos casais continuam a executar suas performances durante toda a vida que compartilham juntos.
A simbologia do Tsuru
Talvez por essas características que acabo de destacar, o Tsuru seja símbolo da longevidade, da boa fortuna, da prosperidade, assim como da fidelidade e do amor conjugal na cultura japonesa. Mas é também um símbolo de esperança e da paz, desde a trágica explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, durante a Segunda Guerra Mundial. No Memorial da Paz das Crianças em Hiroshima, há um monumento em homenagem a menina Sadako Sasaki, que contraiu leucemia aos doze anos, uma década depois de ter sido exposta a chuva radiativa que caiu após o ataque da bomba. Quando estava em tratamento no hospital, desejando se curar da doença, Sasaki empreendeu a tarefa de fabricar os pássaros de papel, na esperança de que fosse verdade a antiga crença de que se alguém completasse 1.000 dobraduras com a mente concentrada para sanar uma necessidade, o pedido seria realizado.
Figura 3 – “Mil Tsurus”, Jakuchū Masanori (1716-1800)
O Tsuru figura em histórias do folclore japonês, assim como em inúmeras representações artísticas contemporâneas e mais antigas além do origami, como na pintura, na cerâmica e na poesia. A imagem acima, que compõem o acervo do Museu Nacional de Tóquio, é do mestre Jakuchū, figura singular do período Edo, considerado um artista excêntrico e independente, que não estava ligado a nenhum movimento artístico em particular, mas que criou um estilo totalmente pessoal. Na poesia, o grande mestre Bashô, o mais conhecido poeta do mesmo período, criador do estilo tradicional de haikai, também homenageou o pássaro com seu estilo direto e evocativo (Frade, 2014, p.148):
“samidare ni
tsuru no ashi
mijikaku nareri”
Chuva de verão
Perna de garça
Então se torna curta
Aprendendo a “dobrar”
Depois de pesquisar e ler sobre o Tsuru, eu decidi ter a experiência de dobrar um origami. Se me lembro bem, desde a época da escola eu não fazia isso. Encontrei esse vídeo ensinando como fazer: Origami: Tsuru – Instruções em Português BR – YouTube. Antes de seguir lendo o texto, caso deseje, pode tentar fazer o origami seguindo as instruções do vídeo. Você pode fazer sozinho, ou convidar seu companheiro ou companheira, amigo ou amiga, seus filhos ou familiares. Enfim, qualquer pessoa que você ame e queira passar tempo junto realizando uma atividade divertida.
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Enquanto dobrava fui percebendo algumas coisas. Primeiramente notei que é necessário escolher bem o papel que se irá usar. Não pode ser um papel muito fino e maleável, tampouco um papel muito grosso e duro. Além disso, deve se ter atenção na hora de cortar a folha que escolher para que forme um quadrado o mais simétrico possível. É necessária muita atenção e cuidado também quando for começar as dobras que formarão o Tsuru. Não é recomendável forçar demais o papel, com suavidade é possível deixar que a própria mecânica da dobra faça parte do trabalho. Os lados do papel precisam ficar bem alinhados e encaixados um por cima do outro a cada dobra, porém, conforme fui prosseguindo, percebi que quanto mais eu ia dobrando mais difícil era manter o alinhamento, e não podia evitar que as imperfeições aparecessem. Apesar disso, o resultado não foi dos piores, como é possível ver na imagem no começo do texto (Figura 1).
Com estas observações em mente, pensei se não seria possível fazer uma brincadeira com a palavra “dobrar”. Na tentativa de conectar o origami com a minha prática iniciante no Zen, pensei que em pelo menos dois sentidos, um literal e outro metafórico, a prática no Budismo poderia talvez ser entendida como um tipo de “dobra”. De modo literal, nos dobramos – suavemente na maioria das vezes – em gasshō, assim como dobramos todo nosso corpo sobre ele mesmo ao realizar as prostrações; em um sentido metafórico, naquilo que constitui o cerne da prática na nossa escola Soto Shu, “dobramos” nossa mente sobre ela mesma quando fazemos zazen.
Quando vamos praticar, precisamos escolher um bom lugar, o mais tranquilo possível. É necessária atenção à ritualística e na hora de sentar e montar a postura, para que consigamos acalmar nossa mente e desfrutar a prática. No entanto, não é recomendável forçar demais a postura, mas manter-se naturalmente ereto, imóvel e deixar a respiração fluir de modo espontâneo. Devemos deixar os pensamentos fluírem igualmente, sem reter nenhum deles, sem cogitar, elaborar ou imaginar, mas também sobretudo sem nos forçar a “não pensar em nada”. Da mesma forma que, ao fazer o origami, vamos percebendo que quanto mais dobramos o papel mais difícil é manter o alinhamento, quanto mais dobramos nossa mente sobre ela mesma vamos percebendo como somos falhos e imperfeitos. Por mais que as vezes fiquemos chateados e as vezes envergonhados por achar que não estamos nos dedicando o suficiente ou por qualquer desatenção na vida cotidiana, aos poucos, estudando e ouvindo os mais experientes, vamos tentando desenvolver um olhar mais compassivo em relação a nós mesmos e aos nossos erros e deslizes. Ao fazer isso, ao reconhecer que somos passíveis de errar, que não somos, de maneira nenhuma, perfeitos e que a prática é um caminho difícil, inevitavelmente estendemos essa atitude para todas as demais pessoas e seres, entendendo que cada um está enfrentando uma difícil caminhada, que todos precisam de ajuda e de compreensão para melhorar. Assim, por mais que achemos que não fizemos um zazen tão bom assim, no final sempre colhemos um grande benefício com a prática.
Por fim, gostaria de concluir este texto com uma última “dobra”, semiótica poderia chamar, trazendo minha interpretação do que podemos aprender também sobre o Budismo com o Tsuru, a partir das informações que pesquisei para este texto. O grou nos ensina com seus hábitos a estarmos concentrados com nosso corpo e nossa mente no presente, imersos em nosso meio, de modo a reunir o que há de melhor em nós mesmos e no lugar em que vivemos para construir uma vida digna e equânime. Ensina-nos a assumirmos responsabilidade em nossas relações afetivas e na condução de uma vida compartilhada com nossos cônjuges e familiares. Ensina-nos também a persistir e insistir na beleza e na graça de um mundo que parece estar em ruínas e pior a cada dia. Já sua simbologia e figuração na arte nos inspiram a cultivar bons sentimentos e contemplar os aspectos da existência.
Texto de Guilherme Henriques Soares. Antropólogo. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen