Aprender a Deixar Ir…

 

No Zen Budismo, a prática é o ponto central e o zazen (meditação sentada), a grande base. No entanto, nos é ensinado que o zazen é aquilo que nos prepara para a vida e somos convidados a levar essa mente que cultivamos na meditação para todas as atividades que fazemos. Muitas vezes, tendemos a pensar na prática como sendo algo apenas ligado ao momento em que estamos sentados em nossas almofadas. Nesta edição, trazemos a experiência de dois praticantes da Daissen na cozinha de um sesshin (retiro zen budista), como forma de lembrar como a prática está em todos os lugares.

 

“Conhecer a si mesmo, é esquecer-se de si mesmo” – Dogen Zenji

Havíamos morado em Florianópolis e praticado na sangha de lá por alguns anos. Em 2018, nos mudamos de cidade e o contato com a Daissen era bastante menor. Naquele ano, voltamos a Florianópolis em outubro para um retiro. Com a correria dos trabalhos, não conseguíamos ir aos outros retiros, até que, em 2019, conseguimos tempo para o retiro de Carnaval em Brasília. Depois de tanto tempo e, com uma mudança confirmada para o outro lado do mundo, estávamos muito animados para um sesshin e reencontro com o Sensei e a sangha. Sempre fomos do tipo que gostávamos de sesshins com muitas horas de zazen e esse parecia ser assim, pois duraria 4 dias inteiros. A vontade de sentar-se por muitas horas era enorme.

Ao chegar no local em Brasília, ficamos com a função de trabalhar na cozinha durante todo o retiro. A princípio, parecia algo normal, pois já havíamos trabalhado como jonin (auxiliar da cozinha) em outros retiros e tinha sido tranquilo. Perdíamos algumas sessões de zazen, mas participávamos de quase tudo no sesshin. Porém, esse retiro seria diferente; dessa vez, não havia outras cozinheiras para preparar as principais refeições e o número de participantes era enorme. Ainda assim, pensávamos que haveria tempo para sentar-se em zazen em alguns momentos do retiro. No entanto, quando tudo começou, percebemos que não seria assim; a cozinha nos exigiria praticamente todo o tempo dedicado a cortar frutas, legumes, preparar as refeições, lavar louças. Era cansativo e sentíamos que não era aquilo que gostaríamos de fazer. O objetivo mesmo era estar lá no zendô (local de prática) fazendo zazen por muitas horas.

Mesmo assim, tentávamos ver o lado bom de estar ali e pensar na forma de praticar na cozinha. Lembrávamos de Mestre Dogen que escreveu muito sobre a importância da cozinha na prática do Zen e de vários outros grandes mestres. Tinha que haver uma forma de praticar naquele ambiente; manter o silêncio, estar presente em cada atividade de cortar as frutas e vegetais, lavar as louças. No entanto, o sentimento do primeiro dia é de que estávamos perdendo o sesshin que tanto havíamos desejado.

Meu companheiro, parecia aceitar melhor aquele trabalho; eu me sentia bem mais contrariada. Logo depois do almoço, no tempo que teríamos de descanso até voltar à rotina da cozinha, eu caminhei chorando para o dormitório. Embora não pudéssemos falar um com o outro, ele, ao me ver em prantos, apenas disse: “Esse retiro é para servir”. Ao ouvir essas palavras, chorei ainda mais. Me dei conta do meu egoísmo, de como queria praticar para mim, sentar várias horas para alcançar a iluminação, para ser uma pessoa melhor, para mostrar para o Sensei como eu era uma boa aluna. Não queria “perder tempo” na cozinha. Ao examinar meu sentimento, percebia como não era a pessoa generosa e altruísta que acreditava ser; não passava de uma egoísta. Doía me dar conta disso e caia cada vez mais aos prantos. Porém, voltei para a cozinha com outra atitude. Ele tinha razão, o sesshin era para servir e que grande oportunidade de renunciar ao meu egoísmo, de aprender a arte dos Bodhisattvas (seres de compaixão).

A partir daquele momento tentava fazer cada atividade com alegria e entrega. Observava minhas e meus companheiros de trabalho na cozinha e me admirava como faziam as coisas; cozinhando, cortando, pensando em formas de aproveitar cada alimento, semente, casca, lavando as infindáveis louças com entrega e alegria. Que bonito era ver Bodhisattvas atuando… me sentia muito mesquinha e, ao mesmo tempo, inspirada.

Fomos nos entregando à cozinha, abrindo mão de estar lá no zendô sentados em meditação. Fomos virando um só corpo, todos na mesma situação, vivendo o sesshin desde a perspectiva da cozinha. Inventávamos receitas, imaginávamos formas de aproveitar tudo o que tínhamos ali, pensávamos se seria suficiente para todas e todos, provávamos tudo e nos deliciávamos com os sabores que criávamos e com a satisfação das pessoas que praticavam. Afinal de contas, ao cozinhar tínhamos a oportunidade de cuidar de todas e todos para que pudessem praticar o caminho de Buda.

Bem cedinho, antes do sol nascer, ali estávamos na cozinha para iniciar nosso trabalho. Lembro-me de sair para buscar flores para o altar da cozinha, escutar os grilos, sentir o vento no rosto, o orvalho na grama e ver as cores dos primeiros raios de sol que começavam a aparecer. Cortávamos as frutas, sentindo o cheiro de tudo. Preparávamos o mingau de aveia com leite vegetal. Servíamos a todas e todos e lavávamos a louça. Depois tinha chá entre refeições, cortar legumes, cogumelos, separar sementes de abóbora para reaproveitá-las na salada. O almoço era servido, as louças lavadas e pausa para um descanso. E logo iniciávamos a preparação do chá da tarde e depois o jantar. Que cansaço, mas que alegria, podíamos viver daquele jeito para sempre.

Ao final do sesshin, nosso sentimento era de que não havíamos perdido nada, mas tido a valiosa oportunidade de experienciar um retiro desde a cozinha. Essa experiência nos ensinava que a prática do Zen não é apenas sentar-se em zazen perseguindo a iluminação; mas que é importante abrir mão desse objetivo, deixar ir nossa vontade da realização pessoal, para permitir que outros seres possam praticar. A cozinha nos lembrava que a prática do Zen permeia tudo na vida e está presente em todos os lugares.

 

Depoimento de praticantes da Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

 

 

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