Kangyô Takohatsu
Naquele sesshin havia tomado a decisão de não realizar dokusan. Era um sesshin curto, de apenas três dias e como nada ocorria-me para relatar ao Monge Genshô, tinha escolhido não conversar com ele até mesmo para dar oportunidade para que outras pessoas pudessem fazê-lo. No entanto, no meio da prática de sábado, sinto um leve toque no meu ombro e o Jisha sussurra no meu ouvido, “Sensei quer conversar contigo”. Fiz um discreto gasshô, levantei-me, mais dois gasshô, e dirigi-me à sala de entrevistas. Aguardei do lado de fora enquanto ele terminava de conversar com outro praticante. Quando a pessoa saiu, toquei o sino três vezes e ouvi sua voz autorizando minha entrada. Entrei, fiz um gasshô com mais reverência, inclinando-me um pouco mais que os anteriores, ele pediu-me para sentar. Nos primeiros minutos conversamos sobre o retiro e como eu sentia-me. De repente ele ficou mais sério, olhou-me fixamente e disse: “Gostaria que você pensasse na possibilidade de se tornar monge”. Não me recordo muito bem, mas dessa frase até minha ordenação deve ter-se passado de dois anos a dois anos e meio e talvez quatro até chegar em Wajima, Japão, para iniciar meu treinamento em Sôjiji-Sôin no início da primavera.
Em Sôin procurei pelo monge Shôgen, um alemão, aluno de Saikawa Roshi, que já estava lá há mais ou menos cinco anos. Ele levou-me até um pequeno templo que fica dentro dos limites de Sôin. Conversamos por alguns minutos, ele deu-me instruções e mandou que colocasse o Koromo. Depois disso, amarrou minhas roupas da forma como os monges peregrinavam há séculos. Saímos desse prédio e paramos em frente à uma ponte vermelha, que ele chamou de Ponte Sem Retorno, fitou-me com olhar severo e disse “Depois de atravessar essa ponte, não há mais volta. Irás ficar um ano sem contato com a família, não poderás usar telefone e sequer escrever. Também não poderás sair do mosteiro. Tens certeza que desejas atravessá-la? ”. Depois de atravessar sozinho a ponte, percorremos um pequeno corredor e paramos em frente ao Mopan, um instrumento de madeira, ele ensinou-me um verso e pediu que batesse com força três vezes no Mopan e recitasse o verso. Repeti esse gesto por três vezes. É uma solicitação para entrar no mosteiro. Após esse pequeno ritual fui conduzido à frente de um pequeno altar de Idaten, que ficava numa das portas principais de entrada de Sôin. Fiquei de frente para o altar tendo às minhas costas as portas abertas e o frio de final de inverno entrando pelos meus pés vestidos apenas com a Waraji, que é uma sandália de palha com cordas para amarrar na panturrilha. Pelo pescoço entravam pequenos flocos de neve que logo após descongelar escorriam pelas costas aumentando ainda mais a sensação de frio. Fiquei em pé durante uma hora e meia, mais ou menos, com o zafu embaixo do braço esquerdo e o kasa, chapéu de palha, embaixo do direito, a cada cinco ou dez minutos Shôgen San vinha até a entrada e fazia-me uma pergunta, que eu deveria responder imediatamente, sem titubear. É o que se chama Mondo.
Quando finalmente pude entrar no mosteiro fui conduzido à um quarto pequeno, tangaryô, onde meu futon havia sido deixado, mas minhas malas estavam sendo revistadas em outro cômodo, pois não poderia haver nada que fosse inútil para o treinamento monástico, como revistas, celular ou máquina fotográfica. Fiquei nesse quarto por cinco dias e só era permitida minha saída para ir ao banheiro, realizar pequenos trabalhos ou praticar a cerimônia de entrada oficial no mosteiro. As refeições eram trazidas e deixadas frente à porta. Banhos não eram permitidos e podia tirar apenas o koromo para dormir. Algumas pessoas perguntavam-me o porquê disso. O que me vem à mente é que faz parte do treinamento, tem o objetivo de quebrar o ego do praticante, tirar sua vaidade, isolá-lo, deixa-lo fragilizado e sentindo-se inferior. Talvez ele desista. Devia funcionar, porque no tempo em que estive em Sôin, duas pessoas desistiram ainda no tangaryô. Terminada essa pequena quarentena fui tomar banho e raspar a cabeça, pois no dia seguinte tornar-me-ia membro de Sôjiji-Sôin em uma cerimônia dividida em duas partes, uma no Hattô e outra no Sôdô. Após a cerimônia que é um misto de Mondo com Koan, não há festa, fogos, almoço ou jantares de boas-vindas, nenhum “tapinha nas costas”, nenhuma palavra de congratulação, apenas: “Esvazie o tangaryô e volte aqui rapidamente”.
A promessa feita em tom de ameaça antes de atravessar a Ponte Sem Retorno não se cumpriu totalmente. Foi um ano longo, sem escrever para a família e sem telefonemas, pelo menos nos seis primeiros meses, depois tive acesso ao telefone, mas era difícil sincronizar os horários, pois só podia usar o telefone entre 19:00hs e 20:00hs no Japão. Como Shinto, algo como novato ou iniciante, não podia sair do mosteiro e tudo que eu precisasse comprar tinha que ser pedido para outros monges. Havia dias maravilhosos de trabalho no jardim, entrar na floresta e colher broto de bambu, o Grande Samu de final de ano ou os raros momentos de folga que permitiam uma caminhada despretensiosa pelo cemitério – são lugares incrivelmente calmos e silenciosos – mas uma das experiências mais marcantes em Sôin foi sem dúvidas o Takohatsu, a pratica de mendicância, que se mantém muito próxima dos tempos de Buda. Os monges saem do mosteiro com sua roupa tradicional, uma tigela e um sino, recitando o verso do Takohatsu e quando recebem uma doação, nem sempre em dinheiro, agradecem com uma oração de proteção e reverencia ao doador. Em Sôjiji-Sôin fazíamos Takohatsu a cada 15 dias e revezávamos os locais, em algumas ocasiões eram nas imediações do mosteiro, em outras nas cidades vizinhas. É muito interessante perceber o respeito que os japoneses têm para com os monges. As pessoas, quando escutavam os sinos, deixavam seus afazeres e corriam para a estrada para entregar algumas moedas ou algum produto de sua lavoura. Elas ficavam envergonhadas quando pensavam que o dinheiro que estavam dando era pouco, ou que aquele alimento fruto de seu trabalho, não estivesse à altura da importância de um monge e curvavam-se fazendo uma profunda e sincera reverência pedindo desculpas.
Os primeiros flocos de neve do inverno caíram dia 14 de dezembro, saímos do Sôdô às 05:00hs em direção ao Hattô para a chôka, o jardim estava coberto de branco e comecei a escutar os primeiros rumores do Takohatsu de inverno, o Kangyô Takohatsu. Kangyô são as penitencias praticadas no período mais frio do ano, como os banhos frios de cachoeira que ainda existem em alguns mosteiros. Entramos em janeiro e no apogeu do inverno, no segundo semestre, começamos o Kangyô Takohatsu. Acordávamos às 3:30hs, fazíamos zazen, a chôka, a primeira refeição matinal e saíamos do mosteiro às 07:00hs. Foram quinze dias seguidos nessa rotina, sair do mosteiro, percorrer cidades vizinhas e outras mais distantes e passar o dia mendigando sob forte neve. No final de algumas horas as mãos doíam e era quase impossível mover os dedos. Em alguns dias usamos a waraji e quando os pés entravam na neve o frio subia pelas pernas, era impossível se manter aquecido. Quando estávamos em cidades mais distantes éramos recebidos por outros mosteiros, tomávamos banho e jantávamos para só então retornar para Sôin. Algumas destas cidades eram litorâneas e caminhar com sandálias de palha na neve sentindo o vento frio e cortante vindo do mar é uma sensação que jamais me esquecerei.
A experiência em Sôjiji-Sôin marcou-me de muitas formas, conheci alguns pares de monges muito especiais, como Dôkô San, um senhor de 60 anos que abandou a carreira de engenheiro para seguir a vida monástica. Suzuki Roshi, Kannin Roshi que adorava samu e zazen. Kôhô San, o tenzo que me deu roupas de inverno quando percebeu que as levadas do Brasil não me aqueceriam. Jishin Roshi, que apesar de estar nas portas da aposentadoria, fazia samu todos os dias com os shinto. O pequenino Yûjin San, que sabia de cor todos os livros de sutras e os ecos dos sutras. Yûjin significa pessoa amiga ou pessoa de bom coração. E fiz pelo menos um amigo, Myôgen San, com quem converso pelo WhatsApp com frequência e que já me convidou inúmeras vezes para ir ao Japão e ficar no seu mosteiro.
Mas, de todas as experiências, sentir a proximidade e cortesia com que povo japonês trata os monges foi algo muito especial. Em todo lugar que ia, quando descobriam que eu era monge Zen, tratavam-me com respeito e cordialidade, a ponto de em alguns lugares não pagar por refeições. Todo esse calor e amabilidade aqueceram-me durante o Kangyô Takohatsu. Pelo menos o coração.
Texto de Monge Chûdô. Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
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