Torre de Babel

 

Conta a Bíblia que após o dilúvio Deus ordenou que o homem se espalhasse e povoasse a Terra. Porém, contrariando a ordem divina, as pessoas da época resolveram se reunir e construíram uma cidade na planície da Suméria. À cidade foi dado o nome de Babel que se tornou a capital do império Babilônico. A Torre de Babel foi uma construção que entre outros motivos tinha como propósito salvar o homem de outra possível inundação enviada por Deus e era também um símbolo de poder. Naquele período, segundo a Bíblia, havia apenas um idioma, mas como punição por sua desobediência, Deus confundiu a comunicação entre os homens colocando novas línguas. Com isso as pessoas ficaram impossibilitadas de se comunicar provocando a interrupção da construção da Torre e abandonaram Babel, dando origem aos diversos povos e culturas que temos hoje.

Olhando de um ângulo diferente, o mito da Torre de Babel, nos coloca a dificuldade de convivermos em grupos e a necessidade de concordarmos uns com os outros, de termos objetivos em comum e usar de métodos iguais para atingir esses objetivos. O historiador e autor de Sapiens, Yuval Harari, nos diz que o homem não consegue, sem um objetivo ou crença comum, uma boa administração dos egos em grupos superiores a 150 pessoas e foi exatamente por isso que surgiram as ficções, mitos e religiões. Segundo Harari, precisamos compartilhar mitos para que haja cooperação entre nós.

Somos fenômenos compostos, ou seja, todos os seres ou coisas da Terra existem graças a fusão de pelo menos dois componentes e compartilhamos esses com os demais seres e coisas do planeta. Isso por si só já determina nossa interdependência, pois estamos ligados ao Cosmos pelos elementos presentes em todos os seres ou mesmo planetas. Mas, como seres complexos que somos, não são somente esses componentes que nos fazem ou que nos constroem as características e personalidades. Gabor Maté, um médico húngaro radicado no Canadá, diz que é impossível ajudar uma pessoa sem levar em consideração o meio de onde ela veio e onde vive, Maté insiste que somos seres Biopsicossociais e que nossa medicina é extremamente limitada quando separa o indivíduo de seu meio e garante que “Nossa biologia é inseparável do meio psicológico e social”. Uma das possíveis interpretações para o manto de Budha e o Rakusu, é que Budha costurou seu manto com restos de tecidos, vários pedaços encontrados nos lixos e restos de tecidos sujos de sangue e pus usados para enrolar os mortos. É uma parábola ou alegoria para a construção de quem somos e do que somos feitos. O leigo ou monge ao costurar seu Rakusu ou manto está na verdade se reconstruindo, se refazendo a partir dos acontecimentos de sua vida, deixando de lado o que não presta e não pode ser usado.

Uma Sangha budista é o local onde uma diversidade de pessoas, cada qual trazendo consigo sua cultura, personalidade, característica e traumas que constituem e solidificam o Ego, se reúnem em torno de um objetivo comum e segundo Harari somente este objetivo amparado pela ideia de um despertar é capaz de permitir que pessoas tão diferentes convivam no mesmo ambiente. Por tudo isso a tarefa de manter um ambiente favorável a prática se torna muito difícil e exige um grande esforço de todos, professores, monges e leigos. Culturalmente temos o hábito de colocar nos outros a responsabilidade pelos acontecimentos de nossa vida, quase todos nós, por exemplo, nos dizemos vítimas da inveja de alguém. Se somos demitidos foi porque algum invejoso de nosso sucesso fez alguma fofoca ou nos caluniou ao chefe. Porém, olha que estranho, quase ninguém se diz invejoso.  Eu preciso entender, e isso requer um grande autoconhecimento, que sou um ser complexo e multifacetado convivendo com seres igualmente complexos e multifacetados. O grande desafio, no entanto, é justamente este autoconhecimento que exige um olhar para dentro, mas não somos ensinados a buscar as respostas dentro de nós mesmos. Tenho de mim a imagem de uma pessoa digna, honesta, sincera, infalível e incapaz de um ato indigno. Porém, somos como aquelas estátuas de mármore da Grécia antiga, quando as olhamos de longe são perfeitas e lisas, mas ao nos aproximarmos percebemos suas ranhuras, lascas e imperfeições, em outras palavras, nenhuma boa imagem que fazemos de nós mesmos sobrevive a uma análise mais profunda em nossa personalidade. Harari escreveu em seu livro que o Sapiens sobreviveu graças aos conflitos e guerras com outras espécies nas quais saiu vencedor, somos então, descendentes dos assassinos e dos maus, não dos bonzinhos, estes morreram.

O local de prática no Japão é conhecido como Dôjô, que significa literalmente Local do Caminho, onde Caminho não significa estrada ou rua, mas sim a busca pela lapidação do caráter, pela autoconstrução e pelo desenvolvimento espiritual. Um Dôjô não é, portanto, um local para disputas de Ego ou debates de ideias, devemos estar isentos de demonstrações pessoais que visem a autopromoção, também não é um local onde se apontem os dedos, se acentue ou busque as diferenças ou destaque os erros e falhas dos outros (claro, porque eu nunca erro). Não devo buscar um Dôjô para romper minha conexão por meio de uma mentalidade que saliente minha vaidade ou orgulho. Um Dôjô é sobretudo um espaço para que entendamos nosso lugar no Cosmos, nossa interdependência e impermanência. Quando entendemos que somos fenômenos compostos e biopsicossociais fica mais fácil praticarmos a compaixão e o amor, pois existem incontáveis fatores responsáveis pela edificação de nossa personalidade e embora muitas pessoas digam que sempre podemos escolher, a pergunta é o quanto destas escolhas são realmente nossas e não frutos destes fatores condicionantes. Nossas escolhas são realmente nossas escolhas¿

Para conviver de maneira que a Sangha não se desestruture tenho que colocar de lado meu gosto e não gosto, minhas ideias e opiniões, minhas aversões, meu senso crítico e meu hábito de julgar. Minha individualidade e meus interesses pessoais não devem estar acima do objetivo da Sangha que é espalhar o Dharma de Budha. Existir na Sangha é esquecer de mim mesmo e perceber o outro e suas necessidades, sem comparações e julgamentos é importante para que entenda que não somos tão diferentes como imaginamos e que estou sujeito aos mesmos traumas e problemas. Estarmos abertos para aceitar as diferenças é fundamental para percebermos nossa interconexão e interdependência.

 

Texto de monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Bibliografia:

Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, Yuval Noah Harari

A Sabedoria do Trauma – Gabor Maté

https://www.infoescola.com/civilizacao-da-babilonia/torre-de-babel/

 

Pin It on Pinterest

Share This