A célula, Sua Membrana e os Cinco Agregados

 

Alma, deixa eu ver sua alma
A epiderme da alma, superfície

Alma, deixa eu tocar sua alma
Com a superfície da palma da minha mão, superfície

“Alma”, Arnaldo Antunes, 2012

 

O surgimento da membrana celular talvez seja o evento crítico que permitiu o desenvolvimento da vida como a conhecemos em nosso planeta. Mesmo o mais “simples” dos seres vivos possui esse envoltório que separa um meio interno de um meio externo. Ao contrário do que possa nos sugerir o senso comum, a membrana é uma estrutura ativa e dinâmica, em permanente transformação, que controla o que entra e o que sai da célula, que reage aos estímulos de dentro e de fora, e que adapta seu meio interno ao ambiente onde se encontra, de modo que a “cidadela” que delimita e define consiga se multiplicar e se perpetuar.

Esse papel original da membrana plasmática não se perdeu ao longo da evolução. Nos primeiros seres pluricelulares, as células mais externas assumiram a tarefa. À medida que os seres foram se tornando mais complexos, aglomerados de células originadas das células periféricas mergulhavam no organismo e assumiam o controle desde o seu interior, mais protegidos de eventuais agressores externos. Dando um imenso salto até chegar às formas mais complexas de vida atuais – inclusive nossa espécie – é curioso observar que essa característica continua presente. Nos primeiros dias de vida pós fecundação, quando o aglomerado de células que se transformará em nosso corpo começa a se formar, nosso sistema nervoso começa a se desenvolver a partir da mesma camada de células que dará origem à nossa pele. Em síntese, de certo modo, o sistema nervoso é funcionalmente a evolução da membrana celular.

Enquanto a reação dos seres unicelulares aos estímulos do meio externo era mais simples, as respostas dos seres mais complexos foram se tornando paulatinamente mais elaboradas, à medida que acontecia um processamento maior entre a recepção do estímulo e a execução da resposta. Esse processamento maior era o resultado de um sistema nervoso cada vez maior e também mais complexo. Para não nos perdermos em detalhes, podemos assumir que o ápice do desenvolvimento do sistema nervoso – até o momento atual da evolução – é o surgimento do cérebro. E, possivelmente, o ápice da capacidade de processamento do cérebro é o surgimento da linguagem verbal.

Esses marcos do desenvolvimento biológico permanecem presentes em cada um de nós. Cada vez que um óvulo é fecundado, o processo de formação do embrião recapitula todas os estágios anteriores das espécies de quem descendemos. No sistema nervoso, uma das consequências disso é que as conexões entre suas diversas estruturas respeitam a ordem em que essas estruturas surgiram ao longo da evolução: as áreas mais antigas “conversam” com as áreas mais recentes através de áreas intermediárias.

Mas onde enfim se quer chegar com tudo isso?

O processamento das informações no cérebro respeita essa hierarquia evolutiva. E parece haver uma profunda semelhança entre esse processo e os ensinamentos sobre os cinco agregados [contato, sensações, percepções, formações mentais e consciência]. Tudo começa quando os estímulos ambientais conseguem ativar receptores periféricos situados nos órgãos dos sentidos [contato, rupa]. Uma vez ativados, os receptores geram sinais elétricos que são conduzidos através de fibras nervosas até chegar ao cérebro. Esses sinais chegarão primeiro a áreas cerebrais mais primitivas. O processamento nessas áreas resultará em sensações inespecíficas [sensações, vedana], como agradável / desagradável, que eventualmente já resultarão em alguma resposta. Dessas regiões cerebrais, os sinais alcançarão áreas do córtex cerebral onde as primeiras impressões mais elaboradas começarão a tomar forma [percepções, samjna]. Na etapa seguinte, o conjunto das impressões de um determinado momento será processado e integrado [formações mentais, samskara]. Finalmente, as informações oriundas desse processo poderão integrar o processamento cognitivo espontâneo – o fluxo involuntário de pensamentos – e reforçar a experiência consciente [consciência, vijnana].

Naturalmente, esses conhecimentos não se superpõem inteiramente e não devemos assumir essas semelhanças como verdades a priori. Talvez haja mesmo diferenças abismais de perspectiva. Uma delas, por exemplo, parece estar já no início do modelo: enquanto o processamento sensorial começa na periferia do sujeito, com a ativação de receptores por estímulos que vêm de fora (reforçando a separação entre “eu” e “não-eu”), o primeiro agregado – rupa, em sânscrito – inclui conceitualmente também o meio externo (ressaltando a unicidade e a interdependência). Além disso, enquanto a neurociência começa a considerar a hipótese do self ser tão somente um fruto do processamento cognitivo, o modelo dos cincos agregados há muito já aponta sua natureza – e a dos próprios agregados – como vazia de identidade, como mero fenômeno transitório.

E pensar que, antes da membrana, não havia dentro, não havia fora…

 

Texto de Gutemberg Guerra. Neurologista. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

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