Zen, Arte e Fotografia: Perspectivas dos Mestres

Fotografia por John Daido Loori – Still Point Copyright ©2008 John Daido Loori Fonte: https://theawakenedeye.com/pages/let-your-subject-find-you/

 

 

As coisas (seja na arte como na vida) são relativas e intercambiáveis, e representam mais do que apenas elas mesmas.

Monge Kōmyō Sensei em sua dissertação “A Arte Zen e o Caminho do Vazio”

 

O mestre John Daido Loori Roshi, treinado em ambas as tradições Sōtō e Rinzai do Zen Budismo, é uma daquelas figuras representativas dos mestres que privilegiaram o ocidente com a difusão correta do Dharma. Fundador do Zen Mountain Monastery, em Nova York, foi aluno de Hakuyu Taizan Maezumi Roshi (também professor de Doshō Saikawa Roshi, superintendente para o Zen Budismo da América do Sul por 15 anos e o mestre de muitos dos professores do Brasil).

Tendo falecido em 2009, sua vida e trabalho continuam como um marco no Zen ocidental. Para este artigo, utilizamos de um de seus grandes amores, a fotografia, para ilustrar a profunda relação que o Budismo, em específico o Zen, pode tecer com o mundo das artes. Em seu caminho, Loori Roshi reconhece que foi seu contato com a fotografia que o direcionou ao encontro com o Dharma.

Naturalidade, espontaneidade e ludicidade são todos os aspectos da mente comum que vislumbra o mundo das coisas tal como elas são.  Viver plenamente está vida significa ver tudo isso.  A porta de entrada para esta experiência é o processo criativo.  Por favor, mergulhe profundamente nele.  Dê-lhe uma oportunidade de fazer o que é capaz de fazer.  Engaja-o plenamente com todo o corpo e mente.  Se o fizer, mais cedo ou mais tarde, esta forma ilimitada de ser será a sua própria.  Nunca fará sentido, e você nunca será capaz de a explicar a ninguém, mas irá experimentá-la, e ao fazê-lo, irá torná-la real”.

John Daido Loori Roshi em seu livro Zen of Creativity, tradução livre

 

Para o Roshi, a criatividade desempenha um importante papel na prática budista, a considera, pode-se dizer, como a ferramenta que pode articular a relação sujeito/objeto, a pessoa e o mundo, na criação de uma relação aprofundada e significativa com o existir, que supera a imaginada separação entre o sujeito e o seu meio, evocando o conceito budista de anatman, não-eu, a falta de existência independente, na concepção da arte, e oferecendo, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma arte do viver.  Para nos auxiliar nesta compreensão, contamos com o profícuo trabalho do monge zen Kōmyō Sensei, mestre em Filosofia da Arte, escritor e pintor, em sua exploração da relação entre o Zen e a Arte.

“(…) neste sentido, a prática zen apresenta-se como uma ação onde mente e corpo mergulham profundamente no ato, sem qualquer artificialismo ou sem se tornar uma mera imitação artificial do que quer que seja. Para a mente em estado de não-eu, a ação criativa é tão plena de sentido como a vida. Mas ao mesmo tempo a experiência não cria raízes narcisistas, e, portanto, o artista exprime-se totalmente desprendido de qualquer identificação egoísta”.

Kōmyō Sensei “A Arte Zen e o Caminho do Vazio”

 

O artista, então, exprime profundamente seu olhar a partir de um contato honesto e imparcial (ou seja, não dualístico e não-egoico) com seu meio, e sua obra refletirá tal característica de seu “vir a ser” como parte constitutiva do todo que representa.

Loori Roshi descreve em seu livro Zen of Creativity o processo da fotografia, como concebido por seu professor Minor White. Vemos em sua instrução uma perspicaz descrição do que estamos falando:

Aventure-se na paisagem sem expectativas. Deixe que o sujeito da sua foto o encontre. Ao abordá-lo, sentirá ressonância, uma sensação de reconhecimento. Se, quando se afasta, a ressonância desvanece-se, ou se se torna mais forte à medida que se aproxima, saberá que encontrou seu sujeito. Sente-se com o seu sujeito e aguarde que a sua presença seja reconhecida. Não tente fazer uma fotografia, mas deixe que a sua intuição indique o momento certo para soltar o obturador. Se, depois de ter feito uma exposição, sentir uma sensação de conclusão, faça uma reverência e abandone o sujeito e a sua ligação com ele. Caso contrário, continue a fotografar até sentir que o processo está completo”.

John Daido Loori, Zen of Creativity, tradução livre

 

A fotografia, uma arte técnica e, de certa forma, imediata, se caracteriza pela apreensão de uma imagem através da luz, de uma maneira, banalmente falando, semelhante ao funcionamento de nossos olhos. Podemos estender essa compreensão para dizer que, assim como com nossa visão, não é a própria apreensão da luz que vai dar o significado à imagem produzida, mas sim a perspectiva, e a compreensão, de quem a percebe. Como diria o axioma Zen: “Samsara ou Nirvana, é apenas uma questão de perspectiva”. Da mesma forma, ao vermos uma foto, ou fotografarmos alguma coisa, o produto não é apenas a captura da luz através da lente da câmera, mas é uma imagem, uma captura de um momento real, que pode representar algo diferente da soma das suas partes. Esta é a experiência artística da fotografia. Mais além, ao considerarmos a interdependência da relação fotógrafo-objeto, é possível perceber a foto como encontro; e neste encontro as fronteiras entre sujeito e mundo se transformam em interpenetração. A seguir, Loori Roshi fala sobre isso:

Pintor, pincel, tela, imagem, sujeito – eles não são muitos. O pintor é o pincel, a imagem é o pintor, o sujeito é o objeto, a tela é a tinta. Essas coisas só se separam quando as separamos pela forma como utilizamos a nossa mente. Quer esteja a falar de uma pintura, Mu, uma árvore, um Buda, ou um ramo de ameixa – como a vê, como se relaciona com ela tem a ver com a forma como vive a sua vida, com a questão da vida e da morte em si”.

John Daido Loori Roshi em “The Eight Gates of Zen

 

É possível considerar este assunto como uma elaboração metafísica, ou filosófica, da arte e da fotografia, alienando-a, então, de nosso cotidiano. E de fato é comum viver assim, sem percebê-las em nossa vivência. Da mesma forma é possível criar arte desta maneira. Mas, como sempre apontam os mestres, e como diz Loori Roshi, também é possível, e necessário, que pratiquemos o suficiente para que a interdependência e a impermanência das coisas se tornem aparentes para nós, em nossa própria experiência. Quando estivermos neste caminho, talvez seja possível compreender as palavras de Hisamatsu Shin’Ichi, como citadas por Kômyô Sensei:

Em outras palavras, quem está se expressando e aquilo que é expressado são idênticos. Se fosse de outra forma, esta não poderia ser considerada como uma verdadeira [arte] Zen”.

Hisamatsu Shin’ichi, citado por Monge Kômyô, em “A Arte Zen e o Caminho do Vazio”

Fotografia por Minor White, fonte e direitos: https://www.howardgreenberg.com/artists/minor-white

 

A obra de Minor White e de Loori Roshi são fotografias das belezas não vistas, ou difíceis de se ver, e as belezas mais aparentes da vida. Na verdade, ousaria dizer que são a mesma coisa. A mensagem que eles passam, então, é aquela que nos remete ao momento, para os pequenos detalhes e gostos do presente. Através da técnica, da cuidadosa observância e presença, seus trabalhos surgem como portais para o contato com aquele olhar ingênuo, desobstruído e criativo, para a vida. O criativo cria, e criação é a desenvoltura do homem em contato com a alteridade do mundo, em profunda interdependência. Talvez seja possível aprender com isso e levarmos esta perspectiva para nossa prática.

 

Texto de Matheus Coutinho. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

 

 

 

 

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