Nem Nascimento e Nem Morte

Meditando Com os Monges Discípulos de Thich Nhat Hanh
 

Texto da série “Memórias de um Casal de Peregrinos”

 

Em frente ao mar, estávamos, meu pai e eu, sentados de pernas cruzadas, olhos fechados e em silêncio. Eu escutava o barulho das ondas quebrando, volta e meia sentia a água gelada tocando minhas pernas. Meu pai meditava e eu apenas o imitava, não sabia direito o que estava fazendo, nunca havia recebido uma instrução real de como fazer isso, apenas fechava os olhos e ouvia o mar. Era algo simples, mas era bom. Devia ter por volta de quatro ou cinco anos e nessa idade qualquer coisa que seja feita com o seu pai é o máximo. Compartilhar um momento, uma prática, eu me sentia importante, quase um adulto.

De repente uma onda veio e me levou. Não metaforicamente, mas de forma real e inelutável, não tive tempo nem de gritar. Fiquei apavorado, tentei voltar à superfície, mas a água me puxava. Não sei ao certo como se deu, mas um surfista me puxou pelo braço e me levou de volta à areia. Lembro-me da cara assustada do meu pai, do gosto da água salgada e de me sentir grato ao anônimo que me salvou.

Essa é a primeira memória de uma experiência de meditação que tenho. Não sei como, mas ao que tudo indica, não me traumatizei. Vez ou outra, via meu pai silenciosamente sentado, no quintal ou em um bosque próximo de casa, sobre uma pedra ou na grama. Não era algo que acontecia sempre, mas são imagens que nunca se apagaram da minha memória.

Meu pai era artista plástico e, na época em que eu era criança, a maior parte dos seus trabalhos era feita com bico de pena. Podia levar meses ou mesmo mais de um ano para que um quadro ficasse pronto. Cada tijolo de uma construção, cada folha de uma árvore, eram desenhados individualmente. Apoiado nas leituras Zen Budistas, ele tinha a paciência e a concentração como as bases do processo artístico.

Anos se passaram antes do meu reencontro com a meditação, depois que ele morreu. Foi tudo muito repentino e brutal. Eu havia acordado cedo e estava preparando aulas quando recebi um telefonema do meu irmão a me falar: “papai morreu…”. De um segundo para o outro eu não tinha mais meu pai e melhor amigo. Os meses que se seguiram foram os mais difíceis que já passei. A tristeza era misturada a uma violenta revolta contra a aparente falta de sentido da vida.

Na minha busca por lidar com o processo do luto, iniciei uma espécie de garimpo de fragmentos materiais de memórias. Reli cartas antigas e, como que pela primeira vez, cada poesia que ele havia escrito. Abri pastas empoeiradas para encontrar esboços de desenhos que datavam, inclusive, antes do meu nascimento. Comecei a fotografar e voltei a desenhar, como uma forma instintiva de me reaproximar dele, de descobrir quais forças o moveram.

Um dos pontos que mais nos unia, enquanto ainda vivia, era a leitura. E, após sua morte, foi lá nas páginas de muitos livros da sua biblioteca que o reencontrei. Dostoiévski, Hesse, Merton, Sartre, Kafka, Jung eram alguns dos seus autores favoritos que já me eram, em maior ou menor grau, conhecidos. Mas uma parte de sua biblioteca me era quase inédita, com livros budistas e alguns taoistas. E a maioria era sobre o Zen. Li um após o outro e ali comecei a perceber que havia um caminho a ser trilhado. Um caminho desafiador, mas cheio de sentido.

A cada novo livro, comentava e lia trechos para a Tamara e juntos começamos a viver cada vez mais imersos na prática da meditação e no estudo do Dharma. Assim, o nosso primeiro contato com o Budismo foi por meio do Zen e, depois de tantos anos viajando e aprendendo com diferentes tradições, foi ao Zen que voltamos. Mas estou me adiantando, isso fica para uma narrativa futura.

Há pouco mais de uma semana, estávamos começando a preparar um texto contando algumas de nossas experiências na Plum Village da Tailândia, quando soubemos da morte de Thich Nhat Hanh. Ele foi um dos mestres que mais me ajudou a lidar com a morte do meu pai. Me lembro claramente de como repercutiram fortemente em mim suas palavras sobre o falecimento da sua própria mãe:

“Nos primeiros quatro anos depois que ela morreu, eu me senti órfão. Então, uma noite, ela veio a mim em um sonho e, a partir daquele momento, não senti mais sua morte como uma perda. […] Percebi que o nascimento e a morte da minha mãe eram conceitos, não verdade. A realidade de minha mãe estava além do nascimento ou da morte. Ela não existiu por causa do nascimento, nem deixou de existir por causa da morte. Vi que o ser e o não-ser não são separados. O ser só pode existir em relação ao não-ser, e o não-ser só pode existir em relação ao ser. Nada pode deixar de ser. […] Ter visto minha mãe no meu sonho me fez perceber que podia vê-la em todos os lugares. Quando saí para o jardim inundado pelo luar suave, senti a luz como a presença de minha mãe. Não foi apenas um pensamento. Eu realmente podia vê-la em todos os lugares, a todo tempo.”  (NHAT HANH, 1998, p. 89-90)

Quando viajamos para a Ásia pela primeira vez, o nosso destino inicial para praticarmos foi, não por acaso, a Thai Plum Village. Aterrissamos em Bangkok e pegamos uma van para Pak Chong. Lá chegando, eu e Tamara fomos conduzidos aos nossos dormitórios, em lados opostos do monastério. Fui apresentado, pelos monges que fizeram nossa inscrição na secretaria, a um jovem leigo vietnamita chamado Cao e me foi dito que ele me apresentaria a ala masculina e me ajudaria no que precisasse. Sorridente, ele respondia “yes” para todas as minhas perguntas e comentários. Antes mesmo de chegarmos ao alojamento, já percebi que seu inglês ia pouco além disso. Ele conhecia um certo número de palavras, mas não formava frases, então nossa comunicação passou a ser majoritariamente gestual. Além de mim, havia somente um alemão e um grupo de quatro vietnamitas, incluindo o Cao.

Sala de meditação Plum Village

Após as apresentações de boas-vindas, escolhi uma cama, desfiz minha mala, peregrinei, em vão, atrás de uma rede de mosquitos, fui aconselhado a deixar sempre as portas fechadas para que as cobras não entrassem e fui procurar a Tamara para comentar sobre as minhas primeiras impressões. Consegui a proeza de me perder no caminho e resolvi voltar ao dormitório para pedir coordenadas a alguém que falasse inglês.

Chegando lá, só encontrei os leigos vietnamitas e não pude me fazer entender. Frustrado, aceitei uma xícara de chá que me ofereceram e me sentei com os quatro no chão. Cao tentava ser o intérprete e eu buscava complementar com gestos e expressões faciais o que falava, na esperança de que alguma comunicação se concretizasse. Logo desisti das frases e passei a recorrer a palavras soltas. Tentava uma, não havendo sinal de entendimento, passava para um sinônimo, depois outro, até que risadas altas e frases inteiras em vietnamita fossem emitidas em resposta, uma espécie de comemoração por julgarem ter entendido algo.

Um deles, um senhor de cerca de 60 anos, aparentemente ficou feliz com meus esforços e foi até sua mala buscar um pacote de biscoitos para me oferecer. Desse dia em diante, todas as tardes, era convidado para o chá com biscoitos com meus novos amigos do Vietnã. Nossa comunicação foi se aperfeiçoando a ponto de eu passar a considerar que aquelas foram algumas das melhores conversas que já tive. Poucas informações eram trocadas ali, mas a vontade de comunicação era a mais verdadeira possível.

Um monge apareceu e perguntou se eu precisava de algo. Eu disse que queria saber a direção da área feminina, e que precisava de uma rede de mosquitos para a minha cama. Ele me explicou o caminho (praticamente uma linha reta de tão simples), informou os limites que eu não deveria cruzar e os horários em que poderíamos conversar. Me assegurou que traria uma rede em breve e, provavelmente percebendo que o recém-chegado trazia consigo uma mente agitada, me disse “Don’t worry. I’m here to help you” (“Não se preocupe. Estou aqui para ajudá-lo”).

Palavras tão simples e a forma verdadeira e intensa como foram ditas me trouxeram para a realidade. Sem perceber, eu estava em um ritmo acelerado de quem acaba de aterrissar em um país desconhecido, pegou mais de 20 horas de voos, e passou os primeiros dias na agitação de Bangkok. A calma e a bondade nas palavras e no olhar daquele monge me fizeram, finalmente, chegar ao monastério.

Mais tarde, assistimos à nossa primeira palestra. E o tema era a morte de pessoas queridas. Em determinada altura foi dito que o filho nunca perdeu o pai, que o pai estará sempre com ele, nele. E que quando nos sentamos para meditar, devemos saber que não estamos sozinhos, que estamos meditando por, e com todos os que não podem ou não querem estar ali. Desde então, meu pai voltou a se sentar comigo, como fez naquela praia da minha infância. Ao final do dia, escrevi no meu caderninho de anotações: “Estou muito feliz por estar aqui. Logo que cheguei, me perdi. Mas estou no lugar certo para aprender sobre caminhos e sobre o Caminho”.

Na manhã seguinte, acordei às 4 horas. Tudo estava silencioso e fresco. O luar iluminava nosso caminho até a sala de meditação e as estrelas ainda eram visíveis. Cao me ajudou a chegar à almofada e deixou aberto meu livro de cânticos na página correta. Após a primeira sessão de meditação, aconteceu a recitação de sutras, mais de uma centena de monges e monjas, cantando o Sutra do Coração, acompanhados por tambores e sinos. Meus olhos se encheram de lágrimas.

Alguns dias depois, ao anoitecer, houve uma cerimônia que marcava o início do retiro das chuvas, com duração de três meses. Era uma cerimônia privada, apenas para os monges e para dois leigos vietnamitas que participariam do retiro, em uma sala de meditação menor que ficava no meio da ala monástica masculina. Um dos meus colegas de chá iria participar e com gestos e palavras de ordem na língua dele, me convidou para acompanhá-lo. Sem a presença do Cao, eu nem tentei emitir qualquer palavra. Não sabendo se era permitido o que estava fazendo, tentei recusar o convite, mas quando ele começou a me puxar pelo braço, logo percebi que isso era mais difícil do que simplesmente o seguir.

Pedra com caligrafia – Plum Village

Entramos na área privada dos monges, onde eles residiam e faziam cerimônias especiais. Um jardim interno, no estilo do Zen japonês, o piso e as colunas de madeira, a pouquíssima, mas precisa, iluminação, tudo criava um ambiente onírico. Quando chegamos, alguns monges se entreolharam e um deles veio em minha direção. Pensei que seria expulso, quando o “me desculpe” já estava saindo pela minha boca o jovem monge falou ao meu ouvido “Venha, vou conseguir um lugar para você. Como a cerimônia será toda falada em vietnamita, lhe servirei de intérprete”.

E assim aconteceu. Ele pegou uma almofada extra, me encaixou entre uma fileira de monges e ficou ao meu lado traduzindo o que era falado e me instruindo sobre o que eu deveria fazer. Ali, eu aprendi mais uma bela lição. Eles vivem em meio a regras e ritos, na verdade, suas vidas são guiadas dessa forma, mas, ainda assim, obedecem a uma regra maior, a regra da gentileza e do acolhimento. Em meio à surpresa causada pela minha presença, a única preocupação que tiveram foi com o meu bem-estar. Eles podiam, inclusive, ter me permitido assistir a tudo, mas fizeram mais do que isso, disponibilizaram um dos membros da Sangha para traduzir o que era falado e para guiar minhas atitudes de forma a me permitir uma real participação. Ele me dizia “após o próximo sino, você irá se prostrar” ou “meditaremos por vinte minutos e depois, iremos caminhar em fila, lentamente, no sentido horário. É só você olhar como nossos irmãos estão fazendo e acompanhar”.

Do outro lado da sala, meu colega de conversas ininteligíveis regadas a chá sorria, feliz com a minha presença. Ali, encerrando a primeira sessão de meditação, o sino me surpreendeu, não foi bem um susto, foi mais um pequeno, mas profundo, choque e uma sensação física, palpável, de felicidade percorreu o meu corpo. Naquele momento eu pensei pela primeira vez: “essa poderia ser a minha vida, eu poderia ser um monge”.

No dia seguinte, isso não saía da minha cabeça. Eu chegava mesmo a pensar que nada daquilo me era estranho. Aliás, essa é uma sensação que tenho desde os primeiros livros Zen que li. É como se eu já soubesse daquilo (partes do conteúdo dos livros) e só tivesse me esquecido ou menos do que isso, como se eu apenas não soubesse transformar aquilo em palavras até que as encontrava escritas nas páginas de um livro.

Eu precisava falar com a Tamara, contar para ela o que estava sentindo. Pois eu sabia que nunca poderia ser um monge ali, naquela tradição, pois eu era casado e amava minha esposa. Na realidade, sem ela, eu não teria me tornado o praticante que me tornei. Demos força e coragem um ou outro desde o nosso primeiro retiro e nos tornávamos, dia após dia, melhores budistas graças à inspiração dada um pelo outro. Ainda assim, ou, melhor, por isso mesmo, eu queria contar para ela como estava feliz e como via mais sentido na vida que aqueles monges levavam do que em qualquer outra com a qual eu já tivesse tido contato. Queria perguntar se ela sentia o mesmo e dizer que poderíamos criar uma vida que fosse a mais próxima possível da experiência monástica, mas nos mantendo casados.

 

Do Outro Lado do Monastério, na Ala Feminina

O dormitório era todo de sapê. Minha rede de mosquito e roupas de cama haviam-me sido dadas pela Monja Sorriso – como a chamavam. Foi ela também quem explicou que os Dharma Talks para os leigos eram feitos na ala feminina. A partir daí já não escutava mais nada, a felicidade de poder ver o Thomás todos os dias me ensurdecia. Mas ainda faltava muito tempo para aquele momento, pelo que eu estava entendendo, inclusive, ele seria somente no dia seguinte.

Algumas instruções, rápidas e despretensiosas foram passadas pela Monja Sorriso a mim e a uma menina tcheca (que chegara também naquele dia): ao acordar, não converse com ninguém, dirija-se em silêncio à sala de meditação; nas refeições, sente-se à mesa com as monjas, não com os monges, e comece a comer somente depois do sino; economize água; ao ouvir qualquer sino, pare tudo o que estiver fazendo por alguns segundos, respire, lembre-se: “you’ve arrived” (“você chegou”) e “you’re home” (você é sua própria casa”); seja feliz. Eu tinha mil perguntas sobre os detalhes de cada um daqueles eventos que ela mencionava tão en passant, a ponto de me sentir constrangida para fazer qualquer colocação e parecer – ou transparecer – tensa com o fato de não querer errar. Com um sorriso, ela se despediu.

“Não conversar com ninguém”, mas com quem? Eu me perguntava. Tanto as outras leigas vietnamitas, que pareciam ser parentes das monjas, quanto a garota tcheca e eu não havíamos ainda nem trocado olhares. Na verdade, eu não buscava comunicação, amizade, interação. Queria simplesmente conviver com aquelas monjas. O brilho da cabeça recém raspada – muitas cobertas com tocas – imagino o frio – me atraía. O traje marrom. Tudo marrom. Até se usavam um colete de lã, uma luva, tudo que parecia ser um acessório pessoal, também era marrom. De repente percebo pouquíssimas monjas com cabelos longuíssimos, mas tão brilhantes quanto a careca das outras que raspavam as madeixas.

Em São Paulo convive-se muito com descendentes de japoneses, e até então achava que cabelos escuros e brilhantes eram coisas apenas de japoneses, mas lá vejo que as vietnamitas também têm essa genética. De repente, noto um cabelo loiro Chanel, grosso e seco. Era uma monja tão pequena quanto as demais. Seus olhos azuis me sorriram. Julie – a menor alemã que Berlim já produziu – me explica que não é monja, e que todas aquelas mulheres sem cabeça raspada também não eram monjas. Estavam aguardando o início do retiro das chuvas para tornarem-se monjas, mas que vestiam samuês, mesmo sendo ainda leigas, como ela.

Como faço para ficar para esse retiro? Essa era a única coisa que ocupava a minha mente. Vagava aquele terreno com lágrimas nos olhos, me atentando a cada pedra com dizeres do mestre Vietnamita. Ora me deparava com “Breathe, dear”, ora com “I have arrived. I am home” ou ainda com “Go as a river”. Pensava em como falar para minha orientadora que abriria mão da minha bolsa para estudar na França, que não faria mais doutorado, “je ne peux pas…ne peux plus!”.

Fui dormir pensando nisso, e acordei sem pensar em nada. Mal me dei conta de mim, já estava em uma almofada. Fui uma das primeiras a adentrar a imensa sala de meditação. A maior que eu já tinha visto. Homens se sentavam à direita e mulheres à esquerda. Diferentemente de outras tradições que conhecia, sentava-se olhando para a parede, de forma que ninguém estava virado para o corredor. A parede, de repente, estava sendo aberta por uma das monjas, e, de fato, olhávamos era para o horizonte que, àquela hora, não passava de um infinito escuro, com o frescor da madrugada. O sino vinha com badaladas, que acompanhavam os passos dos monges que ainda não tinham se sentado. Silêncio! Agora um único monge entoa:

 

The Dharma body is bringing morning light. In concentration, our hearts are at peace, a half-smile is born upon our lips. This is a new day. We vow to go through it in mindfulness. The sun of wisdom has now risen, shining in every direction.

Noble Sangha, diligently bring your mind into meditation.

Namo Shakyamunaye Buddhaya

O corpo do Dharma está trazendo a luz da manhã. Em concentração, nossos corações estão em paz, um pequeno sorriso nasce em nossos lábios. Este é um novo dia. Prometemos passá-lo com plena consciência. O sol da sabedoria já nasceu, brilhando em todas as direções.

Nobre Sangha, diligentemente traga sua mente para a meditação.

Namo Shakyamunaye Buddhaya

 

E em um coro firme e uníssono a Sangha toda responde suavemente ao monge:

Namo Shakyamunaye Buddhaya

O susto misturado com uma emoção fortíssima me coloca em lágrimas. “Não quero nunca mais sair daqui”. E assim fazem por mais duas vezes, na última eu acompanho. O cortante silêncio me coloca em um estado meditativo fortíssimo. Não ouço nem pássaros, nem grilos, nada. A luz começa a despontar muitos minutos depois. Mais sino. Há um levantar-se e mudar de almofada sincronizado, movendo-se à direita – não sei o que a primeira monja faz, “como ir mais à direita da ponta final?”, não sei. Não enxergo e não quero chamar atenção. Prostrações repetidas, encosta-se a testa no chão, vira-se a palma para cima – de soslaio, tento imitar, mas não saberia repetir, e nem sei por quantas vezes, efetivamente, subimos e descemos ao chão sob um comando de “Touch the Earth” (“Encoste na Terra”).

Vira-se de frente ao centro. Procuro Thomás. Está quase diametralmente oposto a mim. Ele não enxerga bem, nem vai me ver. Desisto. Começam os sutras, recitados, cantados, lidos, tudo é mágico. “Não quero nunca mais sair daqui”. Todos levantam-se, e saem. Eu sou quase a última. Saem em caminhada. Andamos por rotas que nenhum recém-chegado se atreveria a fazer. Que lugar vasto. Seco. Um deserto, quase. Quantos caramujos. Paramos em uma área onde há uma casa, é afastada de tudo. Suspensa, linda. Vim a descobrir mais tarde que é a casa onde fica Thich Nhat Hanh, quando está na Tailândia. No lago, lótus. De repente um monge começa a fazer exercícios que me lembram Tai Chi Chuan. Juntos o seguimos. Em um gasshô, o monge encerra o que chamo de exercício, e todos se dispersam.

Sem saber onde está o Thomás, vou seguindo a maioria das pessoas. Chegamos ao refeitório. Em fila, monjas à frente, vamos nos servir. Antes de pegar as tigelas, reverências são feitas. Pega-se o quanto quiser, desde que caiba naquela tigela. “Sente-se à mesa com as monjas, não com os monges, e comece a comer somente depois do sino”, feito! Imito tudo. Antes de se sentarem, colocam a comida sobre a mesa, fazem outra reverência, viram-se em sentido horário e fazem reverência às pessoas que estão perto. Imito. Sentam-se, e parecem que ficam meditando, não se olham, não se movem muito. Até o sino que marca o início da refeição. Por quase meia hora come-se em silêncio. Não se levanta para nada. Depois do sino, podemos conversar ou, até nos servir novamente. A comida é maravilhosa! Comida-comida, às 6 da manhã, nada de pães, manteigas e afins, mas é tudo realmente uma delícia. “Não quero nunca mais sair daqui”.

Achei o Thomás! Descobrimos que o retiro da chuva é algo para o qual você se prepara muito antes, não é simplesmente se inscrever, você precisa ser aceito, e muitas outras coisas às quais nem temos efetivamente acesso, mas fica a impressão de que há mais detalhes que não gastam tempo em nos explicar.

Percebo que uma certa senhora leiga vietnamita conhece quase todas as monjas mais novas e tem muita intimidade com elas. Pergunto à Julie quem é, e descubro que ela estava lá há mais de meses, e que era professora voluntária de literatura. Descobri como não sair mais de lá: trabalhando para eles. Converso com a monja Sorriso a respeito da minha volição. Ela me olha muito seriamente e pergunta se não quero ser monja, digo imediatamente que sim. E ela explica que, para isso, eu deveria abrir mão do meu casamento.

– Por quanto tempo?

– Enquanto for monja.

Meu sogro, na década de 1970, saíra de São Paulo, a pé, em direção ao Rio de Janeiro. Para, finalmente, pedir a mão da minha sogra em casamento aos seus pais. Levou quase 20 dias, foi meditando, passo-a-passo, foi sentindo em todo o seu corpo aquela decisão. Huineng andara por volta de 1.000 km em 30 dias para chegar a Huang-mei, onde ele se encontrou com seu futuro mestre, Hongren, o quinto patriarca. E eu estava viajando 16.500 km em poucos dias, em direção a uma decisão que parecia a única: viver uma vida mais próxima da monástica, com meu esposo. Escrevendo isso, penso em Thomas Merton. Que antes de vir a ser monge, fez-se monge em sua rotina e em suas atitudes.

Em uma das minhas andanças pela Plum Village, encontro-me com a matriarca do monastério. Sem marcarmos aquele encontro, reconhecemo-nos. E assim comecei a dar aulas de inglês a um grupo imenso de monges e monjas. Foi a minha maior turma de aprendizes. Nem na faculdade eu tive grupos tão extensos. Aquelas aulas reafirmavam a minha convicção de que o Dharma era minha única via, e que, para isso eu só precisava sentar-me. Aqueles alunos eram tão alunos quanto os meus do Brasil, da França, da Nova Zelândia, do México ou do Chile. Elias, Buddha, Monja Sorriso, eram tão humanos quanto eu, sujeito às mesmas paixões e, ainda assim, viveram existências ímpares.

Devorava os livros do mestre Thich Nhat Hanh, disponíveis em inglês, tanto para compra, quanto para empréstimo. E assim fortalecia a minha decisão. Em poucos momentos do dia, conversava com Julie, com Thomás, e seguia meu caminho no Zen. “Não quero nunca mais sair daqui”.

 

De Volta à Ala Masculina

Quando finalmente fui contar à Tamara tudo o que se passava dentro de mim, descobri que não precisava, pois, impressionantemente, o mesmo se passava dentro dela. Ambos queríamos medir nosso tempo em sinos, acender incensos pela libertação de todos os seres, recitar sutras ao amanhecer… queríamos ser monges. Ela me contou sobre a possibilidade de dar aulas de inglês em troca de nossa hospedagem, poderíamos ficar lá meses, talvez anos. Mas tínhamos o final de seu doutorado nos esperando, em alguns meses estaríamos embarcando para Grenoble, na França. E, mais importante e complicado, tínhamos um ao outro e não queríamos terminar nosso casamento. Sempre, desde o nosso primeiro retiro, transformamos nossas vidas em um único caminho e sentíamos que a nossa prática era fortalecida pelo nosso casamento, pela nossa união.

Caligrafia que o monge nos deu.

Combinamos que voltaríamos à Plum Village após o doutorado e que iríamos, nesse meio tempo, praticar muito para ter a maior clareza mental possível nas nossas escolhas seguintes. Ainda teríamos um bom tempo de viagem pela Ásia antes de voltarmos ao Brasil e finalmente embarcarmos para a França e o melhor a fazer era nos entregarmos a todas as experiências que ainda surgiriam.

Os dias se passaram e nosso respeito e admiração por aquelas pessoas só cresciam. No último dia, ao nos despedirmos dos membros da Sangha dos quais nos tornamos mais próximos, muita emoção veio à tona. E o monge que, na minha chegada, disse que estava ali para me ajudar, agora, vinha com um canudo nas mãos. O estendeu para mim e disse que era um presente que queria que levássemos conosco para o nosso país. Era uma caligrafia feita por ele com a frase “Peace is every breath”, que agora está enquadrada aqui em casa.

Hoje, passados alguns dias da cremação do corpo de Thich Nhat Hanh, reflito que o homem a quem sou grato por ter me ajudado a lidar com a morte do meu pai estava, com certeza, preparado para a chegada do dia em que as condições necessárias para a permanência daquela sua manifestação na terra cessariam. Nas suas próprias palavras: “Para um praticante, é muito importante entrar em contato com a sua própria natureza mutante e destituída de um eu. Se o praticante for bem-sucedido tocará a natureza do nirvana e alcançará o destemor. Agora ele poderá passear pelas ondas do nascimento e da morte, sorrindo serenamente” (NHAT HANH, 2020, p. 30)

“Nenhuma chegada, nenhuma partida”. Thay está aqui não só em seus diversos livros, traduzidos para tantas línguas, ou em suas palestras gravadas e espalhadas pela internet. Ele está em cada leigo que chegou ao Caminho de Buddha por seu intermédio e está em cada um dos monges das Plum Villages ao redor do mundo, neles como indivíduos e como conjunto, como Sangha. Tivemos a sorte de viver no mesmo tempo histórico em que um Bodhisattva como ele se manifestou, um mestre que conseguiu falar a tantos, de forma tão clara e compassiva, um pequeno homem com uma vitalidade enorme, com uma força ilimitada voltada para o bem de todos os seres, para o engajamento por um mundo mais bondoso e justo.

 

Texto de:

Tamara Carneiro, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen

Thomás Rosa, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista.  Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.

 

Referências:

HANH, Thich Nhat. Fragrant Palm Leaves: Journals 1962-1966. Parallax Press, 1998.

________________. Sem Morrer, Sem Temer. Editora Vozes, 2020

 

 

 

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