Entrevista com Lama Rinchen – Monge da Escola Sakya – Budismo Tibetano – Tema Mantras

Mantras: para pacificarmos nossa própria ignorância

 Nesta edição, tivemos o prazer de realizar uma entrevista com Lama Rinchen, monge da Escola Sakya, do Budismo Tibetano. O Lama ensinou-nos sobre os mantras utilizados em sua tradição, sobre o significado, o poder das intenções, a importância da iniciação e, sobretudo, conduziu-nos nos caminhos para liberação da ignorância por meio das recitações e do Dharma.

Lama Rinchen Khyenrab Thupten Nyma é graduado em Engenharia Agronômica, pela Universidade Estadual do Norte do Paraná; Pós-graduado em Biotecnologia e Agronegócios na Universidade de Cornell, em Ithaca, NY/EUA. Mestre em Psicologia, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atua como Instrutor de Meditação em diversas cidades brasileiras, assim como ministra ensinamentos como Professor da disciplina “Regulação Emocional para Profissionais de Saúde: sustentando a motivação para cuidar”, oferecida pela Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein – São Paulo.

Praticante budista e estudioso do Budismo há 31 anos. Tornou-se monge em 2003 e foi consagrado Bhikshu (plenamente ordenado) por seu Guru Raiz, Sua Eminência 25º Chogye Trichen Rinpoche, em Kathmandu/Nepal, ao concluir sua formação monástica.

Em 2004 fundou o Centro Budista Tibetano Thupten Dekyid Öedbar Ling (Mosteiro Sakya), em Cabreúva/SP e desde então tornou-se o Lama (professor) residente do Mosteiro e representante da Linhagem Sakya na América do Sul.

 

Leonardo san: O que é um mantra? Essa palavra mantra, o que ela significa dentro do Budismo Tibetano, do Budismo Vajrayana?

Lama Rinchen: Mantra é em sua essência a atitude verbal, ou seja, no Budismo Tibetano, usamos a palavra Lung, que são os ventos internos. Quando recitamos os mantras, o movimento do ar, o movimento do verbo, o movimento do som, se pronunciamos da maneira correta, esse som, esse Lung traz as bênçãos magnetizantes da sabedoria, da deidade, à qual, ou para a qual, ou do qual, o mantra que você está rezando ou recitando se refere. O mantra é esse movimento do Lung, através da recitação das sílabas propriamente colocadas e recitadas, produz uma conexão com a atividade emanente da deidade à qual o mantra se refere.

O mantra não deve ser recitado se a pessoa que está recitando não tenha recebido a iniciação referente a essa deidade ou minimamente o que chamamos de Lung. No caso, a palavra está significa o seguinte: a transmissão oral, a autorização de um professor que tenha recebido de seu preceptor a autorização de transmitir esse Lung. Então, significa a autorização verbal para que o praticante pratique o mantra ou inclusive, que ele pratique essa Dana, o texto litúrgico ao qual aquele mantra está conectado e tanto a liturgia quanto o mantra se referem a uma qualidade emanente de uma sabedoria búdica. Os mantras devem ser sempre recitados com profundo respeito, ao recitar um mantra, os benefícios são em vários níveis de consciência. Lembrando que, por exemplo, quando a gente recita os mantras, o som vibra, como se fossem cordas musicais, vibra em nós, e essa vibração ativa a consciência, a nossa consciência mais sútil, a qualidade emanente daquela deidade.

Quando você recita um mantra e tem a iniciação, tem todo o ensinamento relativo a tal deidade, o mantra se torna ainda mais profundo porque você visualiza a deidade, no aspecto filosófico, relembra os ensinamentos relativos aquela qualidade emanente daquela deidade e através do Lung da recitação, você ativa todos esses canais. Por isso, se torna uma atividade extremamente sagrada, vamos colocar assim, dentro do Dharma.

 

Leonardo san: Gostaria de perguntar ao senhor quais os benefícios de praticar, de recitar os mantras? Qual a relação das deidades com os mantras?

Lama Rinchen: No Budismo Vajrayana a gente não recita, não há mantras que não estejam conectados a qualidade emanente de uma deidade, de um buda. Deidade, essa palavra aqui, está sendo colocada como um buda, a atividade iluminada de uma sabedoria específica. Elas não são separadas. Todo mantra é, vamos dizer assim, uma expressão resumida de um ensinamento, de uma atividade iluminada de um buda. Se pode recitar um mantra fazendo outras coisas? Vou responder o seguinte, de uma maneira bem prática: vamos supor que esteja recitando um mantra do buda Vajrasattva que é o buda da purificação, da limpeza, vamos supor que está tomando banho, sobre a visualização de Vajrasattva não vou entrar em detalhes porque requer iniciação, mas a atividade iluminada de Vajrasattva é pacificar, limpar o nosso corpo e todos os seus contaminantes, em todos os níveis que essa contaminação possa ser compreendida. Quando a gente visualiza a meditação, visualizamos que o néctar do Vajrasattva penetra o nosso corpo e todas as impurezas dos nossos condicionantes, das nossas atividades recentes, seja quando, ao longo da nossa existência essa atividade, esse contaminante possa ter ocorrido, é pacificado e purificado. Então, se você está no chuveiro, porque é uma das atividades neutras, por isso que eu já estou emendando uma coisa com a outra, a gente considera que o banho é uma atividade neutra, não é uma atividade positiva, no sentido de gerar mérito, nem negativa, no sentido de gerar causa e condições de sofrimento.  Caminhar também é neutro. Comer é neutro. Banhar-se é neutro. Mas aí vem a intenção. Se você tem um ensinamento, a iniciação e a autorização da prática e da recitação do mantra, quando você vai tomando o banho, pode tornar o banho como atividade neutra em uma atividade altamente meritória. Você visualiza Vajrasattva da maneira como é para ser, não vou entrar em detalhes, e a água do chuveiro você pode visualizar como sendo um néctar de Vajrasattva. Estar visualizando a emanação da sabedoria de Vajrasattva e a água como sendo o néctar limpando as suas impurezas como um todo das suas ações impróprias e assim por diante.

Nesse caso, está fazendo de uma atividade neutra em uma atividade geradora de méritos; simplesmente porque ao tomar o banho se conectou a essência de Vajrasattva, recitou durante o banho o mantra de Vajrasattva e visualizou todas as suas impurezas sendo lavadas, sendo purificadas e o que sobra é o néctar da sabedoria de Vajrasattva. Se está limpando a casa também pode pensar que está removendo todas as causas e condições de obstáculos e obscurecimentos.

Ou seja, o mantra tem uma coisa fundamental, que é sustentar a sua mente de maneira uni focada, ao invés de deixar a sua mente ficar vagando em pensamentos mundanos e a sua fala ficar falando coisas mundanas, que podem vir a ser causas e condições de acúmulo de sofrimento, você vai usar a sua fala para recitar o mantra, vai usar o movimento da limpeza imaginando que todos os obscurecimentos e todos os obstáculos estão sendo pacificados e purificados. Ou seja, estamos falando de sustentar a nossa atenção o tempo todo em uma prática meritória e assim não divagamos em pensamentos e atitudes mundanas. Os benefícios em recitar o mantra são inúmeros, quando a gente aprende qual é a essência de cada um.

 

Leonardo san: Qual a importância da iniciação, de saber o que se está fazendo? Não só repetindo mantras que se encontra na internet.

Lama Rinchen: Na verdade temos muitos mantras hoje publicados. Você entra no YouTube, no Spotify, escreve: “Tara branca, Chenrezig, Guru Rinpoche”; uns são bem bonitos, orquestrados, são prazerosos, conectam a nossa mente num estado de alegria, enfim, nada contra, eu tenho um professor que fala assim: “toda a atitude meritória, é meritória. ” Então, mesmo que a pessoa não tenha nenhum contato com o Budismo e de repente ela escuta um mantra, se conecta com ele, gosta de recitá-lo, deixa-a recitar o mantra, deixe-a cantar o mantra. Se naquele momento, que está cantando esse mantra, a mente está pacífica, está pensando coisas boas, está aspirando coisas boas, sem dúvida vai ter seu mérito.

Agora, quando pensamos na tradição, é diferente. Você deve receber a iniciação e ela não é para colocar você numa coisa que nunca pertenceu. Recebe-se a iniciação conscientemente, porque você vai com suas próprias pernas, você que quer ir e estar lá. Ninguém obriga ninguém a ir. Então quando vai recebe-la é um ato voluntário; teve uma intenção de estar lá. A iniciação em si é simplesmente relembrar que em você sempre houve tal qualidade, ou seja, a qualidade da deidade que você vai receber na iniciação.

Ao receber a iniciação, essa qualidade, essa semente dessa qualidade, que sempre esteve em você, é magnetizada, é como se fosse ativada, não por algo externo, mas pela sua intenção. Você tem que ter a intenção de ter recebido essa iniciação, porque ela representa que essa qualidade, nesse momento, você intencionalmente quis ativá-la. Quando você, a partir da iniciação, faz a liturgia, repete o mantra, você está expandindo, se tornando cada vez mais consciente dessa qualidade em você e aí vem a parte mais importante: como que eu trago essa qualidade no meu dia a dia, com a minha família, com meus amigos, comigo mesmo e com tudo. Quando você conscientemente sabe, por exemplo, que há compaixão em você, no seu dia a dia pode se perguntar: “eu estou sendo compassivo? Eu verdadeiramente aspiro que todos os seres, incondicionalmente, se tornem livres da experiência de sofrimento? ” Porque é isso que a compaixão significa.

Visualizar Chenrezig e rezar “Om Mani Padme Hum” significa isso.  Agora, obviamente, que talvez no primeiro momento você vai conseguir fazer isso com facilidade, pensando nas pessoas próximas a você, mas terá alguma dificuldade com aquelas pessoas que você tenha alguma dificuldade. Então, esse é o momento da grande reflexão, quando você está recitando “Om Mani Padme Hum”, por exemplo, você está intencionalmente expandindo a sua capacidade compassiva. Onde você encontrar limites para fazer isso, esses são os pontos que você deve trazer à sua meditação cognitiva, para entender porque você vê essa pessoa, ou isso, ou aquilo como um obstáculo; porque os obstáculos não são externos.  Os obstáculos existem na nossa mente, unicamente, como alegria e felicidade também. São experiências da nossa própria mente.

Quando recebemos uma iniciação temos todo o ensinamento referente aquela virtude, sobre o aspecto emanente daquela deidade. Aprendemos a recitar o mantra,  estamos totalmente empoderados de agir, de trazer essa qualidade para o nosso dia a dia. Recitar um mantra é uma atitude voluntária e para que ele venha ter o efeito que a tal qualidade ou recitação pode ter é totalmente conectado a sua intenção e a sua disposição de renunciar a todo e qualquer obscurecimento e obstáculos da sua própria mente, reconhecê-los para que você possa cognitivamente entender a natureza do obstáculo, que em última análise, como o Dharma em geral, a natureza de todo e qualquer sofrimento é a nossa ignorância. Ou seja, ignoramos a natureza última dos fenômenos.

 

Leonardo san: O senhor gostaria de falar mais alguma coisa sobre mantra que considere relevante, principalmente, pensando nessa pessoa que está iniciando contato com o Budismo Tibetano?

Lama Rinchen: Deixaria aqui que o ideal para se recitar um mantra é que você saiba a que esse mantra se refere e que você aprenda que, seja qual mantra estiver recitando, nunca será na intenção de mudar outros. Recitar um mantra significa pacificar a nossa própria ignorância, permitindo que nós tenhamos uma visão clara, uma visão verdadeira da natureza do Ser. Todo e qualquer mantra tem esse mesmo objetivo. Às vezes, a pessoa fala: “Ah, vou pegar um mantra de Mahakala, o poderoso destruidor dos inimigos”. Vou deixar a seguinte coisa: não existem inimigos externos a serem destruídos; o único inimigo que existe é a nossa própria ignorância. Essa é que tem que ser destruída e nada externo a nós.

 

Entrevista realizada por Leonardo Ota. Fundador do Projeto Sobre Budismo. Praticante no Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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