Em 1998, tive o prazer e a honra de receber em minha casa duas grandes figuras do Budismo no Brasil. Uma delas era Monge Gustavo Shōgyō, nada mais, nada menos que um dos grandes percussores do Budismo Shin no Brasil e na época um bom amigo e mentor.
Ainda não tinha ideia que me ordenaria monge um dia, mas Shōgyō Sensei foi um dos grandes responsáveis por eu ter optado pelo Budismo como religião e guia para minha vida. Alguns anos antes, a convite de um outro amigo, fui assistir à uma palestra do monge Shōgyō no Teatro Sergio Cardoso, na qual ele falava sobre amor usando como exemplo o fundador da escola Jodo Shinshu, Mestre Shinran e o encontro com o amor de sua vida, Eshinni.
Shōgyō Sensei me ligou um dia dizendo que estava indo para o Japão, no dia seguinte, com um amigo e queria passar em minha casa para se despedir. Eu disse então que faria um jantar para ele e seu amigo, preparando minha especialidade paquistanesa, korma, um curry de frango com iogurte. Ao anunciar o menu, fui advertido que o amigo era um monge soto-zen e vegetariano. Adicionei um bom chana dhal (curry de lentilhas) ao cardápio e me senti feliz.
Dia seguinte tentei chegar mais cedo do trabalho para preparar as coisas e eis que na hora marcada, a campainha toca. Abro a porta e Shōgyō Sensei com sua careca lustrosa, sorriso largo e vozeirão, com sotaque carioca, me dá um caloroso abraço. Depois de trocarmos saudações, me dou conta que ele não estava sozinho, óbvio, o amigo estava ali. De cima dos meus 1,80 metros de altura olho para baixo e só consigo ver um par de sobrancelhas! Duas imensas sobrancelhas engastadas numa outra, careca lustrosa em um ser de uns 1,60 de altura. Depois de associar tais artefatos à pessoa, que me dei conta que estava diante de ninguém menos que Moriyama Roshi, em pessoa, em minha casa, para comer meu prato indiano! Não acreditava que essa “lenda” do Budismo no Brasil estava diante de mim, em seu samuê marrom, com uma mochila nas costas, na soleira da minha porta imitando Shōgyō-chan e tentando me alcançar para me dar um abraço também.
Ele entrou na minha casa com as mãos para trás, observando tudo, cumprimentou a família e foi fazer uma reverência no meu altar. Sempre sorrindo. Sempre interessado em tudo.
Nos sentamos na sala e começamos a conversar sobre o que iriam fazer no Japão. Shōgyō iria tentar angariar fundos para seu projeto na época: a reconstrução de uma das estátuas do Buda de Banmyan aqui no Brasil. Conversamos bastante e Moriyama que falava um ótimo inglês sempre entretido na conversa e participando.
Em dado momento, me levantei e fui terminar o jantar, convidando todos à mesa em seguida. Continuamos o nosso papo e expliquei aos convidados o que eram os pratos, fazendo questão de deixar claro a Moriyama Sensei qual era o vegetariano, o qual ele atacou com vontade. Eu tinha maneirado bem na pimenta que eu adoro, mas não sabia qual o gosto dos convidados, porém, em dado momento vejo Moriyama Roshi com uma expressão faceira, escondida pelas suas tão conhecidas sobrancelhas, enquanto ele tirava um vidrinho de shichimi togarashi (pimenta em pó japonesa) de um bolsinho invisível no samuê e adicionava mais “picância” ao curry. Dei um sorriso discreto e fiquei feliz que ele estava gostando.
Em determinado momento no meio de uma conversa entre eu e Shōgyō vejo nosso querido monge zen esticando o prato e se servindo do korma de frango, tomei um baita susto e quase bati na mão dele para ele soltar a colher. Muito aflito e com o pânico de fazer um mestre romper os preceitos dele por um problema de comunicação, tentei explicar em todas as línguas, português, inglês, espanhol e até uma tentativa horrível de japonês que aquele ali não era vegetariano, que tinha carne. E ele… seguia o ritual impassível, apenas acenando com a cabeça que sim e se serviu, uma, duas, três vezes e depois de umas pitadas de shichimi começou a comer com gosto.
Certo de que meu karma era pior do que o das filhas de Mara que tentaram o Buda Shakymuni olhei para Shōgyō com uma cara de total desalento e afirmei que não tínhamos conseguido avisá-lo da presença de carne no prato, ao que ele soltou uma grande gargalhada e me respondeu que Moriyama havia entendido perfeitamente. O jantar tinha acabado ali para mim e claro já comecei a pensar as bobagens que nossa mente dual e julgadora pensaria de imediato: que belo mestre budista, fala para os outros fazerem algo que ele mesmo não faz. Pior que meu jantar, foi a minha admiração por aquele monge incrível que estava se esvaindo, pela pura decepção.
Meu amigo, monge Shōgyō percebeu meu drama e enquanto me ajudava a lavar a louça, me perguntou: “você não entendeu nada do que aconteceu, né? Você acha que ele é vegetariano da boca para fora, né? Que ele passou longe dos preceitos, né? ”. E diante do meu desconsolo, recebo um dos mais valiosos ensinamentos budistas que já recebi.
E monge Gustavo Shōgyō continuou: “Você só viu a atitude externa do comer carne. Você só conseguiu ver o externo, o resultado, a ação, mas foi incapaz de entender a motivação, o que estava por trás. Você acha que o apego a uma convicção sobrepõe os dois maiores ensinamentos maior do Buda que são a Compaixão e a Sabedoria. As duas faces de Buda Amida. ” A ficha ainda não tinha caído, eu ainda não entendia onde ele queria chegar. E ele continuou: “Você o convidou para jantar, sem saber quem eu traria. Você o recebeu em sua casa, apresentou família, respeitou quem ele era, foi humilde abrindo sua vida para ser compartilhada comigo e com ele. Apresentou suas filhas e disse para ele que tinha feito um jantar especial para nós, que você mesmo tinha cozinhado e até saído mais cedo do trabalho para deixar tudo pronto. Ele te ouviu, viu e sentiu. E por isso te respeitou, teve uma grande compaixão por você e sua família por terem nos recebido. E por isso achou que seria uma ofensa se ele não experimentasse todos os pratos que você tinha feito para nós simplesmente porque ele não come carne. Ele viu que a compaixão por você e a retribuição pelo respeito que você nos recebeu era muito maior que o simples fato de uma vez, em nunca, ele comer um pouco carne. Ele não deixou de ser vegetariano nessa noite, ele apenas nunca foi apegado a isso e preferiu ser mais respeitoso e agradecido com você do que apegado a uma convicção. Preferiu retribuir a sua compaixão conosco, com mais compaixão. E pelo jeito ainda te deixou um grande ensinamento. ”
Ensinamento? Foi um “diretáço” no queixo, isso sim. Eu com minha mania de ser quadrado e coxinha com tudo que faço, seguindo ao pé da letra tudo relacionado a preceitos e conceitos, tomei uma pancada que doeu bastante. Mas como toda pancada bem dada também serve para nos acordar. Acordar de radicalismos, de falta de empatia, de apegos irracionais até mesmo ao Budismo e seus ensinamentos, e não pude deixar de lembrar do conto dos dois monges no qual um ajuda uma moça atravessar um riacho levando-a no colo e diante da reprovação do outro companheiro “dhármico”, pergunta: “eu já deixei a moça na outra margem, por que você ainda a está carregando? ”
Até quando vamos carregar nossos preconceitos e radicalismos? Quando iremos despertar para Grande Compaixão e a Grande Sabedoria búdicas?
Namu Amida Butsu!
Texto de Monge Hondaku. Escola Terra Pura – Budismo Shin.