“É o Dharma que nos encaminha de acordo com as condições kármicas que trazemos ao longo de incontáveis vidas”
O reverendo Jean Tetsuji é um dos clérigos da escola da Terra Pura, ou Jôdo Shinshû, de tradição Mahayana, do templo Higashi Honganji, em São Paulo. Essa tradição é uma das mais populares no Japão. Sua adesão à essa escola ocorreu depois de visitar diferentes abordagens e, a partir do contato com a Jôdo Shinshu, se identificar com sua rica liturgia, além da profunda perspectiva de libertação do samsara sem práticas difíceis ou complexas.
De acordo com o rev. Jean Tetsuji, para entender mais essa escola é necessário também conhecer as trajetórias dos sete mestres da Índia, China e Japão, os quais se dedicaram a este caminho, e que culminou no mestre Shinran no Japão no século XII. As críticas levantadas por esses mestres apontavam a dificuldade e o insucesso em se atingir o pleno despertar por esforços próprios em uma era distante de um Buda presente, encontrando resposta no refúgio da Terra Pura de Amida.
Confira este e outros detalhes numa entrevista exclusiva para o Budismo Hoje.
Como surgiu seu interesse pelo Budismo em geral e pela Terra Pura em particular?
Rev. Jean Tetsuji: Minha jornada começou por volta de 2002, e como muitos iniciantes, peregrinei por algumas escolas budistas até conhecer o grupo de estudos Roda de Dharma no templo Nishi Honganji de São Paulo e me identificar com o pensamento da Terra Pura. Alguns anos depois, migrei para o templo Higashi Honganji, onde tomei refúgio como leigo, a convite do saudoso rev. Wagner Haku-shin, o qual foi meu mentor de ordenação como clérigo em 2013. Num primeiro momento, parece que a gente escolhe o caminho budista, mas eu costumo dizer que é o Dharma que nos encaminha de acordo com as condições kármicas que trazemos ao longo de incontáveis vidas.
O que me realiza na escola Terra Pura, ou Jôdo Shinshû, de tradição Mahayana, além de sua rica e linda liturgia, é a ampla e profunda perspectiva de libertação do Samsara sem práticas difíceis ou complexas, levando o praticante ao entendimento da realidade pela escuta do Dharma (prática de Monpô) como ação da Luz Búdica e expressada pelo Namu Amida Butsu. Existe uma narrativa soteriológica nesta vertente em que o Dharma, personificado em um Buda (Amida em japonês ou Amitabha em sânscrito), é quem liberta o ser vivente por meio do Coração Confiante (Shinjin) ao que poderíamos chamar de fé, mas não num modelo ocidental, e sim numa profunda e serena tomada de consciência sobre a Realidade Última, o Absoluto, o Corpo de Dharma (Dharmakaya). Há várias contextualizações a serem consideradas antes de criarmos um julgamento teísta dentro do Budismo.
Para entender mais essa escola é necessário também conhecer as trajetórias dos sete mestres da Índia, China e Japão, os quais se dedicaram a este caminho, e que culminou no mestre Shinran no Japão no século XII. As criticas levantadas por estes mestres apontavam a dificuldade e o insucesso em se atingir o pleno despertar por esforços próprios em uma era distante de um Buda presente, encontrando resposta no refúgio da Terra Pura de Amida.
É uma escola muitíssimo interessante de se conhecer e que rompe com certos clichês ocidentais. A escola Terra Pura é, como boa parte do Budismo, ramificada em ordens e no Japão é a maior dentre as demais em termos de templos, fieis e clérigos, por razões que me seria extenso expor. Importante notar que escolas budistas não concorrem entre si como a mais correta ou melhor, mas, sim, são vários caminhos para o mesmo fim, pois o Buda Shakyamuni expôs o Dharma de formas diferentes para tempos e condições distintas. No Brasil, ela vem sendo conhecida por sua visibilidade na internet, mas foi essencialmente um Budismo da comunidade japonesa, vinda com os imigrantes.
Fora de suas funções como reverendo, o senhor tem uma carreira profissional. Poderia nos falar um pouco sobre isso? Como o senhor faz para atender a esses dois universos?
Rev. Jean Tetsuji: Uma das características do Budismo japonês é não ser essencialmente monástico, sendo comum aos monges e clérigos trabalharem e mesmo casarem. Sou profissional da aviação civil desde 1994. Então, divido meu tempo entre “os céus mundanos e os céus dharmicos”, intercalando os dias de folga com atividades do templo, onde há uma demanda maior aos fins de semana com os ritos memoriais, cerimonias anuais, cursos, entre outros. Com o mundo virtual potencializado, sobretudo durante a pandemia da Covid-19, a atuação clerical tomou nova e curiosa dimensão.
No Budismo Shin não somos totalmente monásticos e temos duas modalidades de clérigos: os missionários, que abdicam do trabalho laico (porém não familiar) e pertencem integralmente à Ordem, e os adjuntos, como eu, onde mantém sua rotina de vida em paralelo. Essa é outra característica que me encantou no Budismo Shin, pois me permite seguir a vida cotidiana e o Dharma conjuntamente. Tenho amigos monges no Budismo Zen que são médicos e arquitetos. A proposta doutrinária da Terra Pura é que estabelece a ideia de ausência do monasticismo, e aqui precisamos entrar na história de vida do Mestre Shinran.
Quais as opções de atividades oferecidas à comunidade budista, atualmente, e que contam com a sua participação?
Rev. Jean Tetsuji: Faz uns dez anos que nós temos um encontro, exclusivamente em português, chamado Dharma Dominical. A cada manhã de domingo, um clérigo faz a leitura de um trecho do Grande Sutra da Vida Imensurável e uma reflexão do Dharma para os dias atuais. Antes da pandemia havia ainda um bate-papo em uma roda de chá, mas não a retomamos. De acordo com minha escala de trabalho, eu participo, além do Dharma Dominical, dos ritos como Obon, Hanamatsuri e Ohigan. Tenho atuação em encontros públicos nos diálogos de combate à intolerância religiosa e na pauta de inclusão religiosa na comunidade LGBTQIA+. Algumas vezes ao ano, assisto alguns templos do interior para palestras do Dharma, além de simpósios entre as nossas ordens irmãs do Budismo Shin.
Recentemente a mídia levantou dados sobre a quantidade de jovens sem religião em São Paulo (números, inclusive, superiores à quantidade de jovens católicos e evangélicos juntos). Qual o papel do Budismo para esse público?
Rev. Jean Tetsuji: O Budismo traz uma proposta religiosa baseada na ética social pela perspectiva dos preceitos, da interconectividade, da interdependência, da lei de causa e efeito, da equidade, da paz e do respeito coletivo. Desta forma, penso que seja uma religião que responde muito bem às demandas atuais em termos da autocrítica e de reconstrução social, sem a subjetividade da crença ou dogma espiritual, quando questionamos tudo aquilo que provoca o sofrimento, seja pelo egoísmo, ganância, raiva e intolerância. E vejo que o Budismo oferece um papel de corrigir os impulsos do ego aplacando a discriminação, o desrespeito, a desigualdade, a devastação do meio ambiente e outros temas da sociedade. Tudo isso dialoga com o jovem atual.
Ainda sobre a questão anterior, o senhor acredita que no Brasil o Budismo acabou se tornando uma religião para adultos? Como é a capilaridade, a seu ver, entre crianças e jovens?
Rev. Jean Tetsuji: Na verdade, eu sempre vi o Budismo com uma natureza adulta, de forma complexa em entendimentos doutrinários e psicológicos. Por não ser uma religião de mandamentos, ele não diz ou proíbe o que você deve fazer. Em vez disso, ele convida a analisar interna e externamente a fim de compreender a origem do sofrimento, sua problemática central, e sua extinção, seu propósito final, desenvolvendo práticas de convivência compassiva e de corresponsabilidade pelo correto viver. Essa introspeção tem, a meu ver, um comportamento adulto quando buscamos o sentido da vida ao questionar por que sofremos.
O jovem e a criança não fazem ainda esse questionamento tão profundamente. De certo, há muitas formas de simplificar a doutrina budista para ensinar crianças e adolescentes, no intuito de formar cidadãos mais compassivos e justos. No templo de São Paulo temos atividades infantis onde a mensagem do Dharma é passada em forma de literatura, na participação dos ritos, em oficinas artísticas e culturais e mesmo em congressos em resorts. Criar o senso de responsabilidade em todas as esferas da vida e do coexistir dignamente desde cedo pode resultar em indivíduos voltados à paz e ao respeito.
Como marcar presença num país fortemente influenciado pelo abrahamismo? Quais os maiores desafios, hoje, do Budismo?
Rev. Jean Tetsuji: Estima-se que cerca de 244 mil budistas no Brasil (IBGE, 2010), dentre 213 milhões de brasileiros, ou seja, somos invisíveis em expressão, porém conhecidos e estimados pelos princípios budistas éticos da paz e tolerância. Contudo, são muitos desafios. Creio que um deles é conviver em uma sociedade teísta, onde ainda há muita estranheza em não ser penitente a Deus. Pairam ainda muitos clichês sobre o Budismo, como imaginar ser um único formato em tempo e espaço, de não o entender como religião, mas apenas como filosofia de vida, de que todos os budistas são vegetarianos, meditam, entre outros. Trazemos ainda no inconsciente coletivo cultural muitos conceitos abraâmicos, sendo comum projetá-los no ensinamento budista. Às vezes eu brinco que é mais fácil explicar o que o Budismo não é do que realmente é.
Entretanto, o maior desafio, a meu ver, é não permitir que a vida do cidadão seja norteada pela narrativa de valores da chamada “religião da maioria”. Isso corrói todo o respeito à diversidade religiosa e social. Infelizmente, as bancadas políticas religiosas buscam a todo custo manter a rédea dos valores humanos baseados em seus critérios. A liberdade religiosa, a equidade racial, as pessoas LGBTQIA+, as mulheres, os indígenas, entre outras pautas que tiveram direitos conquistados, são constantemente estremecidos por estas coerções religiosas unilaterais. Precisamos construir uma sociedade que permita o respeito à vida não por um viés dogmático, mas pela virtude da dignidade.
Qual a mensagem final que o senhor deixa para praticantes e simpatizantes do Budismo?
Rev. Jean Tetsuji: Entendo o Budismo como algo que deva reverberar para fora do templo, na construção de uma sociedade de paz e cidadania. O Buda nos convida a viver aqui e agora, a despertar para o que é real e verdadeiro enquanto expressão humana inspirados no Buda-Dharma. Quando Buda Shakyamuni proclama que todos possuem o potencial da Natureza Búdica e o Nirvana comum a todos, ele põe em pé de igualdade sua própria sociedade de castas que justificava pelo karma as desigualdades sociais e de gênero. Temos vivido épocas obscuras, tomadas por narrativas falsas, belicosas e desastrosas, norteadas pelos venenos da ignorância, da ganância e da raiva. Qual o papel do Budismo neste cenário? O que estou fazendo enquanto budista? Minhas falas enquanto cidadão são coerentes com o ensinamento do Buda? Creio que sejam perguntas necessárias a cada dia e pensar em uma mudança levando o diálogo da ética do Dharma, em conjunto às demais crenças e a sociedade, e encontrar aquilo que seja mais precioso a todos nós: a vida.
Obrigado pelo espaço de reflexão e ponho-me à disposição para ampliar essas reflexões! Namu Amida Butsu.
Entrevista realizada por Sonielson Luciano de Sousa. Psicólogo e jornalista. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.