Poema Zen para Tempos de Intolerância

A violência, o ódio, a ignorância e o medo permeiam toda a história humana, mas é preciso lembrar que o amor, a compaixão, o altruísmo e a coragem também. Entretanto, quando somos assolados pelo sofrimento causado por ações motivadas pelo ódio, é difícil continuar a olhar os perpetradores de tais ações como semelhantes. Este talvez seja um dos maiores desafios com o qual um praticante pode se defrontar, reconhecer uma natureza comum em seu algoz e agir, pensar e sentir a partir de tal conhecimento.

Um exemplo muito marcante disso é o do monge tibetano Lopon-la que ficou preso por 18 anos após a invasão e ocupação chinesas. Quando finalmente liberto, foi como refugiado para a Índia e em uma conversa com o Dalai Lama, relatou que havia sido torturado muitas vezes na prisão para que renegasse a sua religião. Quando questionado se passou por muitas situações de medo no período, respondeu que a única coisa da qual, por vezes, teve medo foi da possibilidade de perder a compaixão pelos chineses[1].

Vivemos um momento histórico no qual as novas mídias sociais têm sido vastamente usadas para gerar e alimentar a polarização política. Pessoas com a mesma linha de pensamentos formam redes virtuais de troca de informações que limitam o acesso ao pensamento dissonante de tal forma que quando ele se apresenta é rechaçado sem maiores apreciações. O outro, mais do que nunca, deve ser calado, expurgado de nossas linhas do tempo, grupos de amigos e, quem sabe, se possível, de nossas vidas. Ou seja, o outro, dessa maneira, sempre será outro.

Filtros nos fazem ver mais do mesmo e, muitas vezes, nos “entregam” caricaturas e distorções da realidade, amplificando pontos de vista e elevando-os à categoria de verdades. Determinadas fontes passam a ser tratadas como inquestionáveis, enquanto outras são desautorizadas. Assim, em um sistema que se retroalimenta, a ignorância nutre o ódio que, por sua vez, favorece o distanciamento entre os grupos (afinal, por que não nos afastaríamos do que odiamos ou aprendemos a odiar?), resultando, consequentemente, no fortalecimento das condições propiciadoras da própria ignorância.

Todavia a crítica ao processo de polarização não deve nos levar, como contrapartida, à apatia ou ao relativismo. Se grupos promovem discriminação, violência, exploração etc., eles devem ser questionados, denunciados e enfrentados. Mas se queremos mesmo promover o bem de forma duradoura, precisamos estar abertos a ouvirmos, vermos e investigarmos as verdadeiras motivações por traz dos atos do outro. Do ponto de vista budista, a ignorância é a grande força a ser combatida e a compaixão é a energia a ser alimentada.

Antes do leitor julgar o texto do mestre zen Thich Nhat Hanh, que traduzimos abaixo, como sendo de uma delicadeza ingênua e utópica, pense que ele foi escrito por um monge vietnamita em plena guerra do Vietnã. Um homem que viu amigos mortos, vilas incendiadas, povoados massacrados e ainda assim o escreveu.

E, como um último choque de realidade em nós que tantas vezes agimos motivados pela raiva em nosso engajamento político, é bom saber que o poema foi lido por Nhat Chi Mai, estudante zen, logo antes dela colocar fogo em si mesma e se auto imolar como um derradeiro pedido de paz aos dois lados envolvidos na guerra.

Dissolver a própria existência, tornar-se dolorosamente calor e fumaça, para tentar salvar vidas de outras pessoas. Esse é o nível do ativismo de alguém que escolheu essas como suas últimas palavras:


“Promise me,

promise me this day,

promise me now,

while the sun is overhead

exactly at the zenith,

promise me:

Even as they

strike you down

with a mountain of hatred and violence;

even as they step on you and crush you

like a worm,

even as they dismember and disembowel you,

remember, brother,

remember:

man is not our enemy.

The only thing worthy of you is compassion –

invincible, limitless, unconditional.

Hatred will never let you face

the beast in man.

One day, when you face this beast alone,

with your courage intact, your eyes kind,

untroubled

(even as no one sees them),

out of your smile

will bloom a flower.

And those who love you

will behold you

across ten thousand worlds of birth and dying.

Alone again,

I will go on with bent head,

knowing that love has become eternal.

On the long, rough road,

the sun and the moon

will continue to shine.

Recommendation – Thich Nhat Hanh – 1965[2]

 

“Prometa-me,

prometa-me este dia,

prometa-me agora,

enquanto o sol está sobre nossas cabeças

exatamente no zênite,

prometa-me:

Mesmo quando eles

te derrubam

com uma montanha de ódio e violência;

mesmo quando eles pisam em você e te esmagam

como um verme,

mesmo quando eles desmembram e estripar você,

lembre, irmão,

lembre:

o homem não é nosso inimigo.

A única coisa digna de você é a compaixão –

invencível, ilimitada, incondicional.

O ódio nunca vai te deixar enfrentar

a besta no homem.

Um dia, quando você enfrentar essa fera sozinho,

com sua coragem intacta, seus olhos bondosos,

inalterados

(mesmo que ninguém os veja),

do seu sorriso

vai desabrochar uma flor.

E aqueles que te amam

vão te contemplar

em dez mil mundos de nascimento e morte.

Sozinho de novo,

eu vou continuar com a cabeça inclinada,

sabendo que o amor se tornou eterno.

Na longa estrada áspera,

o sol e a lua

continuarão a brilhar.”

RecomendaçãoThich Nhat Hanh – 

1965

 

 

Texto e tradução:

Thomás Muryo 無量, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista.  Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.

Tamara Kakuji 覚慈, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen

 

Referências:

LAMA, Dalai e CHAN, Victor. The wisdom of forgiveness: intimate conversations and journeys. Riverhead Books, 2014.

[1] LAMA, Dalai e CHAN, Victor. 2014. p. 47, 48.

[2] https://plumvillage.org/articles/recommendation/

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