Zazen no Titanic: Um Olhar

 

“Apenas sentar! ”

Jamais imaginei na minha vida que o que me daria tanto trabalho fosse justamente ficar sem fazer nada, que dilema e que paradoxo!

Acostumado a praticar meditação acompanhado por músicas ou por mensagens a guiar meus pensamentos e imagens mentais, ficar sentado nessas condições expostas anteriormente, além de serem muito agradáveis, eram também bastante relaxantes.

Infelizmente esta realidade teve seus dias contados e se esgotou em si mesma. Para mim, não tinha mais sentido me sentar só para relaxar, sentia que mais além poderia haver outra prática que me fizesse ou me empurrasse para mais adiante. Agora para onde eu não sabia. Só essa necessidade já bastava. Até aí isso não me era estranho, porque sempre me considerei uma pessoa dinâmica e curiosa, sempre gostei de “revirar o baú” sem saber pelo que estava procurando.

Nesse desassossego curioso e provocante é que acabo encontrando outra prática de meditação, o zazen (meditação sentada). De longe, achei estranho e, se conhecido de perto, nos primeiros instantes, a impressão era de que ele se resumia na frase do Mestre Shunryu Suzuki: “O zazen não serve para nada”.

Agora o dilema estava montado: de um lado, as meditações anteriores não respondiam meus questionamentos existenciais; do outro, aguardava por mim uma meditação muda confirmada pelo silêncio apático de uma parede, quase que um abismo visto de baixo para cima sob uma atmosfera de se estar ali “perdendo tempo”. Mas o que fazer agora? Voltar já não tinha mais a menor possibilidade, o jeito era me arriscar e ver como seria isso.

Esta insistência na prática do zazen foi alimentada por um longo tempo através de palestras e livros que o citavam como sendo “a base do Zen”. Então, gostando ou não, certo ou errado, ganhando ou perdendo tempo, eu estava lá praticando sozinho em casa. Minha compreensão do Zen Budismo (teoria) cada vez mais se afinava e isso me convencia de ter encontrado “a grande oportunidade” da minha vida, a não ser quando minha mente condicionada queria que a realidade fosse feita nas minhas medidas e não nas medidas da vida. Mas ainda tinha que “praticar zazen”, o que havia por detrás deste portal? O jeito era passar por ele. Afinal, “uma coisa” como essa, tão indicada pelos mestres do Zen, só poderia ter algo muito profundo a revelar.

Nessa época já conhecia o Sensei Genshô através das mídias e, quando o ouvia com muita atenção em suas palestras, ficava desesperado (risos) quando a maioria das perguntas que os praticantes faziam tinha como resposta: “Faça zazen, de preferência dois por dia”.

Se você continuar está simples prática todos os dias, obterá um poder maravilhoso. Maravilhoso antes de ser atingido, mas nada especial uma vez obtido”. (Shunryu Suzuki – Mente Zen, mente de principiante).

E lá vou eu preparar almofada e um tapetinho para colocá-la em cima. Parti para as primeiras experiências de zazen, que horror! Cada uma delas pior do que a anterior: uma hora enchia, outra hora esvaziava a almofada como quem calibra um pneu de um automóvel, o que é para tocar o chão, o joelho ou a lateral do joelho? (Quase um contorcionista em cima da almofada, trocava as posições das pernas: uma vez birmanesa, outra meio lótus e desistia ao tentar lótus completa, essa nem tinha por onde começar). Quando eu acertava na almofada eu achava que tinha “errado de parede”, achando que na outra parede não iriam aparecer imagens e com isso cheguei a andar quase que pela casa inteira.

“Há muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na do perito”. (Shunryu Suzuki – Mente Zen, mente de principiante).

Numa entrega a este “caos”, fui deixando como estava e, aos poucos, a parte física da postura de zazen foi se acomodando, mas sempre dava um jeitinho de “estragar” ao querer eliminar qualquer sinal de desconforto para que o zazen fosse um “zazen perfeito”, mas, afinal, o que é um zazen perfeito para poder compará-los?

“Se quiser obter perfeita calma durante o zazen, não deve se aborrecer com as diversas imagens que aparecem em sua mente. Deixe que elas surjam e desapareçam. Assim elas estarão sob controle. Mas não é fácil fazer isso. Parece fácil, mas na verdade requer algum esforço especial. Como realizar esse esforço é o segredo da prática. Suponhamos que você esteja sentado em circunstâncias extraordinárias. Se tentar acalmar sua mente, não conseguirá meditar e, se tentar não perturbar com isso, seu esforço não será correto. O único esforço que o ajudará será contar sua respiração ou concentrar-se no movimento de inspirar e expirar. Nós dizemos concentração, mas concentrar a mente em algo não é o verdadeiro propósito do Zen. Seu verdadeiro propósito é ver as coisas como elas são e deixar que tudo siga seu curso, isso é ter as coisas sob controle, no mais amplo sentido”. (Shunryu Suzuki – Mente Zen, mente de principiante).

O desconforto agora se deslocou do aspecto físico para o mental: “nossa, que arruaça mental, que confusão! ”. Cheguei por algumas vezes, num impulso, a me levantar da almofada e dizer: “Basta, isso não é para mim! ”, mas não sei que força me atraía de volta para aquela almofada no canto da parede de casa no dia seguinte, não sei!

“Assim como podemos praticar o piano, para cultivar nossa habilidade musical, ou praticar um esporte, para cultivar nossa habilidade atlética, podemos praticar a meditação para nutrir a habilidade natural que a mente tem de ficar presente, de sentir amorosidade, de estar aberta para além das opiniões e pontos de vista fixos”. (Pema Chodron – A beleza da vida).

A cada vídeo de palestras, a cada livro e outros recursos sobre a prática de zazen que eu me apropriava, uma força egoica de comparação e de perfeição me dava a impressão ou, melhor dizendo, a certeza de que o que eu estava fazendo ali sentado sobre aquela almofada poderia ser tudo menos zazen; que desgosto!

“O hábito de existir, de escapar em pensamentos e devaneios, é uma ocorrência comum. Na verdade, passamos a maior parte do tempo na fantasia. A mestra Zen, Charlotte Joko beck, chamava essas fantasias de “vida substituta”. É claro, não precisamos estar meditando para que a mente divague para esta vida substituta. Podemos estar escutando alguém falar e afastar-nos mentalmente. A pessoa está bem na nossa frente, mas nós estamos na praia em Waikiki. O modo principal de nos afastarmos é mantermos um comentário interno ativo sobre o que está acontecendo e como estamos nos sentindo: gosto disso, não gosto daquilo, estou com calor, estou com frio, e assim por diante. Na verdade, podemos nos envolver tanto com esse diálogo interno que as pessoas à volta ficam invisíveis. Sendo assim, uma parte importante da prática da meditação é largar sem agressividade essa conversa que se passa em nossa cabeça e alegremente voltar ao presente, ficando física e mentalmente presentes, sem conjeturar sobre o futuro nem reviver o passado, mas, nem que seja brevemente, ficar no momento”. (Pema Chodron – A beleza da vida).

Em algum momento, dentro da prática de zazen me veio a lembrança daquele filme, Titanic. Genshô Daioshô sempre nos orienta a largar qualquer pensamento e não fazer nenhuma análise sobre eles, mas foi tudo tão rápido naquele momento que a análise ou comparação que farei agora servirá apenas como uma ilustração do que eu experimentei:

Quando o transatlântico Titanic começa a afundar, imediatamente vemos todos os passageiros entrar em desespero, cada um querendo se salvar. No que o navio fica numa posição quase que vertical, eles começam a despencar e todos ficam à deriva em alto-mar, numa noite fria e escura. O mar agora é seu solo que dança o balé natural das águas, e, diante dos olhos daqueles que ainda estavam vivos e imersos, passavam flutuando os objetos e bagagens de cada um que estava a bordo, conhecido ou desconhecido, não importava, e, numa atitude desesperada de salvação, agarravam-se a estes objetos sem questionar se eram os seus ou se eram alheios.

No zazen, o mar é o meu único ambiente, é o meu solo sem rigidez e permanência, a escuridão noturna é a minha ignorância e os objetos que vagueiam são os meus pensamentos, melhor dizendo: alguns meus, outros alheios. Digo alheios não no sentido “sobrenatural” de que posso acessar os pensamentos dos outros, mas sim aos pensamentos que tiveram origem fora de mim e em algum momento de minha vida os adotei inconscientemente, e que agora, onde viver e recuperar a clareza da mente se tornou uma questão de sobrevivência, vejo-os com mais nitidez e os confundo comigo e me espanto!

“As últimas palavras dos ensinamentos de Dogen dizem: ‘esquecer de si mesmo é ser iluminado por todas as coisas’. Com esse compromisso fazemos o voto de não atrapalharmos a nós mesmos, fazemos o voto de parar de insistir que as coisas sejam do modo que queremos que sejam e parar de insistir que o modo como queremos que sejam é o modo como realmente são. Para nos esquecermos de nós mesmos, principalmente temos que conhecer muito bem nosso shenpa (apego), nossas propensões, nossos escapes – e então estar dispostos a abandoná-los. Precisamos estar dispostos a superar a preguiça que nos mantém mordendo os mesmos anzóis repetidamente, como se isso não tivesse importância. Precisamos estar dispostos a escutar nossa sabedoria, em vez de seguirmos nossos padrões habituais, robóticos. Precisamos estar dispostos a convidar os sentimentos amedrontadores a ficar por mais tempo, para podermos conhecê-los em profundidade. Precisamos estar dispostos a alimentar a ideia de que somos basicamente lúcidos, basicamente bons e que temos o potencial de sermos total e absolutamente despertos”. (Pema Chodron – A beleza da vida).

No meio de tanta turbulência de pensamentos, só me vinha essa impressão, a desta cena trágica do filme, mas como agora já estava mais determinado a “cumprir a tarefa”, fiquei ali imóvel até que o sino que encerrava o zazen tocasse e, por conta desta minha insistência, com o passar do tempo, já podia vislumbrar outros aspectos que outrora estavam ocultos: às vezes, alguns instantes de calmaria e espaços quase que físicos entre um pensamento e outro, uma leveza e a sensação de integralidade e nitidez pairavam e que, de repente, eram invadidas novamente por águas agitadas de pensamentos que eram arrastados por essas correntezas, assim como eram arrastadas as pessoas e objetos do naufrágio supracitado.

“Quando sentamos e estamos fazendo zazenkai, vêm os pensamentos e as perturbações. No momento que isso acontece temos que fazer o quê? Descartar, descartar, descartar, descartar… até que eles cansem de ser descartados. É este o centro de nosso treinamento: livrar-se. Por isso não podemos nos importar com o fato de um pensamento se apresentar pela milésima vez. Descartemos a milésima vez, a milésima primeira, a milésima segunda… descartemos, descartemos. Se fizermos isso, haverá um momento que aquilo se cansará de se apresentar. Então sentaremos e quando vier o pensamento, diremos para ele: ‘Você de novo? Já descartei você tantas vezes, não venha mais’. A partir daí nossa mente começa a mudar. Esse é o grande segredo e o motivo de fazer zazen como nós fazemos. Chamamos isso de mushôtoku (sem meta, sem proveito) ”. (O caminho Zen – Monge Genshô).

Esse momento, essa percepção e essa compreensão foram libertadores para mim. Agora praticava zazen com mais liberdade, parecia que agora tinha acertado o começo. Agora me sentava com mais tranquilidade e familiaridade com muitas coisas que se apresentavam durante aquele período de 40 minutos.

Segue a prática incessante, diligente e arrastada pelos pés de minha Sangha querida. Quem sabe um dia, quando eu puder “arrancar está pele” que insiste em separar-me do Todo e quando eu deixar as ondas levarem para o “Mar sem fim” está tampa que limita em mim a Grande Mente que tudo É, possa eu atingir o estado de Buda para beneficiar a todos os seres.

 

Texto de Fábio Brito. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências:

SUZUKI, Shunryu. Mente Zen, mente de principiante. São Paulo: Palas Athena,1994.

MONGE GENSHÔ. O caminho zen. Florianópolis: Comunidade Zen-budista Daissen, 2020.

PEMA CHODRON. A beleza da vida – a incerteza, a mudança, a felicidade. Gryphus

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