Mulher Oceano: Um Olhar Zen

 

No mais profundo silêncio é onde começa o mundo,

é onde o desconhecido se esconde e a partir dele tudo se cria”

(Trecho do roteiro do filme Mulher Oceano)

O crepúsculo e o mar, uma mulher desnuda na praia. O filme de Djin Sganzerla nos oferece, reiteradas vezes, o oceano, as ondas e sua música própria.

Através da história de duas mulheres, – em uma busca que, geralmente, nos conduz à nós mesmos. Mulher Oceano traz em sua poética o vazio, o silêncio, a transformação da impermanência e o espaço sensível que a tudo conecta.

A relação do movimento impermanente do mar em composição com o vazio, abre caminho para que, por meio dessa história, surja uma linda ponte entre Brasil e Japão, entre Tóquio e Rio de Janeiro, uma travessia oceânica que revela, apesar das diferenças culturais, a água como sustento, fonte e expressão do próprio fluxo da vida.

 

Vazio

O crítico de cinema Roger Ebert comentou em uma entrevista com Hayao Miyazaki sobre um aspecto de seus filmes, que é quando a trama dá uma pausa e parece não acontecer nada de especial. Ele disse: “em vez de todo momento ser ditado pela história, às vezes os personagens irão apenas sentar por um momento, ou vão suspirar, ou vão olhar um córrego, ou fazer algo extra. Não para avançar a história, mas apenas para uma sensação de tempo, de espaço e de quem eles são”. Miyazaki então respondeu: “temos uma palavra para isso em japonês, MA. E isso está lá intencionalmente”.

MA (間) é a combinação de dois Kanji, (門) Mon que significa porta ou portão e (日) Hi que significa dia ou sol. Para a cultura japonesa Ma pode significar um vazio que se expressa na ausência de algo, pode ser o intervalo entre coisas ou objetos, o silêncio entre sons ou a paz entre ações, nas palavras de Miyazaki, é um vazio com propósito, ele tem importância e significado. Talvez uma apreciação rápida nos Kanji sirva para entender um pouco do conceito de Ma. Uma porta, aberta, é essencialmente um espaço vazio, um intervalo em uma construção, uma pausa entre paredes que nos permite perceber o mundo que acontece tanto fora quanto dentro. É uma ausência que permite que esses dois mundos se misturem, que sejam um só. Os intervalos ou pausas são muito importantes e estão presentes em muitas composições artísticas como por exemplo, as partituras musicais. Sem os intervalos ou silêncio entre as notas não haveria melodia e sim um amontoado de sons tocando ao mesmo tempo. No I Ching os hexagramas são compostos por linhas e espaços e de certa forma os rios, mares e oceanos são também uma pausa entre a terra. Um intervalo que assim como separa também serve como um veículo, um meio pelo qual vidas podem se conectar, um portal.

No filme Mulher Oceano, é possível observar por diversas vezes essas pausas na trama e a maior e talvez menos explícita seja o “bloqueio criativo” que passa a personagem Hannah, escritora brasileira que está no Japão. Hannah, depois de lançar seu último livro, tem agora dificuldades em começar a escrever e por muitas vezes senta-se frente ao computador sem conseguir escrever uma única linha. Claro que para um escritor, um bloqueio pode se transformar num grande problema, mas no filme vemos Hannah transformando essa pausa num mergulho de autoconhecimento, que são expressos nos diversos Ma que surgem durante a história. Seja olhando o mar, andando por ruas quase vazias, no quarto de hotel, exposições de arte, nas livrarias ou no seu encontro com as Ama, mulheres mergulhadoras de uma tradição antiga no Japão.

Para o Zen, esse vazio é, não somente necessário como bem-vindo. Suspender por alguns minutos nossa correria diária, nos sentarmos em uma almofada frente à uma parede branca é condição sine qua non para olharmos para dentro de nós mesmos e obtermos uma investigação profunda sem filtros, pois nesse momento não existe ninguém entre nós e a parede, não há quem enganar. É nestas pausas na história que Hannah vai se descascando e se descobrindo, como uma cobra que troca de pele.

O encontro com as Ama (mulheres pescadoras-mergulhadoras. Ama: mulher do mar, em japonês), é lindo sobre todos os aspectos, uma lição que precisa ser apreendida, mas como elas mesmas dizem, “Ver, imitar e aprender. Ninguém te ensina nada”. É através da observação das mais experientes que essas mulheres vão tomando consciência de sua força e vão nos dando lições de vida. Como quando uma delas explica que é comum entrar em pânico e se debater quando a corda prende nas rochas e o ar está acabando nos pulmões, mas basta ter calma, manter a atenção, soltar a corda do corpo e subir a superfície.

 

Transformação

A travessia de Hannah acompanha a história de sua possível personagem Ana, uma nadadora do Rio de Janeiro. Nesse diálogo íntimo, ambas estão em transformação, descobrindo o que as precede, que pode ser também o as chama adiante.

O mundo nos precede em tanto, o mar nos precede em tudo”

(Trecho do roteiro do filme Mulher Oceano)

 

Uma narrativa poética nos conduz a acompanhar o movimento desse contato tão primitivo com o mar. Inúmeras imagens e sons do oceano se repetem, como um ninar que precede o despertar…para dentro.  É preciso preservar o coração livre para observar o que não está em evidência, mas que sustenta a vida e todo o seu esplendor.

A não tão clara existência de Ana como alguém além de uma personagem do livro de Hannah, coloca a vida da primeira como uma ilusão dentro da ilusão, um Samsara dentro do Samsara, mas que se conecta com a segunda não somente através do mar, mas também através da distância geográfica e das diferenças culturais. Ana irá perder sua identidade fundindo-se no mar, sendo o mar, voltando para o mar, de onde segundo algumas teorias cientificas foi onde tudo começou, se não exatamente no mar, na água.

Ao mesmo tempo, no outro lado do planeta e da ilusão dentro da ilusão, Hannah irá assumir sua identidade e nova existência, pedindo ao fotógrafo Yukihiko que suas fotos sejam identificadas com seu nome. É como se a partir daí ela tenha deixado seu passado e seus problemas para trás, como a personagem de seu livro, Ana, que “entra” no Nirvana. Assim, com um roteiro que nos guia, nós também aceitamos o convite, somos puxados para dentro e nos deixamos inundar. Viramos oceano.

A frase da Mãe de Santo, “Você não tem mais tempo, acabou. Se entregue” soa como o verso do despertar recitado no último Zazen da noite nos mosteiros Zen japoneses, “O tempo rapidamente se esvai e a oportunidade se perde” e também um chamado para aceitação da proximidade da morte, da metamorfose e da dissolução da individualidade. É como o rio que finalmente entende que seu destino é se entregar ao mar, nesse encontro não é ele quem morre, não existe um desaparecer. O que acontece é uma continuidade, o rio dilui-se e torna-se mar.

Não há perda ou ganho, apenas um encontro com o que nunca deixou de ser, um encontro com o que já é.

 

Texto de Monge Chudō. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

Marília Carbonari. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen

 

 

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