Eu gostaria de abordar hoje, um de ensinamento que causa uma certa confusão na mente dos praticantes. Esse ensinamento chama-se: As Três Rodas do Dharma. Ele divide o ensinamento de Buddha, em três estágios denominados três rodas.
Ora, o que acontece é que se desenvolveu, através dos tempos, uma noção de que esses ensinamentos das Três Rodas seria uma revelação oculta de Buddha. Ou seja, essa noção sustenta a ideia de que ele teria ensinado primeiro aquela chamada “primeira roda” e, mais tarde, teria sido dado conhecimento a ensinamentos mais profundos que teriam ficado ocultos. E, assim, ainda mais tarde, viriam os ensinamentos da “terceira roda”, com o mesmo argumento.
Como é que era a prática naqueles tempos? Os ensinamentos iniciais dos Buddhas, de Shakyamuni Buda, teriam sido, de certa forma, congelados em um conjunto de escrituras chamados Tripitaka, os três cestos. O Tripitaka consiste em três agrupamentos de ensinamentos, em primeiro lugar os Sutras, em segundo lugar o Vinaya, ou seja, as regras monásticas, e em terceiro lugar o Abhidharma, ou comentários feitos por mestres a respeito desses primeiros ensinamentos que constam nos Sutras.
Eles consistem, principalmente, em primeiro lugar, na declaração das Quatro Nobres Verdades. São quatro declarações, “a vida é sofrimento”, que já é uma tradução questionável, porque a palavra dukkha não significa propriamente sofrimento, mas, sim, mais precisamente, que a vida é “cíclica”, ou “insatisfatória”, a vida é cheia de altos e baixos. Alegria, tristeza, doença, saúde, a vida é assim, cíclica. Então a primeira declaração de Buddha é: a vida é cíclica. A tradução mais normal disso, entretanto, foi “a vida é sofrimento”. Isso acabou dando uma visão negativa da vida, o que ocasionou críticas de outras religiões e etc. dizendo que o budismo era negativista. O que não é verdade, porque Buddha não disse que a vida não tinha alegria, não tinha felicidade, mas sim que ela era naturalmente cíclica.
E a segunda declaração, a de que, se existe sofrimento, se existe essa característica da vida de ser cíclica, existe uma causa para isso. A terceira nobre verdade é que se existe uma causa, ela pode ser removida. E a quarta declaração é que o método para resolver isto, para se afastar desse problema de insatisfatoriedade da vida, é tal, e descreve-se o caminho óctuplo, sendo então o caminho óctuplo extremamente gradual e, na verdade, já difícil de ser executado – nada simples. Começa com a compreensão correta e vai até o fim, até a meditação correta; cada um desses itens do caminho óctuplo merece uma palestra em separado.
Então a ênfase do ensinamento que consta da primeira roda é dukkha, a sua origem e a maneira de fazer com que ela cesse. A base filosófica de todo esse primeiro passo, essa primeira roda, é a existência dos fenômenos: o Não-Eu e a impermanência de tudo. Assim, a declaração de que o “eu” é uma construção mental e não uma realidade já está nesses primeiros ensinamentos de Buddha; e não escondido. Esses primeiros ensinamentos, registros do Tripitaka, não é nem um pouquinho um resumo. Eles, na verdade, seriam uma quantidade de textos que não está completamente traduzido para o português, há milhares de textos já traduzidos de Sutras, mas tamanha sua vastidão, nem tudo está traduzido. Esse abrangeria um volume correspondente a umas doze bíblias, então não é pouco texto e não é pouco ensinamento que durante quarenta anos Buddha proferiu e foi comentado.
Ocorre que aproximadamente trezentos anos após a morte de Buddha, um concílio fechou essas escrituras, disse: “o que está aqui, todos esses sutras compilados pelos secretários de Buddha (principalmente por Ananda), mais o Vinaya, todas as mais de 250 regras para a prática monástica, mais os comentários que foram feitos até agora, está fechado, isso aqui é um cânone fechado e não entra mais nada”.
Então esses textos foram constituir o chamado Cânon Páli, porque foi escrito em língua Páli, que é descendente do Sânscrito; o Sânscrito sendo a língua clássica original, e o Páli a língua falada no tempo de Buddha – provavelmente Buddha falou em Páli, no dialeto da região de Magadha.
O que eu estou querendo ressaltar aqui é que principalmente as escolas iniciais, elas usaram esses textos e não consideraram nenhuma reforma ou acréscimo ou pensamento posterior. A escola sobrevivente que usa este conceito, ou seja, somente estes ensinamentos, é a escola Theravada. A escola que preserva o Cânon Páli, é uma escola muito rigorosa, bastante parecida com o Zen em seus métodos e eu vou explicar mais tarde o porquê. Ou seja, o método básico que está aí na escola Theravada é o estudo do texto e a prática da meditação. Através dos tempos, é claro, as escolas sofrem degenerações e reformas. Começa a acontecer uma decadência e, depois de um certo tempo, surge algum mestre que diz “não, vamos retornar para a seriedade anterior” e etc. Vão se relaxando os costumes e os ensinamentos vão sendo deixados de lado, é uma decadência normal e histórica, não só no Budismo, mas em outras religiões também. Então há tentativas fundamentalistas, tentativas de reforma, há declarações às vezes muito questionáveis, por exemplo: um mestre japonês, declarou que ele entendia que ele era o Buddha original e que Shakyamuni Buddha, no início, era apenas um anunciador. Então ele funda uma nova doutrina, fundamentado em um sutra posterior, (vou explicá-lo na segunda roda), no Sutra do Lótus, ele se identifica como um enviado especial e Shakyamuni Buddha seria apenas um anunciador da chegada dele mesmo. Não vou dizer o que eu realmente penso a respeito desse tipo de declaração, mas essas coisas acontecem. Nós, hoje mesmo, temos pessoas contemporâneas que se autodenominam Jesus Cristo, por exemplo, em Curitiba, por exemplo, há alguém que diz ter ressurgido e que é o messias, o cristo, e ele tem seguidores, não tem? Tem seguidores, tem sede. Aquele mestre budista de 800 anos atrás fez uma coisa semelhante e tem muitos seguidores hoje, que se limitam a recitar um mantra e não praticam meditação, por exemplo, ou não estudam textos anteriores.
Nesta época, quando alguém queria que um texto fosse aceito, ele não assinava com seu próprio nome, ele dizia que era um texto do tempo de Buddha. E os textos que surgem depois, deste momento da “primeira roda”, são os sutras do movimento Mahayana. Os sutras do movimento Mahayana são todos os sutras, por exemplo, do Prajna Paramita, os sutras que nós recitamos, como o sutra do coração, são do movimento Prajna Paramita. Este desenvolvimento fica sendo chamado a segunda roda, os sutras começam dizendo Buddha, como se Buddha tivesse dado aquele ensinamento. A verdade histórica é que esses sutras foram escritos por outros mestres deste movimento, movimento Mahayana, que surge aí por volta do primeiro século depois de cristo, ou seja, quinhentos anos depois da morte de Buddha, mas aparecem como se fossem sutras do tempo de Buddha, como se não tivessem sido realizados e escritos naquele momento, quinhentos anos depois, surgem como se fossem sutras deixados por Buddha.
E a declaração que foi dada ao povo budista foi a de que eram ensinamentos escondidos, revelações de ensinamentos que não tinham sido publicados no tempo de Buddha, porque Buddha os havia dado em reservado, porque achava que as pessoas não estavam prontas para isso. Evidentemente, isso é uma ficção, não é verdade. A verdade é que novos sutras foram escritos, isso é um desenvolvimento histórico do ensinamento de Buddha. Então, o que é chamado de “segunda roda”, é na realidade um desenvolvimento do budismo, um aprofundamento, por mestres, na realidade, geniais.
Nagarjuna é o grande responsável pelo desenvolvimento da doutrina do Madhyamaka, ou seja, o caminho do Meio. E é ele que pega o conceito de Vazio, que é muito pouco citado no tempo de Buddha, quase inexistente, desenvolve o conceito de Vacuidade e de Vazio, e propõe que todos os fenômenos são vazios de um “eu”, que é um Vazio inerente. Que não há um “eu” inerente às coisas; de fato, a coisa alguma. Todas as coisas são vazias de um “eu”, de identidade própria, todas as coisas são interdependentes e interconectadas. Nós apenas temos a ilusão de que somos um “eu” separado.
Na primeira roda, lá no Tripitaka, já existe o ensinamento do Não-Eu, Anatta é o ensinamento de Buddha. No momento em que Nagarjuna surge e aprofunda o conceito de Vacuidade, ele leva o Vazio de um “eu” pessoal, a ideia de que o “eu” é uma construção da nossa mente, para todas as coisas. Todas as coisas são inerentemente vazias, não possuem um “eu” independente, todas as coisas são interconectadas, interdependentes e, portanto, todo o Universo não tem um “eu” separado em lugar algum. Isso é ilusão nossa. Então essa ideia supera todas as visões essencialistas de que existe uma essência nossa, tal como uma identidade separada eterna, ou a noção de uma alma que carrega um “eu” para sempre. Tudo isso é completamente negado no início por Buddha, de uma forma mais sucinta, e desenvolvido largamente através dos ensinamentos de Nagarjuna.
Toda essa parte, todo esse desenvolvimento, os escritos de Nagarjuna, sutras que surgiram a partir desse momento, toda a coleção de Sutras Prajna Paramita, “Conhecimento da Outra Margem”, são descartados por aqueles da chamada primeira roda. Ou seja, a escola guardiã do Canon Páli, não aceita nada disso, não existem esses sutras para ela.
Então, há um outro desenvolvimento, o desenvolvimento chamado de “terceira roda”. De novo, há a declaração de que são ensinamentos ocultos, na tentativa de fazer com que todas as pessoas aceitem isso como coisas antigas e não como coisas novas. Como coisas que fossem ensinadas por Buddha, mas que Buddha deixou escondido, ou textos que só foram abertos mais tarde. Isto é evidentemente uma ficção histórica, não tem nenhuma base. A verdadeira base histórica é a evolução do budismo. O budismo evoluiu, cresceu e se aprofundou na mão de mestres como Nagarjuna, e teve um desenvolvimento muito importante que acaba nos estudos sobre a natureza da mente e da cognição, que são objeto do estudo de dois grandes mestres, que eram meio-irmãos, Asanga e Vasubandhu. No segundo e terceiro séculos depois de Cristo, essa escola é conhecida então como escola da mente, escola da mente Yogaccara. A Yogaccara ou Cittamatra, que é como normalmente os tibetanos se referem a essa escola, trata da natureza da mente, da natureza búdica e da mente como base de tudo. A ênfase dessa escola é que a realidade última é acessível pela mente iluminada. Ou seja, é possível compreender a realidade última por meio da mente, por meio do despertar, ou seja, com um trabalho sobre a própria mente de maneira que permita à pessoa despertar, esse seria o entendimento que temos do despertar de Buddha.
Surge também o conceito de Tathagatagarbha, ou seja, todos os seres têm natureza búdica, todos eles podem despertar, acordar. A explicação dada para o fato de que nada é esquecido e que nós permanecemos com o nosso karma se manifestando de novas formas é explicado pelo aprofundamento da ideia das oito consciências, sendo delas a mais importante, para nós aqui, neste assunto, a consciência de Alaya-vijanana. Alaya significa o acúmulo, refere-se à consciência total. Mesmo termo do nome “Himalaya”, depósito de neve. Hima, neve, Alaya, depósito. Alaya-vijanana, depósito de consciência, consciência universal. De modo que é possível, por exemplo, acessar o conhecimento de existências anteriores, manifestações kármicas que vocês tiveram no passado, já que existe Alaya-vijanana, um depósito de consciência universal, no qual nada está esquecido. Então trata-se não de uma questão de você possuir essa memória, mas de você ser capaz de acessá-la, por existir um depósito de consciência universal, onde tudo está acumulado.
Esse conceito, ele torna concebível várias coisas, tais como a história de que Buddha, ao iluminar-se, lembrou-se de muitas vidas anteriores.
Repetindo, nós tivemos, agora, um apanhado das chamadas “Três Rodas”. Houve durante muito tempo, e ainda hoje há, professores ensinando que existem três rodas de ensinamento e que elas foram ocultas, no passado, para serem apresentadas depois, quando as pessoas estivessem preparadas. Isso era uma maneira de evitar um confronto com a ideia de que você está ensinando uma coisa nova. A declaração diz “não, isso é um ensinamento que foi dado por Buddha, eu apenas estou apresentando só neste momento, porque ele foi localizado só agora”. Isso é, evidentemente, um meio para não ser contestado. O que aconteceu foi que o budismo foi apresentando um desenvolvimento contínuo e um aperfeiçoamento nas mãos de grandes mestres. Então, a proposta que eu faço para que nós possamos compreender isso melhor, é que o budismo sofre uma evolução e que o budismo não é uma obra pronta e acabada, que data de quando Buddha acabou seu trabalho, ou ainda de quando Nagarjuna acabou seu trabalho. Mas, sim, uma obra contínua de aprofundamento nas mãos de grandes mestres, dentre eles o próprio Buddha, depois o grande Nagarjuna, na doutrina da Vacuidade e no aprofundamento da noção de Vazio, e depois no aprofundamento da natureza da mente, Asanga e Vasubandhu e mais tarde em Dogen e seus seguidores.
É importante para nós, o grande papel representado por Bodhidharma, Huineng, Tendō Nyojō, Dōgen, que são os desenvolvedores do método do Zen.
O que é o Zen, então?
Quando Bodhidharma surge na China e começa a ensinar, ele deixa um sutra com os seus discípulos, o Sutra Lankavatara. O Sutra Lankavatara, nas suas versões – não se tem certeza da versão original do Sutra Lankavatara – é um sutra básico para a escola Yogaccara; a escola da natureza da mente. E no início o Zen é conhecido como escola do Lankavatara.
Na realidade, o que nós vemos no Zen é o desenvolvimento da chamada terceira roda, no caso da doutrina da natureza da mente, levada a uma prática formal. Bodhidharma recusa grandes discussões teóricas, porque essas discussões teóricas foram levando a um emaranhamento filosófico entre os filósofos Budistas durante mil anos, e o Zen aparece como um “chega, chega de tanta discussão teórica e filosófica, vamos nos sentar e praticar verdadeiramente”. Não adianta você fazer apresentações filosóficas se a sua prática pessoal, se a sua virtude não manifesta isso. Ou você tem uma prática verdadeira, ou essa teoria não passa de livro sem fim.
Então os textos são tirados dos altares, no Zen, e colocados em lugares separados. Ao contrário de outras escolas que colocam os textos, os sutras, no altar, para serem reverenciados junto com as estátuas. No Zen isso não acontece, tiram-se esses objetos do centro e coloca-se a prática do se sentar. A própria declaração que eu já fiz, de que reverenciar uma estátua em si é uma heresia, você não pode reverenciar a estátua de Buddha, afinal de contas ela é gesso, pedra, madeira. Não é isso, você a usa como uma representação, como uma forma, um meio hábil de se lembrar da prática. Assim são os altares, assim é o incenso, todas essas coisas são artifícios, nada é uma verdade intrínseca. Por isso aquela história Zen do monge que toca fogo em uma estátua de madeira de Buddha, parte-a em pedaços, para se aquecer, para não morrer de frio em um eremitério na montanha. No dia seguinte, quando chegam os monges, eles dizem “mas você queimou o Buddha?”, ele diz “se eu queimei o Buddha, onde estão as sariras?”. Que seriam as joias que restariam depois da morte de Buddha, apareceriam restos que seriam joias. É mais ou menos como perguntar, “se eu queimei o Buddha, onde estão os ossos? ”
Então o Zen volta-se para a prática, para a verdadeira prática: você realmente cuida do que você diz? Você realmente cuida das suas ações? Isso é o que importa. Você cuida da sua meditação? Você desperta a sua mente? Essa metodologia, essa sistematização e método, é o Zen. Se nós formos olhar a teoria, nós vamos encontrar tudo isso atrás. Todos os ensinamentos da escola Yogaccara, que era uma escola filosófica, todos os ensinamentos do Prajna Paramita, da Vacuidade, como o Sutra do Coração, que é um resumo dos seiscentos sutras da Prajna Paramita e do Tripitaka, os discursos de Buddha e as quatro nobres verdades.
Então mestres como Dōgen ensinam a prática, ensinam a todos nós como realmente praticar, não descartamos ensinamentos.
E nesse sentido, a Daissen é uma comunidade que se dedica a recuperar uma prática séria do Zen, focando no ensinamento, na compreensão dos ensinamentos, sem fantasias tais como afirmações de que “os ensinamentos dos mestres posteriores foram na realidade feitos por Buddha e descobertos, escondidos”, sem esse tipo de declaração. Mas como a compreensão de que o budismo e o Zen são um desenvolvimento ao longo do tempo com a interferência de inúmeros mestres geniais, que foram aprofundando o ensinamento e o levando ao ponto em que nós o temos hoje. E a nossa prática é a tentativa de levar isso com seriedade, sem nos atermos a ficções que não são necessárias nos dias de hoje e com a compreensão de que a evolução do budismo é uma grande vantagem para todos nós, porque nos permitiu um aprofundamento e compreensão mais profunda dos ensinamentos anteriores e inclusive a oportunidade de ouvirmos até mesmo mestres que surjam nos nossos próprios tempos e que nos ajudem a adaptar a prática budista aos tempos modernos. Na realidade, é o que está acontecendo neste instante, estamos usando não uma palestra presencial, mas uma palestra virtual, isto é uma enorme vantagem que nós temos hoje para a expansão do ensinamento de Buddha e devemos agradecer essa imensa oportunidade.
PERGUNTAS:
P: Pode-se dizer que a tradição Yogaccara estuda entre outros assuntos os samskaras? Tal estudo é recomendado aos praticantes do Zen que queiram se aprofundar no assunto?
Monge Genshō: Não podemos dizer que a Yogaccara é uma tradição, podemos dizer que é uma escola de estudo filosófico e está inclusa dentro deste momento de estudo que já é pertencente à chamada terceira roda. Podemos dizer que esse estudo do Yogaccara abrange tudo que veio antes, samskaras é um dos itens dos doze elos da originação interdependente e evidentemente está incluso em tudo isso aí.
P: Entre o Zen japonês e o Chan chinês existem muitas diferenças conceituais ou práticas? O senhor pode citar algumas?
Monge Genshō: Creio que a diferença é mais presente nos dias de hoje, quando Dōgen, lá no século XIII, foi até a china estudar o Zen com Tendō Nyojō, a tradição do Zen não tinha se sincretizado, o ensinamento de Tendō Nyojō não tinha se sincretizado com outras escolas como a escola Terra Pura. Houve o surgimento dessa escola Terra Pura, que é uma escola que em síntese diz que nós somos muito ruins, não somos capazes de manter uma boa prática no mundo, e estamos falando de muitos séculos atrás, que não era possível, por exemplo, seguir os preceitos e que devia-se confiar numa intervenção salvífica de um bodhisattva que nos ajudasse a nascer numa Terra Pura. Essa ideia salvífica, que parece bastante até com certos aspectos do cristianismo, de salvação pela graça, que surge no calvinismo, por exemplo, ela se sincretizou, porque é muito mais fácil ensinar isso, você apenas pede ao Buddha Amida, um bodhisattva salvador, que o leve a renascer numa terra pura onde a prática seja possível, porque aqui nesta terra não dá. De modo que a meditação foi abandonada. Então a escola Chan acabou se dividindo em dois aspectos, o ensinamento do Zen realmente com meditação para monges e o ensinamento de Terra Pura, salvífico, para a população. E isso então causou uma grande diferença, porque o Zen japonês preservou aquele ensinamento do tempo de Tendō Nyojō. Então o Zen japonês manteve-se mais distante de qualquer sincretismo com a escola terra pura. Não que ele tenha ficado isento de sincretismos com o xintoísmo japonês, que aparece em certas práticas como culto aos ancestrais, aos antepassados, e coisas assim, que na verdade não fazem parte do Zen, são incorporações culturais provenientes do xintoísmo. E mesmo a adoção de reverências a divindades ou coisas típicas do panteão xintoísta, isso foi feito também por motivos de sobrevivência, mas não há nenhuma necessidade para nós aqui agora, na Daissen, de adotarmos práticas que na verdade provém do xintoísmo ou do confucionismo e não tem nada a ver com o ensinamento básico de Buda. Se não existem almas nem espíritos permanentes, que sentido haveria em fazer culto aos ancestrais? Nenhum, essa é a verdade. No entanto, no Budismo japonês isso é tradicional. Então essas são diferenças que vão marcando a nossa prática na Daissen da prática tradicional da própria escola no Japão.